sábado, 18 de julho de 2020

«Ensaio sobre uma apresentação quase proferida — A invasão do Eterno!» I João Paulo Costa

Mirones, Mantra 3 (det.), 2009 


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Tinha preparado uma meditação longa para este banquete convivial! Mas tive um sonho esta noite que revolveu o que estava programado. Um sonho disruptivo – como são os gestos, as palavras ou silêncios poéticos – em tempos de “festa da insignificância” (Milan Kundera) ou como diria o pensador Cornelius Castoriadis de “ascensão da insignificância”. Bem, mas este sonho deu 30 páginas de história! Não, não muitas… Mesmo se esse sonho por agora possa ser apenas distópico, fora do lugar, e precisamente por isso ele poderá ser só germinal ou inaugural de qualquer coisa, que não de si próprio, proponho-vos que façamos uma viagem no tempo deste sonho. Ao século VII-VIII da nossa era, à bela moçárabe Andaluzia (Alhambra, Córdoba ou Sevilha) ou até mais para trás, remontando ao tempo da cultura grega passando pela aventura monástica cristã. Quiçá este sonho possa ser um modo de resistência. E que sonho ou visão foi essa, que sem ser épica, é como uma fulguração que levanta as ondas do mar, como quando vemos as figuras marinhas de um filme americano a emergir do fundo do abismo? Deixo a narração completa desse sonho para um outro momento, para ouvirmos agora o Eduardo Jorge e o Carlos Poças Falcão, dois amigos e criativos de excelência que muito estimo, pela fecundidade do seu trabalho, e pelas conversas e diálogos que fomos tendo ao longo destes tempos. A eles o meu profundo agradecimento por terem anuído a participar neste banquete da palavra e da amizade. A nós todos por termos ousado sair do confinamento interior ou do silêncio solitário para a presença pública, ainda que só por breves momentos, mas que ela nos possa entusiasmar e estimular a ir mais além dos consensos de ocasião, a pensar e a imaginar o impensado.

A Babel do fragmento

Depois de publicado, na verdade, olho para este ensaio como uma Babel ou então como uma pequena biblioteca onde habitam diversos géneros literários ao qual diversos públicos podem aceder, certamente com diferentes níveis de entendimento. O interlúdio é talvez a parte mais acessível para o comum dos leitores, mais teológico, na medida em que se desenha aí a possibilidade de uma cristologia sapiencial ao estilo do Nazareno. Uma grande parte das figuras do livro, desde autores a artistas, são figuras sombra, quer dizer, que de um ou outro modo habitam o mundo, o tempo e o espaço à sombra do Invisível, que deixaram tudo em aberto para a perceção silenciosa e discreta do mistério do Ser que vem compassadamente ou por eclosão ou deflagração aos nossos passos errantes. Não me interessa nada um pensamento edificante ou instrutivo como começo das coisas, mas fazer ouvir, fazer ver, fazer sentir algo novo que emerge de um fundo imemorial, de um mistério de invisibilidade no contacto coma realidade visível, e não fora dela, o que seria ilusionismo ou devoção ao irracional. O mistério ou natureza das coisas, que sempre uma ordem estranha, no dizer de António Damásio, só se colhe em contacto com a realidade, e a realidade só se descobre no contacto com o mistério. Que depois deste encontro ou contacto primordial e silencioso se encontre consolação, encorajamento, medo, alegria, edificação ou desassossego numa obra isso é a inteligência da mente a abrir-se para um outro nível de confluências. Primeiro é precisar habitar poeticamente o mistério do visível. Flannery O’Connor fala de uma «invasão do eterno». A propósito dos vestígios do passado que nos chegam em fragmentos, vale a pena atender ao texto de José Mattoso: «Mas, uma vez vivido o sagrado, os fragmentos que o materializam não cessam mais de desafiar o desejo. Chamam-nos para mostrar aspetos novos da sua mensagem e convidam-nos a sentir a sua unidade. As obras de Ilda David, expostas com as Bíblias medievais, representam uma ressonância contemporânea, concreta, igualmente palpável, como os próprios códices, da mensagem divina, mediante a leitura que ela fez. Convidam-nos a experimentar o nosso «silêncio de leitura», ou seja, a deixar que a semente do verbo interior frutifique em imagens ou sons, e, por meio deles, alimente a nossa comunhão com Deus.»
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João Paulo Costa 
Livraria Centésima Página, Braga, 6 de Julho de 2020


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