O mais enigmático dos livros do autor de Moby Dick: uma história de sofrimento e solidão, de inveja e desejos ocultos, irradiando uma aura de sensualidade homoerótica
Obra póstuma do norte-americano Herman Melville (1819-1891), Billy Budd, Marinheiro é, provavelmente, o mais enigmático dos romances deste “exímio manipulador de significados ocultos” — como se lhe refere o tradutor Aníbal Fernandes na brilhante introdução ao livro. Deixada aparentemente incompleta — num manuscrito confuso, desordenado, cheio de emendas, com diferentes versões de vários capítulos —, esta última história do autor de Moby Dick apresentou-se sempre como um quebra-cabeças aos estudiosos e foi motivo para diferentes interpretações, inclusivamente de que teria sido escrita apenas para si próprio, para nunca ser publicada. Apesar da sua dificuldade, Thomas Mann considerou-a “uma das mais belas histórias do mundo”, Benjamin Britten adaptou-a para uma ópera (1951), e 11 anos depois Peter Ustinov levou-a ao cinema (em Portugal o filme passou com o título A Lei do Mar).
A história decorre em 1797, no início das Guerras Napoleónicas, a bordo de um navio de guerra da armada britânica, o Bellipotent. O jovem marinheiro Billy Budd, recrutado à força na marinha mercante para ser gajeiro do traquete, tem 22 anos e uns “olhos celestes”. O seu físico, a evocar o ideal helénico da beleza masculina, dá-lhe o título de “marinheiro bem parecido”. “Mostrava no rosto esse ar humano de boa e serena natureza que a escultura grega deu por vezes ao forte e heróico Hércules.”
Esta beleza, que sem dúvida irradia uma aura de “sensualidade homoerótica” na descrição feita por Melville, origina um silencioso triângulo amoroso cujos outros dois vértices são o capitão Vere e o cruel tenente Claggart, ambos parecendo lutar contra os demónios da sua consciência. Billy Budd (também chamado Bebé Budd) é acusado pelo tenente de incitar um motim a bordo; irado e tomado pela gaguez, incapaz de se defender por palavras das acusações feitas, o jovem marinheiro acaba por bater em Claggart, provocando-lhe involuntariamente a morte. O capitão do navio, contrariado, não tem outra saída que não fazer cumprir a lei e levar Budd a um tribunal militar, que o condena à morte por enforcamento. A lei prevalece sobre a justiça, mas essa dor acompanhará o capitão até ao seu leito de morte, onde pronuncia o nome de Billy.
Billy Budd, Marinheiro é dedicado a Jack Chase, um marinheiro que Melville conheceu na juventude (e que lhe recitava versos de Camões) a bordo de uma fragata e cuja beleza ficou gravada na sua memória — já anos antes o inspirara para a figura do marinheiro no seu romance White Jacket. Como nota o tradutor Aníbal Fernandes, a “bem comportada sexualidade matrimonial que o fazia pai de quatro filhos”, exigência de uma sociedade puritana que não entendia os seus infelizes heróis com sentido trágico, ensombrou sempre as memórias afectivas de Melville (recorde-se a “amizade apaixonada” que desenvolveu pelo escritor Nathaniel Hawthorne, e que o levou a comprar terras na mesma região para ficar mais perto do objecto da sua paixão) e transformou-o num escritor cujos mistérios são dificilmente devassáveis, ao ponto de tornar tortuosos os caminhos para a compreensão de muitos dos desejos das suas personagens (os seus desejos?). Parece também ser essa secreta escuridão, esses caminhos insondáveis, que ele tenta sublimar na personagem do tenente Claggart: “O olhar de Claggart era, então, o de um homem amargurado. Sim, e via-se por vezes na sua melancólica expressão um toque nostálgico; como se ele pudesse gostar de Billy, desde que não estivesse em causa um problema de destino e de proscrição. Mas isto era uma evanescência de que muito rapidamente se arrependia com um olhar implacável, crispando e enrugando o rosto.”
Este curto romance de Melville é estilisticamente atípico, interrompendo o autor a narrativa, quando menos se espera, para fazer várias digressões históricas (sobretudo sobre acontecimentos marítimos como a Batalha de Trafalgar, a vida e a personalidade do comandante Nelson, ou motins famosos), bem como reflexões filosóficas e psicológicas por vezes quase herméticas, ou referências ao passado das personagens. A cada novo capítulo, o leitor tem de tornar a entrar no fluxo narrativo abandonado no capítulo anterior, deparando-se a cada nova página com referências simbólicas, metáforas de difícil entendimento, duplos sentidos e alusões irónicas. Ou não fosse o autor de Moby Dick um mestre de narrativas nocturnas.
Billy Budd, Marinheiro é uma história de sofrimento e solidão, de inveja e de desejos ocultos, uma espécie de parábola do “bom selvagem” que vê a sua ingenuidade e e a sua beleza castigadas pela inveja e pelo ciúme de uma sociedade que se debate na escuridão da sua natureza. De leitura bastante exigente e demorada, não agradará, por certo, a quem tem a literatura apenas como um passatempo.
José Riço Direitinho, Ípsilon | Público, 17 de Janeiro de 2014