quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

«Not Yet», de Pedro S. Lobo, no «Le Monde»


«Ce sont des photographies tristes, des photographies de paysages déshumanisés, les forêts détruites par les incendies monstrueux des étés 2017 et 2018, les carrières abandonnées, vides de toute présence humaine. Seules traces du vivant, le cadavre déchiqueté d’un renard. Ce n’est en rien un travail documentaire, mais bien plutôt une méditation mélancolique. On se plonge dans la texture même des plantes, des branches brûlées, des pierres brisées, parfois si près de la matière qu’on ne sait plus la situer, l’identifier, juste une trace grise, verdâtre ou vermillon.

[…]

Comme je l’avais noté à propos des images perdues de Hadjithomas et Joreige, ce sont là des reliques, des traces de l’histoire, comme les restes du corps d’un saint quand, des siècles plus tard, on ouvre la tombe et on ne voit plus que des tissus et des os. Une forme de célébration face à l’apocalypse, comme l’écrit Rosely Nakagawa. Je ne connais pas assez l’oeuvre de Pedro Lobo pour relier cette série à ses travaux sur les bidonvilles et les prisons, mais j’en pressens l’harmonie souterraine. Ajoutons que le livre est remarquablement bien imprimé.»
 
«Lunettes Rouges», Le Monde, 24.2.2021
 
Texto completo em:

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

Livro: “Doze fronteiras”

Joaquim M. Palma quis reencontrar as culturas ancestrais nos confins da fronteira entre Portugal e Espanha. E falar-nos da beleza e abandono que atingem esses territórios remotos e as suas gentes.


“No cruzamento para Avelanoso, a paragem de autocarros tem uma lareira em pedra no seu interior, e com sinais de estar a ser utilizada. O bem-estar de quem aguarda por transporte, nestas terras gélidas, mereceu alguma consideração por parte de quem decide sobre a arquitectura destes equipamentos sociais.”

Desta e doutras observações atentas é feito este “Doze Fronteiras – A raia luso-espanhola percorrida em toda a sua extensão”, de Joaquim M. Palma, editado pela Documenta, uma chancela da Sistema Solar, que inclui umas belíssimas fotografias a preto e branco, reproduzidas com uma qualidade que é rara neste género de publicações em Portugal.

Realidades humanas e paisagísticas emudecedoras existentes nos confins dos dois países ibéricos, culturas ancestrais remotas engolidas pelos buracos negros da desolação e abandono numa galáxia rural já nos umbrais do não-retorno, beleza intemporal frágil, marcas predatórias ferozes – eis algumas das faces de uma geografia precária e em fuga encontrada durante uma sentida viagem ao longo da fronteira entre Portugal e Espanha.

Ecoando na esteira de todos os passos do viajante fronteiriço, um verso do poeta José Tolentino Mendonça: “Não ames viagens que reduzam a estranheza”. E estranheza houve. Ou não fosse a linha de fronteira ela própria já uma coisa estranha.

Este relato de viagens, sem ambições de ser guia turístico nem sequer estudo sociológico ou etnográfico, é a reprodução de um simples caderno de viagem redigido sem pretensões de convencer quem quer que seja e cujos conteúdos surgiram da interação do olhar com o coração e da predisposição de um ser humano para ir à procura do genuíno, onde o belo (e o feio) têm sempre algo a dizer.
Os registos, por separado e por junto, nada exigem e nada prometem; são a folha caída de uma árvore que não está perto e que o vento trouxe inesperadamente – uns dão por ela, pegam-lhe, olham-na com curiosidade, e vão à procura da árvore, outros não. Para os mais curiosos, esses que pegam na folha e a olham, informa-se que Avelanoso, por onde passa a estrada 218-2, fica um pouco a sul de Campo de Víboras, a meio caminho entre Macedo de Cavaleiros e Miranda do Douro, em Trás-os-Montes.

Joaquim M. Palma nasceu em 1952, em Vila Viçosa, e foi professor do ensino primário durante 32 anos. A sua escrita, sobre a beleza e o abandono que atingem pessoas e territórios remotos, encontra eco em autores como Duarte Belo ou o espanhol Sergio del Molino.

Palavra de Viajante, Jornal Económico, 5 de Dezembro de 2020

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Clepsydra 1920-2020 – Estudos e revisões

Clepsydra 1920-2020 – Estudos e revisões 
Carlos Morais José, Catarina Nunes de Almeida, Daniel Pires, Duarte Drumond Braga, Fernando Cabral Martins, Paulo Franchetti, Pedro Eiras, Ricardo Marques, Rogério Miguel Puga, Serena Cacchioli


Edição de Catarina Nunes de Almeida 

ISBN 978-989-9006-60-7 | EAN 9789899006607 

Edição: Dezembro de 2020 
Preço: 15,09 euros | PVP: 16 euros 
Formato: 16 × 22 cm (brochado) 
Número de páginas: 224 

Com o apoio do CEC

Hoje, como há cem anos, o relógio de água marca a hora certa. Foi nosso desejo não faltar a esse chamamento. 



O livro que agora se publica assinala cem anos de existência de uma das mais fulgurantes obras da poesia portuguesa – Clepsydra, de Camilo Pessanha. A receptividade e vitalidade que lhe reconhecemos foram secundadas não só pelo diálogo crítico e pelas sucessivas propostas de edição de que foi objecto, mas também por trabalhos criativos, de reescrita ou de homenagem, que de igual modo a continuaram e a colocaram em movimento. 
Esta celebração, inicialmente projectada como um evento público que promoveria o debate crítico por parte de especialistas e leitores, precisou de se adequar às contingências do presente, que fazem de 2020 um ano pouco dado a festejos e a louvores. Nessa medida, pensou-se em compilar algumas das reflexões que viriam a ser apresentadas nessa ocasião, garantindo assim a sua subsistência sob a forma de um livro – objecto em relação ao qual temos sempre a ganhar em matéria de proximidade física. Encontra-se aqui reunido um conjunto de ensaios, previamente comentados e cuidadosamente revistos, com o propósito de dar expressão ao trabalho de questionamento e de pesquisa que Clepsydra e o seu autor continuam a estimular. Apesar de, em todos eles, a leitura ter por objecto esse texto centralizador, agora com cem anos de existência, alguns destes estudos procuram também ir ao encontro de aspectos cruciais do trabalho comparatista do nosso tempo, abrindo espaço a reflexões sobre os contactos culturais e a dimensão estrangeira que perpassam a escrita de Pessanha, sem esquecer ainda as migrações discursivas e a intertextualidade, fenómenos relativamente aos quais podemos colher hoje admiráveis exemplos. Procurou-se, em suma, que os ensaios não se cingissem apenas à análise estrita dos poemas – o espólio do autor, a recepção e a posteridade literária da sua obra, as figurações do Oriente, são alguns dos temas chamados à reflexão no presente volume. 
[…] 
Hoje, como há cem anos, o relógio de água marca a hora certa. Foi nosso desejo não faltar a esse chamamento. 
[Catarina Nunes de Almeida]

Espectros do Cinema – Manoel de Oliveira e João Pedro Rodrigues

Espectros do Cinema – Manoel de Oliveira e João Pedro Rodrigues 
José Bértolo 


ISBN 978-989-9006-59-1 | EAN 9789899006591 

Edição: Dezembro de 2020 
Preço: 18,86 euros | PVP: 20 euros 
Formato: 16 × 22 cm (brochado) 
Número de páginas: 272 
Com o apoio do CEC 

Este livro é uma galeria de retratos de figuras que, como se diz em Benilde, «não são deste mundo», figuras fantasmáticas, prometidas a uma existência liminar, que adquirem uma espécie de inteireza justamente na sua inconsistência ôntica.



A figura do fantasma tem acompanhado a história do cinema desde o século XIX até aos nossos dias, marcando presença numa grande diversidade de géneros fílmicos. Além disso, a própria arte cinematográfica tem sido, repetidas vezes, considerada e descrita como uma coisa espectral em si mesma. Em 1896, Máximo Gorki qualificou o cinema como um «reino de sombras», e, já no século XXI, Jacques Derrida afirmou que a experiência cinematográfica pertence à esfera da espectralidade. Deste modo, ir ao cinema implica necessariamente confraternizar com espectros, ser assombrado, quer os filmes tornem os fantasmas visíveis, quer não. 
No contexto português, Manoel de Oliveira e João Pedro Rodrigues surgem como os cineastas que reflectiram sobre a espectralidade do cinema de forma mais consistente. Atentando no funcionamento das suas narrativas de amor, loucura e morte, bem como nos seres que as protagonizam, votados a uma existência liminar, entre o mundo dos mortos e o dos vivos, este livro constrói uma galeria de retratos de figuras fantasmáticas, que, como se diz em Benilde ou a Virgem Mãe, «não pertencem a este mundo». 

Tal como os retratos numa galeria são autónomos, e dados à contemplação individual, num percurso que se faz através da(s) sala(s) de exposição, também os capítulos deste livro são concebidos desse modo. Não se trata, então, de procurar activamente semelhanças entre os cineastas, nem tampouco diferenças, não obstante os pontos de contacto surgirem inevitavelmente, sendo, então, devidamente assinalados. A minha hipótese de trabalho consiste em elaborar uma espécie de mosaico no qual se possam ver em simultâneo (idealmente, em palimpséstica sobreimpressão) tantas configurações do mesmo problema de partida quanto objectos particulares de estudo (i.e., personagens de filmes) existem. 
[José Bértolo]

Lusco-Fusco – Desenhos

Lusco-Fusco – Desenhos 
Jorge Martins


Selecção de textos e tradução de Jorge Martins

ISBN 978-989-9006-45-4 | EAN 9789899006454

Edição: Setembro de 2020
Preço: 12,26 euros | PVP: 13 euros
Formato: 14,5 × 20,5 cm (brochado)
Número de páginas: 64 (a cores)

Com a Ala da Frente – Câmara Municipal de V.N. de Famalicão

Não sei de outra arte que convoque mais inteligência do que o desenho. 
[Paul Valéry] 

Este livro, Lusco-Fusco, foi publicado por ocasião da exposição «Lusco-Fusco», de Jorge Martins, com curadoria de António Gonçalves, realizada na Galeria Ala da Frente, em Vila Nova de Famalicão, de 12 de Setembro de 2020 a 15 de Janeiro de 2021. Desenhos realizados entre 2017 e 2019 (grafite sobre papel, 50 x 70 cm e 56 x 76 cm). 



A sombra é uma cor tal como a luz, mas é menos brilhante; luz e sombra não passam de uma relação de tons. 
[Cézanne]

Os limites de cada linguagem: se quiser definir melhor um sorriso tenho de desenhá-lo. [Wittgenstein] O nosso corpo é um fluxo tornado forma. 
[Novalis]

A arte não é a imitação pura e simples daquilo que somos. 
[Plotino]

Simplicidade em arte é mortal sempre que ela se julgue suficiente… 
[Paul Valéry]

A sobrevivência das obras, a sua recepção enquanto aspecto da sua história, situa-se entre a sua recusa de se deixar compreender e a sua vontade de ser compreendida; esta tensão é o clímax da arte. 
[Adorno]

Blind Faith

Blind Faith 
Diogo Evangelista 


Textos de Joël Vacheron, Nuno Crespo, Pedro Gomes e Diogo Evangelista 
Design de Ana Luísa Bouza 

ISBN 978-989-9006-50-8 | EAN 9789899006508

Edição: Dezembro de 2020 
Preço: 15,09 euros | PVP: 16 euros 
Formato: 16,5 × 24 cm (encadernado) 
Número de páginas: 136 (a cores) 

Com a Escola das Artes (UCP) 

Edição bilingue: português-inglês

Blind Faith (2020) é uma exposição sobre a transformação da sensibilidade e sobre a ligação desta transformação a um sentimento de transcendência. 

Este livro foi publicado por ocasião da exposição Blind Faith, de Diogo Evangelista, com curadoria de Nuno Crespo, na Escola das Artes (UCP), Porto, de 13-02-2020 a 02-10-2020. 



Ainda que o nascimento da arte seja lido por Bataille [em O Nascimento da Arte, Sistema Solar, 2015] como o momento da descoberta de uma força humana técnica e imagética que se opõe a todas as outras forças vivas e que excede a condição da necessidade, do trabalho e da natureza, esse gesto é acompanhado pela expectativa dos primeiros pintores em poder actuar no mundo. Não se tratou, propõe Bataille, de mudar o mundo da mesma forma que se «talha uma pedra», mas de acreditar na «possibilidade de o influenciar; não como influenciava as coisas, trabalhando, mas como influenciava outros homens, pedindo-lhes e obrigando-os, apaziguando-os com dádivas». 

O que está aqui em causa é associar ao gesto artístico o impulso originário de superação do mundo da necessidade, da agressão, do trabalho. A esse gesto corresponde, segundo Bataille, a descoberta do lazer, do riso, do tempo livre. E, claro, é o momento em que os seres humanos se descobrem enquanto espíritos. Esta brevíssima apresentação surge como forma de explorar o modo como superar a biologia, ultrapassar a natureza e conquistar o espaço (terreno e espacial), sempre caracterizou muitas das construções humanas. E como as práticas artísticas ao serem, de algum modo, contra a natureza, no sentido de ambicionarem a sua superação, também potenciam o recentramento da humanidade no mundo. O trabalho que Diogo Evangelista tem vindo a desenvolver pode ser visto neste contexto. Trata-se de uma obra que nas suas múltiplas expressões – escultura, desenho, pintura, vídeo – explora as zonas intersticiais entre arte, ciência, tecnologia, realismo, ficção, tecnologia, natureza. Não se trata de uma errância, mas de uma deambulação através dos movimentos que dão forma a uma espécie de expectativa defuturo. Por isso,encontramos nas suas formaseimagens uma tentativa de explorar o potencial imagético, plástico e criativo da tecnologia, produzindo imagens que podemos localizar entre a ficção científica, a exploração espacial e os ambientes tão sugestivos dos laboratórios de pesquisas científicas onde cremos que o futuro estará a ser fabricado. Imagens estas que têm como consequência fazer-nos perceber as variações sensíveis existentes entre diferentes ambientes humanos. Um dos eixos das obras de Evangelista está na exploração das diferentes formas como a natureza está a ser substituída pela tecnologia. 
[Nuno Crespo]

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

«Potência da Imaginação», por Mariana Pinto dos Santos

Sem títuloMariana Castro, 2020

João Pedro Cachopo publicou um livro sobre os tempos que vivemos e que passámos a viver desde Março de 2020. Isto é, é um livro que resulta da pandemia, mas não é exactamente sobre a pandemia. Diferencia-se dos vários textos de filósofos e pensadores contemporâneos que foram publicados entre Março e Junho/Julho, e também dos livros que mais recentemente têm saído, na medida em que procura observar de um ângulo diferente o efeito da pandemia na nossa experiência do mundo. Tira partido da distância temporal face a esses primeiros textos, que foram necessariamente escritos a quente, com as fragilidades que advêm de pensar um acontecimento durante o acontecimento. É um facto que ele ainda dura, mas o seu prolongamento no tempo não deixou de tornar algumas perspectivas iniciais longínquas e não mais válidas, por isso pensá-lo hoje será necessariamente diferente de o ter pensado em Março ou Abril.

Este é um livro pequeno, escrito com enorme clareza, que se lê com prazer. Mas a dimensão e a clareza enganam: as questões são abordadas com complexidade, o diálogo com autores contemporâneos e não contemporâneos é pertinente e elaborado e a sua leitura suscita várias perguntas e reflexões. Também o título é enganador. Como é explicado logo no prólogo, nem os sentidos torcidos são os cinco sentidos sensoriais, nem a remediação digital é remédio, isto é, não serve para colmatar uma falta, não é um mal menor ou um fraco consolo, e não é, seguramente, cura ou compensação face à pandemia.

Os «sentidos» aqui em causa são sentidos que dependem, diz João Pedro Cachopo (JPC), da proximidade e da distância, não físicas, mas imaginadas; são de certa forma, sentidos da vida, ou, como escreve mais adiante no livro, «sentidos que nos ligam ao mundo» (p. 40). A «remediação digital» assenta na designação dos estudos de media, a qual lê o prefixo re- no sentido de replicar, repetir: re-mediação, re-medium. Será, assim, a apresentação de um medium por via de outro medium, a mediação da mediação ou dupla mediação. No caso da remediação digital, é mais ainda: é a confluência de vários media num medium, o digital.

Por outro lado, o significado de «remediar», no sentido de «substituir» ou «reparar» ou «consolar», não é inteiramente abandonado, uma vez que permite a JPC precisar que uma posição de repúdio do digital e uma posição de exaltação do digital, aparentemente antagónicas, partem do mesmo princípio que o digital serve para substituir uma experiência original, ela sim, autêntica.

Assim compreendemos de outra forma quando afirma provocadoramente que o acontecimento não é a pandemia, mas a torção dos sentidos que nos ligam ao mundo, uma torção feita por via da remediação digital. Estes sentidos (que não deixam de implicar os cinco sentidos sensoriais) são, neste livro, também cinco (o autor ressalva que poderiam ser outros, ou muitos mais): o amor, a viagem, o estudo, a comunidade a arte. Todos eles nos implicam em formas de aproximação e distanciamento que se configuram numa experiência diferente para cada um de nós. E essa experiência não deixou de acontecer por causa da pandemia.

Nas páginas dedicadas a esses sentidos, no capítulo que tem precisamente o título «A torção dos sentidos», JPC tem um momento de libertação da escrita e de verdadeiro prazer do texto, seu, que o escreveu, e nosso, que o lemos. São páginas escritas com, arrisco a palavra, a alegria de reimaginar esses sentidos em novas experiências remediadas digitalmente. Creio que apenas no sentido da viagem Cachopo tem dificuldade em deixar de ir, deixar de partir fisicamente (p. 75). Se Xavier de Maistre relatou logo em 1794 como era possível viajar sem sair do lugar, fazendo a viagem à volta do seu quarto sem deixar de experienciar aventuras por via da imaginação, para JPC não basta o quarto, nem o écran, a viagem implica sair de si. É irremediável, diz, continuando o jogo entre os possíveis significados da palavra, o da não sujeição à mediação e o do não haver nada a fazer ou não haver remédio, porque não viajar deixa-nos inconsoláveis.

Destaco as páginas que JPC dedica ao sentido do estudo (p. 79), por nelas abordar o texto de Giorgio Agamben que me pareceu mais discutível dos que escreveu sobre a pandemia (vários traduzidos e publicados na Punkto), no qual o filósofo italiano vaticinou o fim do «estudantado como forma de vida» e não teve pejo em comparar os professores que aceitavam dar aulas online com os colaboracionistas do fascismo nos anos 1930, profetizando ainda que os poucos que se recusassem seriam reconhecidos como os heróis deste tempo (não se confunda este com outro texto do autor bem diferente, «Estudantes» de 2017, em que defendia o estudo na sua condição de não utilidade e consequente possibilidade de experiência e erro, em oposição à investigação, orientada pela lei do mercado e produtividade). Como analisa JPC, é um juízo moral que identifica a tecnologia como mal absoluto (que curiosamente faz equivaler a barbárie) que leva Agamben a fazer uma equivalência inaceitável. 

Acrescento que isso coloca o filósofo numa posição muito discutível de juiz e vigilante moral. Como contraponto, JPC fala do trabalho de Fred Moten e Stefano Harney, que, sem deixarem de criticar o sistema de ensino universitário e seus mecanismos de «profissionalização do pensamento», ressalvam a subversão e a divergência que o estudo na universidade (uma noção alargada de estudo que inclui o intelectual e o não intelectual e que igualiza radicalmente os temas a estudar) pode trazer. Estes autores não dramatizaram o ensino à distância: estão tão cientes dos seus perigos como do abalo na autoridade que pode representar e dispostos a fruir desse abalo. Este exemplo que JPC dá no seu livro a propósito do estudo é, nada mais nada menos, do que a sua própria abordagem da remediação digital e seus efeitos precipitados pela pandemia.

Tal como noutros autores que pensaram a pandemia, seja quais tenham sido os termos em que a abordaram, as transformações que ela precipitou (ou que ameaçou precipitar, porque muitas verificamos que não ocorreram e talvez não venham a ocorrer) já estavam e continuam em curso. A remediação digital é, sem dúvida, uma delas, e foi de resto alvo de abundantes reflexões antes da pandemia. É a torção dos sentidos que, essa sim, diz o autor, é precipitada pela pandemia — é esse, afinal, o acontecimento.

Ao contrário de vários autores pré- e pós-pandemia, JPC evita ou recusa mesmo a atitude fatalista face ao digital (sem tão-pouco embarcar na euforia pelo digital), considerando ao mesmo tempo os seus perigos e efeitos nefastos, como o controlo e a extracção de informação a que estamos sujeitos ao frequentar redes sociais, pesquisar na internet, fazer compras online.
Ou seja, e esta é a tomada de posição fundamental deste livro: não só, como escreve o autor, estamos sujeitos ao acontecimento, como somos sujeitos do acontecimento. JPC recusa fazer o mero diagnóstico de que somos dominados, controlados, esvaziados, explorados pelo digital. Afirma antes a possibilidade de agenciamento dos sujeitos por via da imaginação no contexto digital. A tarefa a que se propõe este livro é a tarefa que entende ser a da filosofia: pensar o presente intempestivamente (ou nietzschianamente), ou «revolver o real», assentando na convicção de que interpretação e transformação do mundo estão interligados.

Respondendo à pergunta «o que pode a filosofia?», JPC diz que esta se distancia e faz perguntas que procuram o melhor ângulo. Dificilmente se terá notado o encontro do melhor ângulo ou mesmo a vontade de fazer perguntas de alguns dos filósofos que JPC refere, como Giorgio Agamben, Slavoj Žižek, Byung Chul-Han. Muitas vezes vimos os filósofos precipitarem-se nas respostas e a desempenhar um papel de oráculos ou videntes, mais do que seria desejável. Porém, o mundo e os filósofos movem-se e supõe-se que os ângulos se vão alterando e ajustando, e a distância para os tomar se vai conquistando. Naqueles primeiros meses era difícil e arriscado tomar posição e os erros eram mais prováveis. Mesmo hoje o são, e o mérito da pergunta de JPC, «o que pode a filosofia?», é o de reservar-lhe um lugar tão modesto quanto imprescindível, e de cercear a tentação oracular.

A partir do seu ângulo, que procura resposta para a pergunta «o que há de revelador e transformador na pandemia?», JPC trava um diálogo com pensadores que marcaram os primeiros meses da propagação da doença pelo mundo e foram amplamente partilhados nas redes sociais e outros canais digitais, como Alain Badiou, Bruno Latour, Judith Butler, David Harvey, além de Byung Chul Han, Žižek, Agamben, Jean-Luc Nancy — vários antologiados no conjunto que ficou conhecido por Sopa de Wuhan, outros que surgiram no blog da Critical Inquiry, reunidos com o título «Posts from the pandemic», vários traduzidos e publicados em português em plataformas digitais. Neste livro surgem também Naomi Klein, Jacques Rancière, Roberto Esposito, José Gil ou André Barata. Essa conversa com pensadores da actualidade que JPC enceta tem o propósito de esboçar um diagnóstico do pensamento que se formou sobre o meio digital na era da pandemia para ele próprio propor outro ângulo de análise. É um diálogo por vezes assumidamente breve ou que, com alguns dos nomes, vai ressurgindo ao longo do livro. Não me debruçarei sobre esse diálogo em si, mas sim sobre o caminho a que ele leva.

Há três momentos do livro em que JPC «actualiza» ou faz analogias entre estudos famosos já clássicos e o momento de remediação digital actual. Falarei desses momentos sem seguir a ordem pela qual aparecem no livro.
 
Apocalípticos remediados

O primeiro é no capítulo 4, «Apocalípticos e remediados» glosa do título de Umberto Eco de 1964 Apocalípticos e Integrados, que já na altura designava desta forma, e simplificando, os pessimistas face à tecnologia e os optimistas em relação à evolução tecnológica. JPC acompanha Eco na conclusão de que todos teremos um pouco de uns e de outros, tanto em 1964, como hoje face à digitalização do mundo. Constata, no entanto, que hoje tanto os apocalípticos como os remediados partem do mesmo pressuposto de que o digital é um substituto de uma experiência autêntica, é um simulacro de uma experiência original. Ora, para JPC, o digital traz outro tipo de experiência tão ou tão pouco autêntica quanto qualquer experiência analógica. Porque a experiência depende sempre, digital ou analógica, da imaginação. Refira-se desde já que esta é, a meu ver, a palavra-chave deste livro, a palavra que o torna não um livro optimista, isso seria outra coisa, mas um livro que quer olhar as possibilidades da alegria na era digital, na era pandémica, na era de emergência dos fascismos e do colapso ambiental, e que faz essa alegria depender da imaginação.
[…]
Punkto, 9 de Fevereiro de 2021

Nota de edição: Este texto é uma versão desenvolvida da apresentação do livro A torção dos sentidos – pandemia e remediação digital, que teve lugar na livraria Snob em Lisboa, no dia 15 de Dezembro de 2020.»]

terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

«António Reis: The Life of Forms and a Form of Life», por Alexandra João Martins

 

Alexandra João Martins escreve sobre o livro Descasco as Imagens e Entrego-as na Boca — Lições António Reis. Edição de José Bogalheiro e Manuel Guerra — Textos de José Bogalheiro, Maria Filomena Molder, Nuno Júdice, Manuel Guerra, Fátima Ribeiro, Maria Patrão. 

Martins, Alexandra João. 2020. “António Reis: The Life of Forms and a Form of Life”. Journal of Science and Technology of the Arts 12 (3), 130-36. https://doi.org/10.34632/jsta.2020.9561.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

«Triângulo», por João Sarmento

João Sarmento, sacerdote jesuíta e responsável pela Galeria Brotéria, apresentou recentemente
 Persistência da Obra II — Arte e Religião, uma edição Documenta.

«Triângulo» é o título da exposição que ocupará os espaços do centro Brotéria de 22 de Abril a 25 de Maio de 2021. Para a preparação da mesma, os artistas receberam três textos: o texto da galeria Brotéria, e textos das curadoras, Carolina Quintela e Eva Oddo. A exposição é organizada pela Catarina Silva e contará com os trabalhos de Carla Castiajo, Catarina Silva, David Correia Gonçalves, Eduarda Rosa, Francisca Carvalho, Horácio Frutuoso, Hugo Bernardo, Pedro Sequeira, Pedro Tropa, Vasco Futscher.


Em 1967, Bruce Nauman desenhou uma espiral em néon, no interior da qual podemos ler as letras azuis que dizem: The true artist helps the world by revealing mystic truths. O conteúdo da mística é a própria natureza do mistério, o assombro, o espanto, o indizível. Contudo, também o acto de revelar é parte integrante do funcionamento da mística, do sagrado e do oculto. A afirmação do néon de Nauman demonstra, portanto, uma espécie de metodologia do fazer artístico como um aprofundamento em infinito, como uma espiral de claridade.

Independentemente do que possa significar ser um verdadeiro artista, podemos reconhecer que existe uma nostalgia demiúrgica no fazer das práticas artísticas. Persiste, sob a ideia de artista, uma sombra dos actos de culto: há uma proximidade entre a produção do mundo da arte e a construção atemporal de símbolos. De algum modo, nas palavras do Mircea Eliade, por «mais avançada que estivesse em determinada época a dessacralização do cosmos, os ofícios conservam ainda o seu carácter ritual.»[1] Por isso, a transformação das matérias-primas, as substâncias moldadas desde os seus princípios vitais, foram manipuladas, pela artesania, na construção dos artefactos, às mãos de alquimistas, xamãs, sacerdotisas e sacerdotes. Neste sentido, parece que se misturavam mais completamente à vida complexa da matéria os seus mistérios invisíveis. Assim, física e metafísica orbitavam na dinâmica do trabalho e do ritual.

Mircea Eliade lembrava que «o sagrado é uma parte da estrutura da consciência e não um estádio na evolução da consciência. Ou seja, não houve uma época em que as coisas eram mais espirituais do que hoje.»[2] Mesmo intuindo uma dessacralização do mundo e da cultura contemporânea — onde os ritos se privatizaram num crescente subjectivismo — persistem ainda hoje múltiplas dimensões não óbvias, latências da experiência do mistério.

Sem ritos, desfalecemos. O ritual pretende atribuir gestos, palavras, elementos que catalisem esse lugar não imediatamente lógico — científico e linguístico. O ritual trata de organizar, dar forma e tempo àquilo que não é apodítico. No fundo, o melhor ritual será aquele que nos fará progredir na pergunta, no inevitável espaço obscurecido do mistério. A ideia da ritualidade em arte será tanto mais significativa quanto mais revelar, trazendo à clarividência o não-saber. É neste lugar que se encontram as práticas que sondam ritualmente os limites da linguagem e dos símbolos, ressignificando-os. Prescrevem modos de relação entre coisas ou seres que aumentam o inesperado, a surpresa, as possibilidades.

Os princípios da geometria foram considerados ao longo dos séculos, em diferentes culturas, como uma metodologia para atingir os elementos da mística, as formas puras; como alvo de uma confluência extraordinária de sistemas simbólicos. A geometria condensa, sintetiza, torna analíticos os modos de representação de um significado. Exemplo disso, o triângulo. Do oriente ao ocidente, reúne grandes valores retóricos, resultando numa forma com um enorme sincretismo. O triângulo está patente em diversas correntes de misticismo, da alquimia babilónica, da cultura egípcia e judaico-cristã. O triângulo está obviamente associado às tríades, às representações dos elementos naturais, à ideia de perfeição e mesmo à ideia da visão plena, do visionismo. Triângulo são três lados infinitos; é, muitas vezes, uma porta que não deixa mais de se abrir — essa porta de Clarice Lispector. Neste sentido, albergamo-nos sob esta forma, a fim de dar a ver as verdades místicas que ocupam cada um dos artistas e das suas práticas.

[Galeria Brotéria]
 
  

[1] Mircea Eliade, Herreros y Alquimistas, Madrid, Alianza Editorial, 9.ª ed., p. 130.

[2] Cit. in Bill Viola, David A. Ross, Peter Sellars, Bill Viola, Nova Iorque, Whitney Museum of American Art, 1998, p. 143.


terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

«Separação infinita — continuação de cena», por Rodrigo Silva

 Rodrigo Silva, professor na ESAD – Caldas da Rainha, apresentou recentemente
Persistência da Obra I — Arte e Políticauma edição Documenta

(O Tomás pediu-me então que dissesse algumas palavras. Agradeço-lhe, agora aqui em público, muito esse convite, também reparando o dano de não ter podido na altura estar presente no colóquio e cumprimento-vos a todos, agradeço-vos desde já a escuta. Escrevi, para esta ocasião, algumas frases que se foram estendo e que vos gostava de ler.)

«As mãos da gruta Chauvet produzem toda uma outra lição de trevas, porque é aí que o homem reencontra a sua noite, cria a sua claridade e desdobra a sua capacidade nascente de manter com o mundo uma relação constituinte e separada. [...] Nas grutas, trata-se da economia da separação dos vivos com o primeiro sítio que lhes deu a vida, separação que faz aceder o infans à palavra.»
Marie-José Mondzain
 
«Um encontro não é senão o começo da separação.»
Provérbio Japonês
 
«O que verdadeiramente somos é aquilo que o impossível cria em nós.»
Clarice Lispector
 
 
 
1. Nunca soubemos o que foram os começos. Achámo-nos sempre já começados, avançados num tempo sem princípio nem fim, herdeiros involuntários de múltiplas histórias e tempos entrelaçados, cruzados, inapelavelmente compósitos, no meio do diverso e do múltiplo. Estamos sempre a começar e a recomeçar, a procurar novos começos, mas a origem esteve sempre já perdida, mesmo quando a sonhámos como dada para sempre num tempo primeiro, mitificado, num outrora claro e distinto. Mas das origens resta-nos uma bruma, fascinante e indistinta, que julgamos sempre ainda poder vir a reencontrar em certos gestos arriscados, imagens (entre)vistas, alguns fragmentos apagados, algumas palavras perdidas. Não as palavras da tribo, mas as palavras do abismo, do murmúrio, do segredo.
 
2. Emergimos, tacteando, do inseparado e do indistinto. Como em tudo, na expressão das formas vivas e nas coisas do espírito, o movimento vai do simples ao diferenciado, do unido a si para o uno diferindo de si, declinando-se em inúmeras especificidades, singularizações, metamorfoses incontáveis. Esse movimento parece ser também o movimento das culturas e das civilizações constituídas: sinais ténues, indícios terrestres, que testemunham da emergência do novo e de um começo, que nos permitem projectar um surgimento primeiro e inteiro, como se assistíssemos ao nascimento do inaudito. Do simples para o diferenciado: terá sido assim a emergência de cada uma das actividades humanas, as que testemunham da vida do espírito. Gestos simples e inteiros, lançados de uma obscuridade nativa, que se vão mostrando e reconhecendo com novos nomes e tonalidades, identificados e decididos na sua separação e divisão. Assim emergem os modos do fazer e do saber que dão forma ao colectivo e ao viver-em-conjunto: política, arte, religião, sagrado, nomes gregos e latinos, não o esqueçamos nunca, nomes ausentes na língua chinesa e do sânscrito, nomes inidentificáveis nas múltiplas línguas ameríndias e nos povos autóctones, a quem chamamos também «povos primeiros». «Arte», «Política», «Religião» são os velhos nomes migrantes de Atenas e Jerusalém, na princesa Europa, jovem idosa, atravessada por cicatrizes, divisões, separações múltiplas. «Arte», «Política» são os nomes da separação infinita dos gestos simples e inteiros do começo inseparado, com que julgamos reconhecer os gestos do fazer e do saber: os gestos da separação interminável daquilo que nasceu junto e unido, emergindo do inseparado e do indistinto.
 
3. Se a arte e a política são nomes gregos e latinos é porque são esses os nomes mais próprios da «nossa história», das separações internas e intermináveis que a nossa história não cessa de disjuntar e desunir. Mesmo se, sabemo-lo, arte e política hoje são os nomes, urbi et orbi, que se tornaram parte do mundo globalizado da geopolítica e da circulação imparável das mercadorias, do tecno-mundo e das suas ciberesferas. Dizer «a nossa história», é dizer também a história imperialista, colonizadora do Ocidente, dos seus projectos e projecções, que tantas vezes nós Ocidentais e Europeus tomamos como a história-mundo de um planeta que afinal é feito de tantas histórias e outras tantas modernidades, tantas alter-histórias e humanidades-outras, tantas artes, tantas políticas, quantos os lugares, quantas línguas para os falarem. Essa história que se pensou consciente de si e como movimento da autoconsciência da humanidade, que obliterou os plurais das histórias, que se quis centrípeta e se imaginou hegemónica como se tudo convergisse para o centro hipnótico das suas narrativas e categorias, essa história, é aquela que disjuntou aquilo que emergiu junto, puro surgimento indistinto. Quero por isso dizer que esta conjunção do que está disjunto, este face a face de dois distintos — e que em alguns destes textos se afirma como essencial separar — é uma operação interminável: a da separação infinita, daquilo que não cessa de se separar, como duas coisas que emergem distintas do inseparado.
 
4. A nossa história é a história das conjunções mortíferas desta disjunção inacabada, da separação infinita do que surgiu inseparado. Quer dizer: sempre que se deu a indistinção, i.e., a inseparação fusional, a instrumentalização dos meios de uma para os fins da outra (os meios da arte para os fins da política ou os meios da política para os fins da arte), ambas perderam a força que emerge da separação, do uno diferindo de si, daquilo que distingue e que diferenciando faz emergir. Ora o que não cessa de se separar infinitamente e de se distinguir interminavelmente, o que emergiu junto e inseparado, irremediavelmente estará ligado, inextricavelmente entrelaçado, mesmo se nós persistimos na sua distinção. Sim, insistimos, insiste-se nestes textos: il faut, é preciso, separar, estatuir claramente que a arte e a política não podem esquecer de manter a sua separação, apartadas, cada uma com a sua parte, mesmo se essa parte seja incerta e indeterminável, ou até, aberta — pura abertura, esvaziada para um vazio que possa acolher a nossa — a sua da arte ou da política, idem idem — indeterminação nativa. Estes textos afirmam: é preciso separar o distinto, é preciso não persistir em confundir, os meios de uma e os fins da outra e vice-versa. Esse é o exercício imunizante ao qual estamos vinculados como uma responsabilidade histórica: não descurar, não cair uma vez mais na negligência obscena e feroz que consente os pequenos fascismos que guardam a hibernação dos grandes demónios. Os anos 30 estão ainda diante de nós, como escreveu Gerard Granel. E, neste caso, em mais do que um sentido: como recidiva, como ressurgimento, como escreveu o filósofo Michael Foessel num livro recente, mas também como eclosão de sinais do inquietante, sob fundo uma ameaça silenciosa, das alterações do clima e dos ecossistemas. Temos hoje outra preparação para os reconhecer, eles estão aí, nos écrans diariamente, mas contra eles não estamos imunizados, não há vacina possível, para o vírus dos extremismos.
 
5. Temos de imunizar a arte da política e a política da arte — talvez porque o seu múnus, aquilo que passa em comum entre elas, o lote comum que as atravessa de parte a parte, seja justamente aquilo que abre a possibilidade de separar e de distinguir, de singularizar e de partilhar, de assinalar a nossa comum irredutibilidade: distintos e diferentes emergindo do inseparado. Mas o que imunizar quer dizer, hoje nos dias que correm? Sabemo-lo verdadeiramente? Como podemos estar imunizados daquilo que é a nossa condição comum e a nossa fragilidade partilhada, se a nossa condição se revela inextricavelmente com a da inseparabilidade e da interdependência constitutiva, antes de mais na grande rede de conexões e de transmutações que é o imenso reino do vivente? Fizemos talvez sempre e mais uma vez ainda a obra da separação: natureza e cultura, arte e política, arte e religião, política e religião, e dentro destas incontáveis separações e divisões que se replicaram fracturando-se em tantas oposições e dualismos. Separação infinita do que emergiu inseparado: mas não temos hoje, ainda e mais uma vez, a obra do inseparado por fazer? Não escutámos tantas vezes, agora ainda mais uma vez, os apelos da conexão e da ligação, não a das ligações dos cabos e das fibras do digital, mas a das ligações anteriores: a das ligações interrompidas e das conexões caídas, aquelas que hoje queremos restabelecer e retomar, repondo a inseparação nativa?
 
Talvez a pergunta sobre saber se a arte é política só possa ser encetada se primeiro se formular esta: o que surgiu junto será disjuntável? O que nasce uno e inteiro será alguma vez separável ou permanecerá para sempre ligado, inextricavelmente ligado?
 
6. Arriscaria dizer (e isto é, talvez, uma tese em contraponto à substância deste livro): só precisamos de separar o que não é separável, i.e., aquilo que não acabou de começar a sua separação infinita e a sua disjunção interminável, mesmo que o seu começo seja isso mesmo: a separação que fez emergir, que distingue, que assinala, dois gestos, duas acções, dois pensamentos que se instituem diferentes um do outro, um face ao outro, como dois modos de fazer mundo ou de enunciar um nós, de arriscar um comum ou cirscunscrever a vinda de uma comunidade tida ou prometida, aquém ou além de todas as fundações. Dois gestos gémeos, «gémeos não idênticos» como escreve o Tomás, a propósito da separação arte/religião. Mas não é da natureza da gemelidade permanecer inextricavelmente ligado mesmo quando há uma individuação que aparta e distingue dois caminhos, duas formas de ser e de existir?
 
7. Sabemo-lo: as coisas da arte e as da política são inteiramente distintas. Separadas e separáveis. Mutuamente irredutíveis, «precedências desajustadas», escreve a Silvina Rodrigues Lopes. Certo. Dois lugares que não se podem confundir quanto à sua exigência de verdade e de justiça, quanto aos seus protocolos de legitimação e modos de actuação, quanto aos seus limites (históricos, sociais) e formas de manifestação, quanto às suas cauções e genealogias, quanto às coisas que se aprendem e ensinam — se é que possível aprendê-las e ensiná-las — para poder professar uma e outra. Certo. Não acabaríamos de enumerar o que as separa e distingue. Mas sabemos quanto é inumerável e incessante o que as aproxima — basta que façamos todos um exercício de memória íntima (mas também colectiva): quantas vezes não é a «arte» — a poesia, o teatro, o cinema, a literatura — mais política que o que hoje desfila nos écrans como sendo «a política»; quantas vezes, o que as «artes» fazem sentir e pensar não é o afecto e a emoção mais intensamente política que podemos sentir (mesmo se sabemos, claro, como os afectos e as emoções estão hoje profundamente manipulados para as grandes maquinações da cólera e da expiação, colectiva ; quantas vezes o que nos reúne e que nos convoca a estar enfim juntos, não é o diapasão da obra, secreta ou confidencial (ou celebrada numa comunidade de amantes), que escande o ritmo e o espaçamento, o peso e a medida, de uma ressonância desconhecida, que nos comove ou anima. Quantas vezes diante daquilo em que partilhamos uma inspiração ou uma aspiração comum, daquilo que enleva ou que acende o movimento de desejo de futuro, de por vir, essa mesma que parece agora tão ensombrada, tão incerta, claudicante e derradeira.
 
8. À pergunta se a arte é política, estes textos respondem a várias vozes, inequivocamente: não. Ora, a essa pergunta, é possível dar outra resposta: tantas vezes, quantas vezes, incontáveis vezes, ela não foi e é o que de mais político — arquipolítico, escrevia Philippe Lacou-Labarthe com todo o peso solene que ele, em particular, sabia dar à escolha de certas palavras — sim, o que de mais político nos partilhou e inspirou. E acrescento ainda: são e serão hoje escandalosamente e tragicamente insuficientes os meios e os modos para responder, para assumir a responsabilidade, para responder à confiscação do político por todos os poderes que o confiscam, que o instrumentalizam e que o capturaram — a apropriação da política pela lógica do espectáculo e do sensacionalismo, a submissão do espaço público e do jornalismo à agenda hegemónica das narrativas neoliberais, à entrega da política à competição funesta dos bufões histriónicos e do grotesco populista na luta pela conquista do poder e dos lugares da dominação. Mas à encenação estética e audiovisual da política não responde, talvez, uma politização da arte: não responde uma arte feita com os meios da política para os fins da política, mas uma arte feita com os meios da arte para os fins da arte. Aqueles que guardam memória do Inseparado dos gestos primeiros e inteiros, aqueles que guardam a memória do que abre o comum, da abertura ao espaço do encontro e do reconhecimento, da exigência de justiça, da reparação do dano da iniquidade, do espaço livre do encontro de iguais, da justa repartição dos Bens Comuns, do cuidado da casa comum, como diz o Papa Francisco (e saúdo os nossos amigos cristãos católicos, esperando que sejam indefectíveis aliados deste papa), primeiro entre os primeiros a afirmar esse comum nativo, esse comum sem nome, essa a mais alta pobreza comum, de que fala il poverello, anterior a qualquer fraternidade e a qualquer pátria, esse comum que nada poderia confiscar e cuja abertura nativa teremos sempre de pôr a salvo das apropriações mortíferas, dos açambarcamentos e dos monopólios que hoje tomaram o nome da arte e o nome política.
 
9. Dizer que a separação infinita é uma separação que é interminável porque procede do inseparável é dizer: não sabemos talvez ainda o que política quer dizer, não sabemos o que é aquilo de que a arte é o nome. E teremos de persistir em continuar nesse não-saber: não porque não queiramos o saber, mas porque o não-saber (da arte, da política) é aquilo que nos preserva e nos torna indemnes à apropriação, à injunção e à prescrição, àquilo que nos fecha e encerra nas apropriações e representações que disso fazemos, àquilo que nos confina. Arte e política são por isso os nomes e lugares do inapropriável: daquilo que resiste — i.e. — que persiste contra a confiscação e a assimilação ao reconhecível e ao monetizável, ao algorítmico e ao calculável na extracção da mais-valia comportamental (expressão da Soshana Zuboff, agora muito lida) e do adestramento generalizado, à moeda de troca e ao equivalente geral, onde se sustenta a industrialização do sensível pelos media e pelo entretenimento, que tudo cobrem como uma insidiosa sombra ofuscante que nem um vírus mortal apagaria, sabemo-lo. Por isso, à pergunta sobre se a arte é política, é preciso contrapor a pergunta sobre se é necessário que seja política. E teremos ainda e logo de seguida, como na maiêutica platónica ou no método de inquérito heideggeriano, aquilo que é perguntado naquilo que perguntamos: é necessário que política seja política, se política for aquilo em que ela se converteu — no reino — ou melhor, no Império, como sublinha sempre Marie-José Mondzain — do falso e da dissimulação, na competição pelo desmantelamento do Estado e da Coisa Pública face à impotência dos seus escassos e supostos Guardiões? E, logo de seguida, teríamos de perguntar: é necessário que a «arte» seja artística, se o artístico hoje — como mostra o magnífico texto do Federico por exemplo — se converteu na descaracterização e na desconfiguração mesma do que arte já pôde querer dizer como operação da separação e da abertura, i.e., do sagrado? O que é uma arte na época em que a arte se integrou — confinou — voluntariamente e alegremente no reino do mercado e do mercantil, o reino das celebridades e do lifestyle, da competição pela visibilidade e pelo sucesso, aliando-se ao grotesco, heroicizando o informe, erguendo o abjecto como um resto decaído da beleza, erguendo o anómico como um sublime paródico, ao niilismo mesmo? O preço disso — o do cinismo e a indiferença absoluto do mercado e do dinheiro — ainda só agora o começámos a pagar como se vê na indigência aflitiva a que foram votados os artistas e as suas artes quando dependem do mercado.
 
10. Portanto: face a uma arte artística e a uma política política, convertida à politiquice e ao politiqueiro, palavras feias e usuradas à falta aqui de um melhor termo porque justamente essa confiscação não tem conceito mas apenas uma imensa acumulação catastrófica de evidências, é justo pugnar por uma afirmação: vamos, juntos, em busca de uma arte enfim política para que ela nos posso abrir o espaço de uma política enfim livre da política (ainda diria uma «religião livre do religioso» como Nancy, num dos seus livros, pode escrever em eco o dístico de mestre Eckhart, «um deus enfim livre de deus»). Quero dizer: apelemos, juntos, na nossa separação infinita e na nossa disjunção interminável, a uma arte que apele ao que na arte antecede a política porque é ela que abre o espaço, a escuta, a espera, a atenção, àquilo que na política antecede a arte — a antecedência do Inseparado, i.e., da união primeira — mística, talvez, Tomás — daquilo que abre o comum: o viver-junto, a nossa comum interdependência, aquilo a que poderíamos chamar a nossa inseparabilidade constitutiva, ou a que poderíamos dar o nome de, a nossa inseparabilidade nativa.
 
11. Nascemos de um outro, ou melhor, de dois outros, singulares plurais como escreveu uma vez o Jean-Luc Nancy, no título de um dos seus mais belos livros. E como sabemos hoje essa inseparabilidade não só a nossa inseparabilidade entre nós, a inseparabilidade humana: é a inseparabilidade anterior, a inseparabilidade de onde nascemos com que hoje nos confrontamos, sem escapatória possível: a inseparabilidade dos humanos de todas as entidades vivas, o grande todo de onde nunca acabaremos de começar a nossa separação infinita, porque justamente somos hoje, à força de medo e mortalidade, lembrados que não somos separáveis do grande fluxo metamórfico da vida.
 
12. Elas, Arte e Política, são inseparáveis, mesmo quando em separação infinita. Porque provêm ambas do que as antecede mutuamente: ambas provêm do Inseparado de onde provimos, desse comum inapropriável dos mortais que está hoje sob múltiplas confiscações, tantas que nem sabemos bem por onde começar as vastas operações de desconfiscação, ou melhor, talvez pudéssemos dizer, de desconfinamento, que teremos de empreender.
 
13. Não poderíamos e não poderemos perder de vista todas as reservas e objecções sobre a confusão instrumental da arte com a política, no tempo do hipercapitalismo que celebra a apoteose do indistinto e das amálgamas, do «tudo vale, tudo se equivale», porque tudo se pode converter em produto e em bens e serviços transacionáveis. Mas isso não nos pode fazer perder de vista que o que provém do Inseparado é inseparável. Sempre lidará com uma diferenciação constitutivamente interminável que não pode conhecer acabamento nem plenitude. Talvez tivéssemos de assumir e mobilizar a nossa melhor energia, atenção e desejo, no fundo, para a esperança e a véspera de novas núpcias: de um encontro amoroso onde os separados inseparáveis, preservassem o que neles é distinto mas que o assumissem que sem fazer obra comum eles partilham de um mesmo comum nativo. Sim, afirmo aqui, e não é um provocação, apenas uma aspiração íntima, que será do amor da arte pela política que pode nascer uma nova unidade das nossas emoções e dos nossos gestos, iluminados por esse amor que gera emoções em direcção da justiça, da igualdade, do reconhecimento da nossa comum fragilidade e da protecção mútua que nos temos de oferecer reciprocamente, como os amantes do amor se protegem separados apesar de unidos, nos tempos frios e sombrios (estou a lembrar, claro, no livro magnífico do Blanchot sobre a comunidade, onde justamente se trata disto mesmo: da inseparabilidade do distinto, dar arte e da política). Mas como unir aquilo que o tempo inapelavelmente separou? Haverá um Deus, esse de cujos oficiantes dizem que o tempo não pode separar o que o Deus uniu, mas será que haverá um dia um Deus que tornará distinto o inseparável, i.e., que Deus que distinguirá o inseparável de uma arte e de uma política anteriores a qualquer comunidade dada? Diria mesmo, piscando o olho aos nossos amigos da Cristãos Católicos aqui presentes: é de uma outra aliança que esperamos ainda o anúncio e a promessa. Mas talvez este seja apenas mais um exercício de teologia negativa, esse vício impune.
 
14. Arte e política não são a mesma coisa mas são a coisa mesma: o lugar da precedência ou da antecedência, daquilo que cede lugar à abertura do humano, à nossa comum humanidade e que é anterior a todas as artes, religiões e políticas. Encontrar esse lugar vazio, esse lugar em espera ou reserva, esse espaço aberto, esse espaço enfim livre para um encontro, para o lugar da partilha dos distintos. Então aí nesse lugar caem os nomes, não são precisos nomes: arte, política terão sido apenas na memória os nomes transitórios dos gestos intransitivos e imemoriais com que o humano se fez começo livre, encontro de outros e reconhecimento de si. Teologia negativa, certamente, teorias da conspiração espiritual, pior ainda, e por isso detenho-me aqui.
 
15. Resta, enfim, nesta apresentação apresentar o livro. Direi apenas: o Manuel Rosa — aqui ajudado pelo André Maranha — faz os livros mais bonitos que se publicam em Portugal e estes são os mais bonitos de todos. Este tem 280 páginas e doze textos magníficos, todos diferentes mesmo se 6 deles são muito parecidos com outros 6. E que é uma vantagem comercial extraordinária: é que nesta nova edição são mesmo dois livros em duas línguas totalmente diferentes (eu confirmei as palavras são todas diferentes escritas noutra língua, um tal de «francês», textos que parece que são gémeos verdadeiros apesar de falsos), dois pelo preço de apenas um. Ora aí está uma sugestão que deixo ao Manuel Rosa para a cinta do livro: «promoção» — leia o exactamente mesmo livro duas vezes em duas línguas totalmente diferentes, pelo preço de apenas um.
 
(Agradeço novamente ao Tomás o convite que me endereçou para dizer umas palavras e agradeço-vos infinitamente a paciência e a persistência em me escutarem. Obrigado.)
Palavras lidas, na ocasião.
 
 

Rodrigo Silva é licenciado em Filosofia (1998) pela FCSH-UNL, com uma tese sobre Imagem e História em Walter Benjamin e doutorado em Comunicação e Cultura Contemporânea (2007) pela FCSH-UNL, com uma investigação sobre O pensamento do espaço na filosofia contemporânea.
É professor coordenador na Escola Superior de Arte e Design de Caldas da Rainha, onde lecciona desde 1998 na área da teoria da arte, da estética e da filosofia contemporânea. Entre 2010 e 2014 foi subdirector dessa escola e posteriormente director, entre 2014 e 2016. Desde Junho de 2017 é o presidente do Conselho Científico da ESAD.CR.
Tem publicado em diversas publicações académicas, onde tem escrito sobre filosofia contemporânea, artes visuais, teatro e literatura e trabalhado sobre autores como Maurice Blanchot, Jean-Luc Nancy, Jacques Derrida, Georges Didi-Huberman, Jacques Rancière, Valère Novarina, Pascal Quignard, entre outros. Editou e organizou o livro colectivo A república por vir – arte, política e pensamento para o século XXI (Fundação Gulbenkian, 2011), com ensaios de Georges Didi-Huberman, Jacques Rancière, Marie-José Mondzain e Bernard Stiegler.