quinta-feira, 27 de maio de 2021

Apresentação do livro «Diário do Confinamento»

 



Um Jardim na Margem do Orontes

Um Jardim na Margem do Orontes 
Maurice Barrès 

Tradução e apresentação de Diogo Ferreira 


ISBN 978-989-9006-71-3 | EAN 9789899006713 

Edição: Abril de 2021 
Preço: 12,26 euros | PVP: 13 euros 
Formato: 14,5 × 20,5 cm (brochado, com badanas) 
Número de páginas: 128


René Gillouin: «Não lemos este livro, respiramo-lo como um perfume,
saboreamo-lo como se fossem frutos, escutamo-lo como uma sinfonia, 
seguimos no fundo de si próprio, na articulação da alma sensível 
e da imaginação, o desenrolar de uma sucessão de frescos 
voluptuosos e pungentes.»



Um Jardim na Margem do Orontes surgiu na Revue des Deux Mondes nas edições de 1 até 15 de Abril [1922], assumindo o formato de livro no mês seguinte. Este texto começou por querer-se uma novela que integraria um volume, mas viu-se com as dimensões de um romance. Repleto da energia e do ritmo de uma ópera (e Barrès dizia: «Vou contar umas das pequenas óperas que tenho no espírito.»), compõe o cenário de uma tragédia; e dele foi, de facto, retirada uma ópera pelas mãos de Alfred Bachelet. Mas essa estrutura que se constrói sobre uma tragédia é percorrida por uma linguagem enérgica que não se demora em tornar vivos os cheiros, as cintilações, as texturas de que o texto está cheio — são palavras de sábia escolha que chegam ao leitor à custa de uma pureza de estilo que confere ao romance uma qualidade de cápsula do tempo, onde os amores de um cristão e de uma rainha sarracena vão decorrendo com a consistência de uma lenda. […] 
Para servir de pano de fundo aos amores que se contam neste livro, Barrès decidiu colocar o narrador ao abrigo do ruído milenar das gigantescas nórias que hoje permanecem em Hamã apenas pelo seu valor histórico. Talvez seja esse o sábio ardil de Maurice Barrès, fazer acompanhar a sua história com o ruído dessas gigantescas rodas de madeira, ao mesmo tempo que invoca um Oriente secreto que o tempo tem conservado com toda a sua singularidade ficcional, criando simultaneamente um efeito hipnótico através da linguagem que utiliza. 
Ainda assim, este romance de fulgores orientais não agradou a certos leitores de Barrès; e aquele Guillaume, que por causa dos seus amores distorce o que são os bem firmados valores da igreja, não foi do agrado de muitos cristãos. […] Então Barrès surge aqui como um romancista mais livre de pejos, coisa que não agradaria a alguns e deu início àquilo que o padre Brémond, seu amigo, disse ser a «tola querela do Orontes.» 
[Diogo Ferreira]

Erotika Biblion

Erotika Biblion 
Conde de Mirabeau 


Tradução e apresentação de Aníbal Fernandes 

ISBN 978-989-9006-85-0 | EAN 9789899006850 

Edição: Maio de 2021 
Preço: 13,21 euros | PVP: 14 euros 
Formato: 14,5 × 20,5 cm (brochado, com badanas) 
Número de páginas: 152


Torrentes de subtil ironia, leve no gracejo, parodiando com frequência Voltaire.

 

O título Erotika Biblion exigiu ao autor uma argumentadora nota prévia transferida para a voz dos editores: 
«Aviso dos Editores — O título desta obra não vai ser inteligível a todos os leitores,e vários haverá a não lheencontrarem nenhuma relação com o tema. Não obstante, nenhum outro lhe conviria; e se o deixámos em grego, adivinhar-se-á com facilidade a razão.» 
Difícil seria não darmos voz a Guillaume Apollinaire, que tão extensamente se demorou sobre este livro no prefácio à edição que ele próprio preparou para a colecção Les Maîtres de l’Amour
«Mirabeau acabou-o em 1780, e a 21 de Outubro desse ano escreveu a Sophie: … Eu contava, minha querida gatinha, enviar-te hoje um novo manuscrito que o teu infatigável amigo terminou, mas a cópia que destino ao livreiro de M.B. ainda não chegou ao fim; fica para a próxima vez. Vai divertir-te: são temas muito engraçados, tratados com um ar sério não menos grotesco do que eles, embora bastante decente. Acreditarias que fosse possível fazer na Bíblia e na Antiguidade investigações sobre o onanismo, as tríbades, etc., etc., e sobre as mais escabrosas matérias que os casuístas abordaram, e tornar tudo isso legível, mesmo aos que forem mais anacronicamente empertigados e polvilhados com ideias filosóficas? […] 
«A Erotika Biblion é um muito singular monumento de impiedade. É fruto das leituras de Mirabeau na sua prisão. Ele lia com curiosidade, e até com prazer, obras de erudição sagrada de exegese bíblica; “Com aparas dos comentários de Don Calmet”, diz um seu biógrafo, “compôs a Erotika Biblion, recolha de indecências onde se registam os desvios do amor físico em diferentes povos antigos; em especial, dos Judeus, onde a originalidade, pelo menos, compensa a obscenidade da matéria.” 
«A primeira edição, segundo alguns, apareceu em Neuchâtel, segundo outros em Paris. Diz-se que a primeira só divulgou catorze exemplares, apreendida quase na sua totalidade pela polícia. Ao que parece, a edição de 1792 foi de igual modo perseguida, embora um certo número de exemplares tenha chegado ao estrangeiro. Chegou mesmo a Roma, e o livro foi posto no índex a 2 de Julho de 1794. […]» 
[Aníbal Fernandes]

Escrita e Imagem

Escrita e Imagem 
Amândio Reis, Ana Bela Morais, Fernando Guerreiro, Golgona Anghel, Jeffrey Childs, Joana Matos Frias, João Oliveira Duarte, José Bértolo, Luís Mendonça, Maria Filomena Molder, Mariana Pinto dos Santos, Mário Avelar, Osvaldo Manuel Silvestre, Pedro Eiras, Rita Benis, Rosa Maria Martelo, Silvina Rodrigues Lopes 


Organização e nota introdutória de Elisabete Marques e Rita Benis 

ISBN 978-989-9006-67-6 | EAN 9789899006676 

Edição: Dezembro de 2020 
Preço: 18,87 euros | PVP: 20 euros 
Formato: 16 × 22 cm (brochado) 
Número de páginas: 272 

Com o apoio do CEC 


«[…] escrita e imagem aparecem simultâneas ao olho interpretante. 
É a justaposição das duas que abre espaço a renovadas leituras e, 
por conseguinte, ao pensamento.» 
[Elisabete Marques e Rita Benis]



O presente volume é uma antologia de ensaios resultante de uma série de encontros abertos ao público, realizados no Outono de 2018, em formato de seminário, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Enquadrado no âmbito das actividades do Centro de Estudos Comparatistas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa, sediado na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, o seminário constituiu um espaço partilhado de debate e reflexão sobre as relações entre a escrita e a imagem. Era um dos seus propósitos promover, a partir dos dois termos titulares, o questionamento e a análise das correspondências e das tensões entre diferentes práticas artísticas, bem como averiguar os efeitos dessa problematização na discussão de géneros, hierarquizações, categorizações, identificações. Cremos que o livro dá corpo a essas mesmas preocupações. Nos diversos ensaios que o compõem, assiste-se à investigação das contaminações ou intercâmbios entre diversos media, ao estudo de objectos híbridos, ou à observação da coexistência dos dois regimes, visível e dizível, aquando da recepção dos objectos. 
A organização deste livro, como não poderia deixar de ser, acompanha as confluências descobertas nos diferentes contributos. Tendo-se observado que as propostas oscilavam entre duas artes, a saber, o cinema e a poesia, optámos por criar duas secções, «Escrita e cinema» e «Poesia e imagem». Conforme se poderá adivinhar, estas partes não poderão deixar de exibir afinidades e cruzamentos, não existindo um limite estrito e rígido entre elas. Tal característica não corresponde, a nosso ver e de acordo com a nossa motivação original, tanto a uma fragilidade quanto à abertura a sentidos e a pensares. 

[Elisabete Marques e Rita Benis]

Jorge de Sena, 939 Randolph Road: Exílio, Erotismo, Escatologia


Jorge de Sena, 939 Randolph Road: 
Exílio, Erotismo, Escatologia 

Jorge Fazenda Lourenço 


978-989-9006-79-9 | EAN 9789899006799 

Edição: Abril de 2021 
Preço: 13,21 euros | PVP: 14 euros 
Formato: 16 × 22 cm (brochado, com badanas) 
Número de páginas: 144 


A posteridade de Jorge de Sena está nas mãos de cada um de nós. 
É responsabilidade de todos e de cada um. A posteridade de um autor é uma questão literária, mas é também uma questão política, de cidadania. 



É a partir da última morada de Jorge de Sena que este livro procura abrir vistas sobre os seus longos anos de exílio, com relevo para o período norte-americano. Um exílio feito de múltiplos exílios: exílio político; exílio existencial e interior, físico e metafísico; exílio ansioso de um tempo alhures de amor, justiça e liberdade. Um exílio testemunhado, e transfigurado na demanda espiritual de uma peregrinação de mundo, o que levanta questões teológicas e escatológicas, associadas ao erotismo, princípio criador da obra de Jorge de Sena. 
[Jorge Fazenda Lourenço] 

Não tendo embora conhecido Jorge de Sena, acabou por manter com ele um trato próximo, íntimo. Quando é que se iniciou esta convivência? Como é que tudo começou? 
Jorge de Sena era para mim um poeta de que já tinha ouvido falar. Até que, no final dos anos 70, saiu uma sucessão fabulosa de obras suas: Os Grão-Capitães, em 1976; a edição isolada de O Físico Prodigioso, a sequência Sobre Esta Praia…, e a reedição de Poesia-I, em 1977; as duas Dialécticas da Literatura, em 77 e 78; Antigas e Novas Andanças do Demónio, Poesia-II e Poesia-III, em 1978; e, finalmente, Sinais de Fogo, em 1979. Fiquei completamente varado pelo poeta; e digo poeta, porque em tudo o que ele escreveu é sempre legível o trabalho de um poeta. E em 1982 comecei a escrever sobre «o meu poeta». Precisava de extravasar toda aquela admiração. 
[De uma entrevista a Teresa Carvalho, jornal i, 4/6/2018] 


Outras obras do autor sobre Jorge de Sena: O Essencial sobre Jorge de Sena (1987; nova edição, 2019), Uma Bibliografia Cronológica de Jorge de Sena (1939-1994), com Frederick G. Williams e Mécia de Sena (1994), A Poesia de Jorge de Sena: Testemunho, Metamorfose, Peregrinação (1998; edição revista, 2021), O Brilho dos Sinais. Estudos sobre Jorge de Sena (2002), A Arte de Jorge de Sena: Uma Antologia (2004), Corpo Arquitectura Poema. Leituras Inter-Artes na Poesia de Jorge de Sena, com João Borges da Cunha (2011), Matéria Cúmplice. Para Jorge de Sena (2012).

Diário do Confinamento

Diário do Confinamento
 Paris, Março-Maio de 2020 

João Pinharanda 
Desenhos de Pedro Calapez 
ISBN 978-989-9006-82-9 | EAN 9789899006829 


Edição: Abril de 2021 
Preço: 11,32 euros | PVP: 12 euros 
Formato: 14,5 × 20,5 cm (brochado) 
Número de páginas: 72 (a cores)


Durante o primeiro período de confinamento e dias seguintes 
enviei a um conjunto restrito de amigos estes textos. São eles 
que me pedem agora que lhos faça chegar em conjunto. 



Escrevo estes textos como colagens e como vertigens, puzzles incompletos e saltos em queda-livre — assim é também quando consigo escrever sobre os artistas em total liberdade e não de modo explicativo ou pedagógico. Escrever, assim, é a maneira que tenho para pensar sobre as coisas do mundo — neste caso foi uma maneira de enfrentar estes dias estranhos, de lhes encontrar as forças da vida sem lhes esconder as sombras da Morte. 
[João Pinharanda] 

A ideia de pensarmos no progresso, no futuro, mas continuando desesperadamente a olhar o passado, sintetiza muitos momentos do que vivemos, particularmente agora em que cada um desses momentos se assombra com a incerteza dum futuro catastrófico e nos leva a pensar que só um Anjo nos iluminará o caminho. Desejo que venha agora aquele vendaval do Paraíso que nos impeça de fechar as asas — mas só se conseguirmos ser Anjos. 
[Pedro Calapez]

Impasse


Impasse 
João Pedro Vale, Nuno Alexandre Ferreira, Diogo Bento 


Design de Horácio Frutuoso 

ISBN 978-989-9006-65-2 | EAN 9789899006652

Edição: Dezembro de 2020 
Preço: 15,09 euros | PVP: 16 euros 
Formato: 17 × 24 cm (brochado) 
Número de páginas: 202 

Com o Teatro Praga (colecção «Série») 

Edição bilingue: português-inglês 


Os tempos e os temas aqui convivem todos num drama partilhado. 



Os três textos apresentados neste livro, dois deles estreados em Portugal durante a ação pública Impasse, dialogam, de modos diferentes, com a performance Aqueles que só fazem meia revolução apenas cavam a sua sepultura, de João Pedro Vale & Nuno Alexandre Ferreira (JPV+NAF), mais tarde apresentado no Centre Pompidou no dia 5 de junho de 2019 com o título Those who make the Revolution halfway only dig their own graves, no âmbito do Festival MOVE 2019. Organizada pela dupla de artistas no seu atelier, a 9 de fevereiro de 2019, a ação Impasse contou também com a participação dxs artistas Vasco Araújo, Teatro Cão Solteiro, André e. Teodósio, Diogo Bento e Tiago Alexandre, e das curadoras Ana Cristina Cachola e Marta Espiridião, tendo como mote a denúncia da realidade do bairro João Nascimento Costa onde se situa o atelier dos artistas, um bairro social estigmatizado, precarizado e carenciado, abandonado à sua sorte e sofrendo, por default, da migração e guetização dxs excedentes, de uma política de higienização em torno do consumo de drogas e da especulação imobiliária que assola a cidade. Os textos que aqui se publicam ativam algumas destas questões, partindo de um encontro/desencontro entre os três artistas, durante as primeiras manifestações em Paris dos Coletes Amarelos, em 2018. 
[…]
Os tempos e os temas aqui convivem todos num drama partilhado.
Ainda que na génese da performance não tenha havido necessariamente a intenção de publicação dos seus materiais, pareceu-nos fundamental ultrapassar qualquer determinismo conservador e partilhar estes textos. 

[André e. Teodósio]

terça-feira, 11 de maio de 2021

«É apetecível fazermo-nos à estrada com este livro na mochila»

 
 
Doze Fronteiras é fruto do fascínio do seu autor por pessoas e lugares que, por sua vez, o levaram até à realidade atravessada pela fronteira «para ir à procura do genuíno, onde o belo (e o feio) têm sempre algo a dizer» (p. 14).
A sua viagem evidencia como as terras raianas portuguesas e espanholas, apesar da fronteira que as estanca, estão menos separadas umas das outras do que das capitais dos respetivos países, das quais estão realmente afastadas e por elas esquecidas.
 

Assim como estes países distintos se imiscuem mutuamente — através das suas culturas e das pessoas que recorrentemente ultrapassam a fronteira, enfraquecendo-a — também diferentes sentimentos se misturam durante a leitura desta obra. Se por um lado é interessante o despretensioso conceito de diário de bordo — de emoções feitas prosa, poesia ou fotografia — por outro, acaba por ser frustrante não se conseguir visualizar as terras, as pessoas, as igrejas, os animais e as paisagens sobre os quais se lê. No entanto, é apetecível fazermo-nos à estrada com este livro na mochila. E talvez seja esse mesmo o objetivo: assinalar os sítios a que já fomos e apontar aqueles que ficámos a querer visitar para testemunhar, com os nossos olhos, «o monumental que foi preterido em nome da singularidade do pequeno, do abandonado, do furtivo» (p. 13).
 

Contudo, a mais intensa mistura de sentimentos acontece quando uma visão mais idílica do campo é confrontada com a ausência de crianças, as construções de emigrantes e um abandono aparentemente irreversível.
O ideal será deixarmo-nos contagiar pelo olhar atento do autor e fazer deste livro um companheiro de viagem porque, como lemos na introdução, é importante viajar, tendo em conta este «nosso século de consumismos desenfreados e de omnipresentes e massificadoras tecnologias que acabarão […] por obliterar as frágeis periferias que formam o interior longínquo onde uma pedra é uma pedra e não uma imagem exposta num ecrã» (p. 16). Aconselha-se, portanto, uma leitura itinerante.
 
[Isabel Maria Mónica, Brotéria, Abril de 2021]

segunda-feira, 10 de maio de 2021

«A Viúva do Enforcado», por Mário Beja Santos


Com a concordância do jornal, criou-se uma secção com a seguinte especificidade: leituras do passado que não passam de moda, que ultrapassam por direito próprio a cultura do efémero, que roçam as dimensões do cânone da arquitetura, da estética e do estilo, tidas por obras-primas, mas gentilmente remetidas para as estantes, das bibliotecas públicas ou privadas. Livros ensinadores, tantas vezes, e injustamente, tratados como literatura de entretenimento.

Filho de uma diplomada do Magistério Primário, com uma avó entrevada, tive a dita de assistir e participar em despretensiosos serões literários, a minha mãe lia em voz alta obras que eram do agrado da minha avó e que tinham igualmente o condão de me manter atento até à hora da deita. E foi assim que ouvi falar em George Eliot e acompanhei o seu romance O Moinho à Beira do Rio, como era prática usual haver serões com trechos de Eça de Queirós ou Camilo Castelo Branco, havia recitais de poesia, dos ultrarromânticos, lembro os sonetos de Antero de Quental e foi bem empolgante acompanhar do princípio ao fim o belo do romance de Vitorino Nemésio Mau Tempo no Canal. E não esqueço a predileção da minha avó Ângela pelo Amor de Perdição, as Novelas do Minho, A Doida de Candal, A Brasileira de Prazins, Carlota Ângela, Memórias do Cárcere

É completamente ocioso embarcar na discussão sobre quais as páginas de ouro da literatura camiliana. Enquanto alguns especialistas invocam a riqueza singular da sua epistolografia, o público em geral, geração após geração, mantém uma forte atração por Amor de Perdição, Novelas do Minho, A Queda de Um Anjo e A Brasileira de Prazins, gostos não se discutem. É imprescindível continuar a ler Camilo, e por diferentes razões: a riqueza vocabular, que nos remete para um mundo urbano-rural que ele retratou com pluma de mestre; encarnou a corrente mais densa da literatura romântica, foi messias, profeta, comandante em chefe, e suficientemente visionário para abrir as portas ao naturalismo, que lhe sucedeu; não foi um imperador da língua portuguesa, mas ganhou assento, por mérito próprio, no pódio dos nomes aproximados, ninguém lhe pode subtrair o cetro de multimilionário de riqueza vocabular, trata praticamente por tu o nosso castiço vocabulário. E vale sempre a pena ler Camilo para nos confrontarmos com uma escrita exímia em manifestações tão diversas como o romance, a novela, o conto, o prefácio, a carta, a catilinária, a polémica, a página de jornal.

E como os gostos não se discutem, ponho à vossa consideração um dos seus diamantes literários que assiduamente revisito: A Viúva do Enforcado, por Camilo Castelo Branco, Sistema Solar, 2016.

Logo o trecho inicial, à memória do Senhor Rei D. Afonso Henriques: «Procurei nas ruas e praças de Guimarães a estátua do fundador da monarquia. A cidade opulenta, que tem ouro em barda, e abriu dois bancos como os pletóricos que se dão duas sangrias, não teve até hoje um pedaço de granito que pusesse com feitio de reis ou de bom pedestal! Se eu fosse rico, ou sequer pedreiro, quem fazia o monumento de Afonso era eu. Assim, como o último dos escritores e o primeiro em patriotismo, apenas posso aqui levantar um perpétuo padrão ao vencedor de Ourique».

Esta novela, que faz parte de Novelas do Minho inicia-se em Guimarães, aqui florescem os amores escaldantes entre o ourives Guilherme Nogueira e Teresa de Jesus, a filha do surrador Joaquim Pereira. Uma das notabilidades de Camilo é apresentar os seus atores antes de os pôr em ação. Por exemplo, Teresa de Jesus: «Filha única, bonita, muito recolhida, e confessada de um franciscano tão bem-intencionado que prometida fazer dela uma santa com ajuda de Deus». O pai pensa casá-la com o seu irmão viúvo, o tio Manuel, que vive no Porto. Temos aqui outra apresentação: «Tinha oficina de curtidor na rua dos Pelames, no Porto, e era muito rico, e viúvo sem filhos, com 50 anos, sujos sim, mas bem conservados. Tinha passado a festa do Natal de 1822 em Guimarães e levara à sobrinha um grilhão de ouro da sua viúva dentro de uma rosca de pão de ló». O pai de Teresa quer é que a filha não vá para um convento, quer marido com dinheiro, qualquer pelintra está fora de questão. Chega a vez de apresentar Guilherme Nogueira, tinha um aspeto simpaticamente doentio. «Formara-se no ar impuro da oficina. O hábito de trabalhar cerceava-lhe o deleite das horas de repouso. Passeava só e pesado de tédio porque se acostumara à soledade do seu quarto». A mãe de Teresa, acompanhada da filha, visita o ourives, dá com o retrato da filha, tal fora a intensidade do encontro entre os jovens amorosos que o ourives a plasmou em pintura. O surrador fica incomodado com a pintura do ourives e barafusta: «Se cá o vejo em casa com o retrato, dou-lhe com ele nas ventas. Não quero retratos; não dou um pataco por ele. Pedaço d’asno! O troca-tintas, pelos modos, não tem que fazer. Por isso o pai anda sempre com a sela na barriga!».  Começara a guerra, os arrulhados correspondem-se secretamente, houve um padre que tentou a conciliação, segue-se uma cena de gritaria, o padre sai às arrecuas e desabafa com Guilherme: «A besta fez lá o diabo. Não te dá a filha, e diz que te bate, se lá passares. Parecia um energúmeno». O padre aconselha os pombinhos à perseverança. Seguem-se intrigas. Finda a primeira parte. O surrador muda de estratégia faz tagatés à filha, a correspondência amorosa não para. E dá-se a fuga, Guilherme e Teresa vão para o Porto, depois de muita peripécia. Daqui os noivos seguem para Zarza, na raia espanhola, entram novos atores em cena, caso de D. Rojo de Valderas e a filha, Inês, que se faz amiga da Teresa. A apresentação de Rojo de Valderas é filigrana literária, deixo-a em encomenda ao leitor.

Nas cabriolices e volteios a que nos habitua mestre Camilo, vamos agora até Coimbra para conhecer António Maria das Neves Carneiro que se mete em desacatos com gravidade e marcha para Zarza, fugindo à justiça. A saúde de Guilherme Nogueira vai-se abalando, dá alma ao criador. Teresa fica pouco abalada, e já se sabe porquê. António das Neves metera-se de amores com Inês, acabou por se apaixonar por Teresa de Jesus. A vingança de D. Rojo de Valderas é cruel.

Chegados a este ponto, por mão de mestre Camilo avaliamos que uma grande paixão pode acabar num cemitério e renascer num desses encontros espúrios em que uma viúva é catrapiscada fora das convenções. Teresa pede ajuda a um tio cónego e temos aqui uma outra retumbante apresentação: «O padre tinha cinquenta e oito anos: andava bem alimentado: as suas mãos eram grandes, escarlates, e sobre o dorso de cada dedo tinha um espinhaço de cabelos rijos como as cerdas de um javali. Tinha sido um pródigo de pancadaria, quando se ordenava». Há choros e revoltas. O pai de António das Neves pede clemência a D. Rojo, em vão. Mas a roda do destino segue o seu percurso: «Teresa de Jesus Pereira e António Maria das Neves Carneiro casaram, em Badajoz, em dezembro de 1829. O arcediago de Xerez de los Caballeros, bom católico e entranhado partidário de Fernando VII, escrupulizava em proteger um escapadiço da forca». A tragédia está em marcha, António das Neves acaba na forca, teremos uma nova viúva e como tudo vai acabar não se diz aqui porque as obras-primas da literatura servem para regalar pelo próprio, não se faça deste promotor de leituras inextinguíveis um desfazedor de sonhos.

Mário Beja Santos

[«Leituras inextinguíveis (25)», Mais Ribatejo, 26 de Abril de 2021»]