quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Billy Budd


Em Billy Budd, Marinheiro, a personagem que dá nome à novela é acusada de atear o motim a bordo do Bellipotent. Julgado pelos códigos da guerra, acaba por matar, acidentalmente, o falso denunciante, o mestre-de-armas. Parte daqui uma das linhas de força do livro: o conflito entre a norma e o instinto, a obediência e a pureza – Melville chega a comparar, a certo ponto, o militar a um monge. 

Contudo, Billy Budd deixa mais pontas soltas do que tira conclusões – o que só lhe confere maior apelo, diga-se. Por que razão Claggart acusa Budd? O que motiva o seu (aparente) ódio e a conspiração que tece em torno do «Marinheiro Bem-Parecido»? Em mais um excelente prefácio à sua tradução, Aníbal Fernandes deverá ter acertado, ao buscar na biografia de Melville a raiz dessas tensões. Afinal, o autor, desde a obra de estreia, Typee, fez da sua vida um ponto de partida determinante, que a sua arte apenas matizou, sem nunca se afastar dela. 

Neste caso, é possível que seja importante lembrar (como Fernandes) a sua relação com Hawthorne, intensa e de uma grande radicalidade, em muitos pontos. Há uma corrente homoerótica, em Billy Budd que seria inocência, casmurrice, ou bruto preconceito, não explorar, a percorrer este relato marinho, em que a compleição física das personagens se articula tão claramente com as disposições morais, em que o não-dito é quase tão potente como o que se afirma. Em que, enfim, parece ser a repressão do desejo que leva à injustiça da condenação de Billy Budd. Talvez não por acaso, Morrissey – esse grande poeta do universo Pop, recentemente levado à categoria de autobiografafo – transformou Billy Budd, na música com o mesmo nome, num subtil manifesto contra a discriminação sexual: «Já sabes que me disseram que não? E é tudo por causa de nós.» 

Derradeira realização de Melville, Billy Budd, que ficaria inédito até 1924, manteve-se em estado inacabado, o que apenas adensa o mistério de um livro que deixa no ar a dúvida, com uma linguagem que dá um perturbante realce a «uma profundidade de poço» (p.89), ou que se entretém em descrições de uma sensualidade sempre suspensa entre o contenção e a perversidade – «Debaixo das margaridas gratificadas com vermelho pode haver uma armadilha.» (p.98)

Hugo Pinto Santos, Time Out Lisboa, 15-21 de Janeiro de 2014

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

«Toda a beleza será castigada», por José Riço Direitinho


O mais enigmático dos livros do autor de Moby Dick: uma história de sofrimento e solidão, de inveja e desejos ocultos, irradiando uma aura de sensualidade homoerótica

Obra póstuma do norte-americano Herman Melville (1819-1891), Billy Budd, Marinheiro é, provavelmente, o mais enigmático dos romances deste “exímio manipulador de significados ocultos” — como se lhe refere o tradutor Aníbal Fernandes na brilhante introdução ao livro. Deixada aparentemente incompleta — num manuscrito confuso, desordenado, cheio de emendas, com diferentes versões de vários capítulos —, esta última história do autor de Moby Dick apresentou-se sempre como um quebra-cabeças aos estudiosos e foi motivo para diferentes interpretações, inclusivamente de que teria sido escrita apenas para si próprio, para nunca ser publicada. Apesar da sua dificuldade, Thomas Mann considerou-a “uma das mais belas histórias do mundo”, Benjamin Britten adaptou-a para uma ópera (1951), e 11 anos depois Peter Ustinov levou-a ao cinema (em Portugal o filme passou com o título A Lei do Mar).

A história decorre em 1797, no início das Guerras Napoleónicas, a bordo de um navio de guerra da armada britânica, o Bellipotent. O jovem marinheiro Billy Budd, recrutado à força na marinha mercante para ser gajeiro do traquete, tem 22 anos e uns “olhos celestes”. O seu físico, a evocar o ideal helénico da beleza masculina, dá-lhe o título de “marinheiro bem parecido”. “Mostrava no rosto esse ar humano de boa e serena natureza que a escultura grega deu por vezes ao forte e heróico Hércules.”

Esta beleza, que sem dúvida irradia uma aura de “sensualidade homoerótica” na descrição feita por Melville, origina um silencioso triângulo amoroso cujos outros dois vértices são o capitão Vere e o cruel tenente Claggart, ambos parecendo lutar contra os demónios da sua consciência. Billy Budd (também chamado Bebé Budd) é acusado pelo tenente de incitar um motim a bordo; irado e tomado pela gaguez, incapaz de se defender por palavras das acusações feitas, o jovem marinheiro acaba por bater em Claggart, provocando-lhe involuntariamente a morte. O capitão do navio, contrariado, não tem outra saída que não fazer cumprir a lei e levar Budd a um tribunal militar, que o condena à morte por enforcamento. A lei prevalece sobre a justiça, mas essa dor acompanhará o capitão até ao seu leito de morte, onde pronuncia o nome de Billy.

Billy Budd, Marinheiro é dedicado a Jack Chase, um marinheiro que Melville conheceu na juventude (e que lhe recitava versos de Camões) a bordo de uma fragata e cuja beleza ficou gravada na sua memória — já anos antes o inspirara para a figura do marinheiro no seu romance White Jacket. Como nota o tradutor Aníbal Fernandes, a “bem comportada sexualidade matrimonial que o fazia pai de quatro filhos”, exigência de uma sociedade puritana que não entendia os seus infelizes heróis com sentido trágico, ensombrou sempre as memórias afectivas de Melville (recorde-se a “amizade apaixonada” que desenvolveu pelo escritor Nathaniel Hawthorne, e que o levou a comprar terras na mesma região para ficar mais perto do objecto da sua paixão) e transformou-o num escritor cujos mistérios são dificilmente devassáveis, ao ponto de tornar tortuosos os caminhos para a compreensão de muitos dos desejos das suas personagens (os seus desejos?). Parece também ser essa secreta escuridão, esses caminhos insondáveis, que ele tenta sublimar na personagem do tenente Claggart: “O olhar de Claggart era, então, o de um homem amargurado. Sim, e via-se por vezes na sua melancólica expressão um toque nostálgico; como se ele pudesse gostar de Billy, desde que não estivesse em causa um problema de destino e de proscrição. Mas isto era uma evanescência de que muito rapidamente se arrependia com um olhar implacável, crispando e enrugando o rosto.”

Este curto romance de Melville é estilisticamente atípico, interrompendo o autor a narrativa, quando menos se espera, para fazer várias digressões históricas (sobretudo sobre acontecimentos marítimos como a Batalha de Trafalgar, a vida e a personalidade do comandante Nelson, ou motins famosos), bem como reflexões filosóficas e psicológicas por vezes quase herméticas, ou referências ao passado das personagens. A cada novo capítulo, o leitor tem de tornar a entrar no fluxo narrativo abandonado no capítulo anterior, deparando-se a cada nova página com referências simbólicas, metáforas de difícil entendimento, duplos sentidos e alusões irónicas. Ou não fosse o autor de Moby Dick um mestre de narrativas nocturnas.

Billy Budd, Marinheiro é uma história de sofrimento e solidão, de inveja e de desejos ocultos, uma espécie de parábola do “bom selvagem” que vê a sua ingenuidade e e a sua beleza castigadas pela inveja e pelo ciúme de uma sociedade que se debate na escuridão da sua natureza. De leitura bastante exigente e demorada, não agradará, por certo, a quem tem a literatura apenas como um passatempo.


José Riço Direitinho, Ípsilon | Público, 17 de Janeiro de 2014