sexta-feira, 29 de julho de 2022

Sobre «Palavras Aladas», por José Tolentino Mendonça


O QUE TORNA MUITAS VEZES INESQUECÍVEL O VERÃO É A FORMA COMO ASSOCIA CONVERSAS E CAMINHOS
 
Nesta estação sabe bem uma conversa com vagar, sem propósito imediato e que se alongue como uma viagem por dentro do tempo. São assim as conversas que os atalhos do verão permitem ou as que, por exemplo através da leitura, podemos escutar a outros. Li recentemente a esplêndida conversa que Maria Filomena Molder manteve com Cristina Robalo e que a Editora Documenta publicou com o título “Palavras Aladas”. A expressão “palavras aladas” é uma daquelas fórmulas a que Homero recorre com frequência na sua poesia, quase sempre para introduzir o discurso direto, típico das conversas. E palavras aladas porquê? Porque numa conversa as palavras têm asas, saem da boca e voam com a fantasia dos pássaros, com a veemência veloz das flechas, expandem-se e fluem no aberto como auriflamas ou pairam mesmo se pobremente, intercalam-se, interrogam-se, esclarecem-se, revelam no enxame do som novas possibilidades. Como diz Filomena Molder, são aladas porque “vão pelo ar até aquele que está ao pé de mim” e porque são mais preciosas do que a subestima que frequentemente lhes dedicámos. É belo o modo perentório que a filósofa assume: “Nunca serei das pessoas que acham que as palavras valem menos do que quer que seja. Não, não!
 
Nunca serei dessas pessoas.” Uma conversa é também uma oportunidade para reborar ou redescobrir o valor das palavras, sem o qual a vida é menos. Precisamos, porventura até mais do que estamos dispostos a reconhecer, de acostar as nossas palavras às dos outros, de dar tempo à hospitalidade mútua que é a audição, de enraizar essa forma de companhia.
 
Recordo especialmente as palavras que Maria Filomena Molder dedica à sua arte, a filosofia (“a filosofia implica um comércio profundo com a vida... é um esforço de ver mais claro... é um gesto contemplativo...”), evocando mestres importantes no seu percurso, como Giorgio Colli ou Fernando Gil. Aquelas com que descreve as imagens construídas por algum motivo na infância e que depois nos habitam a vida inteira (“As imagens da infância jorram, são inevitáveis, são o nosso alimento... Provavelmente, das mais profundas não temos notícia, alimentam a nossa vida e nós ainda não chegámos a elas”). Ou as que utiliza para explicar o grande, escondido e inescusável confronto que mantemos com a morte (“Olhe, Cristina, acho que não há nada criativo, em nenhum povo, que não seja uma forma de enfrentar a morte, de lutar contra ela, de a banir”). Mas as palavras que me fizeram, terminada a leitura da sua conversa, entabular outras ainda são as que lhe servem para falar dos pés. Os gregos antigos sabiam que a mesma condição alada podia unir palavras e pés (pense-se na figura de Hermes). E o que torna muitas vezes inesquecível o verão é a forma como associa conversas e caminhos.
 
Molder cita o que leu no livro de Osip Mandelstam “Conversas sobre Dante”. Para Mandelstam, em Dante Alighieri poesia e filosofia estão sempre a caminho, palmilham tudo a pé.
 
PRECISAMOS, PORVENTURA ATÉ MAIS DO QUE ESTAMOS DISPOSTOS A RECONHECER, DE ACOSTAR AS NOSSAS PALAVRAS ÀS DOS OUTROS, DE DAR TEMPO À HOSPITALIDADE MÚTUA QUE É A AUDIÇÃO, DE ENRAIZAR ESSA FORMA DE COMPANHIA 
 
Por isso, “o Inferno e ainda mais o Purgatório celebram a caminhada humana, a medida e o ritmo dos passos, o pé e a sua forma”. Uma das obras mais curiosas publicadas no âmbito do VII centenário da morte de Dante (celebrado em 2021) é a assinada por Giulio Ferroni, mais de mil páginas para nomear os lugares e as errâncias que compõem a geografia da “Divina Comédia”. Não admira que Filomena Molder parta daqui para defender que “o pé é uma medida da vida” e que “nesse aspeto vivemos numa época de perda imensa, nós que já não sabemos quase nada dos nossos pés”. Em cada verão, porém, estamos como que a tempo de remediar esta perda.


 [José Tolentino Mendonça]

segunda-feira, 25 de julho de 2022

Morte de Judas seguido de O Ponto de Vista de Pôncio Pilatos

Morte de Judas seguido de O Ponto de Vista de Pôncio Pilatos
Paul Claudel

Tradução e apresentação de Aníbal Fernandes 

ISBN 978-989-568-028-3 | EAN 9789895680283

Edição: Maio de 2022
Preço: 13,21 euros | PVP: 14 euros
Formato: 14,5 × 20,5 cm (brochado, com badanas)
Número de páginas: 96 (a cores)


Proponha-se para estes textos uma leitura menos comprometida. Aceitem-se as provocações de subtil humor a diversas seriedades instituídas pela fé cristã. Os apóstolos fartaram-se até ao tédio de testemunhar milagres? Os paralíticos milagrados podem ter saudade das suas muletas? Simão Pedro, aquele pobre lamuriento? Maria Madalena (Miriam de Magdala) tão fútil?… Reabilitar Judas foi por diversas vezes um ponto preferido dos adversários da Igreja. Mas a habilidade de Claudel ironiza alguns pontos de honra da fé cristã com a caução indesmentível do seu catolicismo de missa diária e de uma obra literária tão atenta às palavras da Bíblia. 



Este Claudel ligado à diplomacia viveu em Nova Iorque e Boston; esteve em várias cidades da China — o que lhe deu oportunidade para as belas prosas poéticas de Connaissance de l’Est (1900) e de L’Oiseau noir dans le soleil levant (1927); e a este desfile de honrosos cargos de embaixada acrescentemos Praga, Roma, Rio de Janeiro, Tóquio, Copenhaga, Washington… 
A sua imagem começou, com este fervoroso catolicismo associado às honras de uma bem-sucedida carreira diplomática, a ser roída por uma sonora animosidade; o Claudel-poeta-dramaturgo-ensaísta-prosador, que surgia enfeitado com fortes brilhos de Estado,era católico de missa diária e fazia-o com uma exibição que parecia mentirosa perante as realidades sociais da sua vida; mas também complicava um pouco as vontades de maledicência, por não ser fácil negá-lo como grande poeta.
Isto não impediu que bastantes personalidades da literatura francesa o tivessem deixado ferido por incomodadas memórias. André Gide, seu inimigo de estimação, dizia que Claudel «era um senhor iludido, a julgar que se chegava ao Céu numa carruagem-cama»; Claudel respondia, dizendo que «Gide era um senhor que ia chegar ao Inferno de metro». Réplicas como estas circulavam como pormenor picante na conversa dos meios literários de Paris; mas, bem mais elucidativo e duradouro, é o que ficou escrito. 
[Aníbal Fernandes]

Os Domingos de Jean Dézert seguido de contos

Os Domingos de Jean Dézert seguido de contos
Jean de la Ville de Mirmont

Tradução e apresentação de Aníbal Fernandes

ISBN 978-989-568-027-6 | EAN 9789895680276

Edição: Maio de 2022
Preço: 14,15 euros | PVP: 15 euros
Formato: 14,5 × 20,5 cm (brochado, com badanas)
Número de páginas: 136


Charles Dantzig: «Ah! Se Beckett tivesse escrito algumas palavras sobre Os Domingos de Jean Dézert, que porção de teses e colóquios a seu respeito nós veríamos!» 




Dir-se-á que um deus cruel comandou as balase as granadas da Primeira Grande Guerra Mundial (a de 1914,estendida até 18) e via com desagrado os que então se iniciavam, a mostrar talentos na literatura daquela França metida numa guerra contra os seus vizinhos alemães. Foi eficaz. Jovens escritores, com uma idade abaixo da que poderia mostrá-los no seu mais alto ponto criativo, morreram. E se há nomes, entre os escolhidos por um qualquer Marte vingativo, que hoje menos nos dizem — Ernest Psichari, Charles Péguy, Émile Clermont, Sylvain Royé, René Dalize, Louis dela Salle, Jean-Marc Bernard, Robert d’Humières, Paul Drouot, Pierre Fons, Émile Desfax, Gérard Mallet — terminaram outros a sua curta vida, deixando-nos uma obra que perdurou. […] Mas esta guerra, maléfica para os da literatura, também se encarregou de outra morte, aqui a que mais nos interessa, a de um jovem de vinte e oito anos de idade que se queria com invulgar nome — Jean de la Ville de Mirmont — e foi poeta de versos e ficcionista de textos curtos em prosa, todos os que foram reunidos neste volume. 
[…] 
Tenho em mim grandes e insatisfeitas partidas — disse Jean dela Ville de Mirmont num verso de L’Horizon chimérique. O seu Jean Dézert partiu para o mundo, insatisfeito, numa edição que muito baixo gritava, posta a circular com discrição em 1914, nas vésperas da partida sem regresso do seu autor-soldado quese dirigia, inocente, para a explosão de uma granada alemã. Hoje, no cemitério protestante de Bordéus há um túmulo que ignora o escritor e apenas se lembra, num muito danificado epitáfio, do soldado: «Jean de la Ville de Mirmont, sargento do 57.º regimento de infantaria, nascido em Bordéus em 2 de Dezembro de 1886, morto pela França em 28 de Novembro de 1914 em Verneuil.»Túmulo abandonado, ao que se diz num cemitério particular onde os poderes públicos de Bordéus não podem intervir; e por isso num avançado estado de degradação;e com o sepultado já a preparar-se, talvez, para o destino comunitário e anónimo da vala comum. 
[Aníbal Fernandes]

Palavras Aladas – Maria Filomena Molder conversa em torno do desenho com Cristina Robalo

Palavras Aladas – Maria Filomena Molder conversa em torno do desenho com Cristina Robalo
Maria Filomena Molder, Cristina Robalo


ISBN 978-989-568-016-0 | EAN 9789895680160 

Edição: Junho de 2022 
Preço: 16,98 euros | PVP: 18 euros 
Formato: 14,50 × 20,5 cm (brochado, com badanas) 
Número de páginas: 184 (a cores) 

Com o apoio da Fundação Carmona e Costa e da DGArtes


Cristina Robalo: «Conversas em torno do desenho» nasceu do desejo de compreender, nas mais variadas traduções e desmultiplicações, o Desenho. Ao dar voz a artistas e teóricos/pensadores — seguindo e traçando o caminho realizado por cada convidado a participar —, este projecto tem como objectivo criar uma colecção que revele não a representação do desenho como obra, projecto ou estudo, mas o Desenho da obra e de si. 



De onde vêm as imagens? 
Vêm dos nossos olhos, dos nossos ouvidos, da nossa boca, das nossas mãos, do nosso nariz, dos sentidos em acção, não os sentidos descritos anatomicamente, vêm dos aromas, o tal vento de Eduardo Chillida, o espaço e o tempo: «Não é o vento um espaço de tempo e aromas?». 

Quais são as imagens do cheiro? 
O cheiro é um sistema de convocatórias. Nós não temos imagens diferidas, representáveis, do cheiro. Isso é muito importante! Como é que nós transmitimos o aroma do vento? Sentindo o vento e aquilo que o vento arrasta. E o tempo tem a ver com isso. Portanto, quando se fala do aroma do vento, para quem quer compreender a imagem, tem de evocar e, no melhor dos casos, voltar a sentir essa experiência. Por outro lado, o aroma vem das mãos, de todos os ofícios, da relação amorosa e da guerra, mas a caça não é um ofício! 

O que é a caça? 
Como diz Benjamin, a caça é uma imagem da vida (a primeira, em rigor), com particular potência para a compreensão da relação entre vestígio e aura. Ouça-se a maravilhosa cantata de Béla Bartók (Cantata Profana. Os Veados Mágicos, obra para orquestra, duplo coro misto, tenor e barítono, de 1930). Em Semear na Neve (Relógio D’Água, 1999), no capítulo «Aura e vestígio», faço uma análise dessa Cantata e estabeleço um vínculo com os conceitos benjaminianos. É uma história sobre nove irmãos a quem o pai não tinha ensinado nenhum ofício. Eles só sabiam caçar e um dia sofrem uma metamorfose irreversível, transformando-se em nove veados mágicos. Mais tarde, quando os homens começam a trabalhar a terra e a tecer ou a moldar um vaso, a vida passa a ser vista através desses actos oficinais.

Lisboa Vista por Dentro


Lisboa Vista por Dentro
João Appleton 

Prefácio de Raquel Henriques da Silva 
Fotografias de Pedro Tropa 
Design gráfico de Pedro Falcão 

ISBN 978-989-568-033-7 | EAN 9789895680337 

Edição: Julho de 2022 
Preço: 18,87 euros | PVP: 20 euros 
Formato: 14,5 × 20,5 cm (brochado) 
Número de páginas: 348


«Admiro a escrita quase martelada, aparentemente pouco literária, indo direita ao assunto: escrita de engenheiro, dir-se-ia. Todavia, só aparentemente é assim, e foi essa ambivalência a razão da escolha da epígrafe [do meu artigo]: “(…) tanto tenho cosido paredes rasgadas que me sinto uma espécie de alfaiate dos prédios antigos, sempre de fatos à medida, sempre com boas linhas, agulhas e tesouras.”»
Raquel Henriques da Silva, no Prefácio 



«Num dia de finais de 80, já percorridos muitos quilómetros de ruas e travessas, e vistos milhares e milhares de metros quadrados de edifícios quase todos anónimos e praticamente todos em mau estado, percebi também que tinha encontrado o meu destino, que definitivamente estava ali, na história desses edifícios e dessa cidade.» 
«Há já muitos anos, a minha vida profissional foi-se encaminhando para novos destinos, quando fui deixando de ser especialista em estruturas, que nunca quis ser apenas, para me transformar, ou melhor, me ir paulatinamente transformando num generalista da construção, com interesse especial pela sua história e pelas histórias de vida dos edifícios que são, afinal, a história da própria cidade. 
E nessa caminhada, feita com gosto, mas muitas vezes a sós, Lisboa teve um papel central, talvez porque seja a minha cidade e a cidade que sinto como minha, nas suas paredes e nas calçadas, no seu ar simultaneamente chique e decadente, das tristezas que se desprendem dos seus fados, cruzados com a alegria de uma luz sem par. 
É sobretudo a Lisboa das colinas que me encanta, que tento ver de todos os ângulos possíveis, de miradouros, de largos e ruas, sobretudo quando se consegue não ver a degradação de tantos prédios, a vegetação a crescer nas casas abandonadas, saboreando a cascata de telhados de muitos vermelhos que parecem escorregar lentamente pelas encostas até irem beijar o vale e o rio.» 
[João Appleton]

Imagem em Fuga: Júlio Pomar, Menez e Sónia Almeida

 

Imagem em Fuga: Júlio Pomar, Menez e Sónia Almeida

Organização de Sara Antónia Matos
Textos de Sara Antónia Matos, Maria Quintans, Júlio Pomar
Design gráfico de Oh!Mana

ISBN 978-989-568-019-1 | EAN 9789895680191 

Edição: Junho de 2022 
Preço: 18,87 euros | PVP: 20 euros 
Formato: 17 × 21 cm (brochado) 
Número de páginas: 178 (a cores) 

Com o Atelier-Museu Júlio Pomar 

Edição bilingue: português-inglês



«Imagem em Fuga: Júlio Pomar, Menez e Sónia Almeida» dá seguimento ao programa de exposições do Atelier-Museu que, regularmente, procura cruzar a obra de Júlio Pomar com a de outros artistas, de modo a estabelecer novas relações entre a obra do pintor e a contemporaneidade. 





Esta exposição pretende pensar o modo como o trabalho de Júlio Pomar se cruza com o trabalho de Menez, com quem manteve uma relação epistolar e artística de grande cumplicidade e admiração, e o de uma pintora de uma geração mais nova, Sónia Almeida, para quem o trabalho de Menez foi referência no tempo de faculdade. Em torno da ideia de influência e contaminação em arte (tomando o entendimento desses conceitos como produtivo e não pejorativo), procura explorar-se o modo como as imagens se fixam e simultaneamente nos fogem. 
O título, «Imagem em Fuga», é motivado pelo interesse que Sónia Almeida mostrou na obra de Júlio Pomar, nomeadamente nos painéis do Cinema Batalha, frescos pintados sobre a parede, no final da década de 40, e mandados destruir logo de seguida, por intermédio da PIDE: imagens desaparecidas, apagadas, inacessíveis desde então. Dessas imagens que nos fogem e das quais hoje resta apenas documentação (fotografias, desenhos, projecto e cartas que testemunham a censura a que a obra foi sujeita) nasceram contágios que remanescem agora no projecto de Sónia Almeida para o Atelier-Museu.
[Sara Antónia Matos] 

A pintura de Menez ou esta ópera — vejo-as ambas neste teclado. Negaça do vivido da escrita, o objecto palavra parece às vezes não andar longe. Por negaça e poder de aparência: consignar num lugar o que nele não está, a claridade fugaz daqueles passos em que a voz se projecta para além do desejo ou da recusa de saber. Cerrem-se as pálpebras: já a imagem se tece. Mas a palavra imagem é ainda rígida. Substituí-la por: o que se respira num lugar de passagem, fluxo, visitação. Eis o que dei comigo a conspirar, passando de ratoeira para ratoeira pela mão traiçoeira da palavra. Sobre, ou a partir da pintura de Menez. Pintura a que chamaria metafísica se os classificantes do inclassificável não tivessem posto o adjectivo em saldo. 
[Júlio Pomar]

Debaixo da Pele

 

Debaixo da Pele
Miguel Telles da Gama

Textos de Ana Ruivo, Carlos França, Delfim Sardo, Inez Teixeira, João Silvério, Jorge Silva Melo, José Luís Porfírio, Rita Lougares & José Berardo

ISBN 978-989-568-030-6 | EAN 9789895680306

Edição: Julho de 2022
Preço: 42,45 euros | PVP: 45 euros
Formato: 24 × 29 cm (brochado, com badanas)
Número de páginas: 360 (a cores)

Com o Museu Berardo e o apoio da Fundação Carmona e Costa

Edição bilingue: português-inglês


João Silvério: «imagens, palavras, sons, fragmentos, molduras, palcos, amor, signos, desejo, estórias e história, sexo, cinema, corpos e figuras, dor, música, prazer, planos, geometria, desenho, solidão, pintura, excesso, resgate, euforia, virtuosidade, disciplina, revisitação… Estes epítetos, adjectivos, substantivos ou qualificações podem estar associados ao trabalho de Miguel Telles da Gama (…) enquanto caleidoscópio imaginário de um trânsito de imagens que se foi tornando mais presente e mais voraz no nosso quotidiano.» 



Miguel Telles da Gama nasceu em 1965 em Lisboa, cidade onde vive e trabalha. Debaixo da Pele, com curadoria de José Luís Porfírio, é a primeira grande exposição deste pintor e desenhador português, reunindo um conjunto de 61 obras. 
Tendo-se iniciado nos anos noventa, a obra de Miguel Telles da Gama consiste num conjunto de séries que se vão renovando numa constante procura e inquietação. Muito influenciado pela literatura e pela estética do cinema dos anos cinquenta e sessenta, o artista vai construindo e desconstruindo as suas memórias do quotidiano. As suas pinturas e os seus desenhos, de notável virtuosidade e mestria, têm um carácter narrativo desconexo, propondo um pensamento benjaminiano que nos permite encontrar ligações nos cruzamentos dessas imagens, orientadas para a crítica social, moral e ética, e que nos convoca a formular novos pensamentos. 
[Rita Lougares] 

É importante conhecer o território a partir do qual se constrói esta antologia, até porque ela é uma escolha e não um resumo; é um trabalho dentro de outro onde o espaço conta mais do que o tempo. Esta exposição é, simultaneamente, o mais recente projecto de Miguel Telles da Gama e um repositório de três décadas em que os projectos contam mais, ou são mais relevantes, do que as exposições, pois são mais extensos, podendo abarcar várias mostras num mesmo projecto. 
Olhando o percurso deste artista, desde as primeiras exposições em 1990 até hoje, o que ressalta imediatamente é uma pulsão transformadora contínua, sinal de uma insatisfação permanente que não se instala nem se acomoda numa qualquer repetição; cada projecto é também um ciclo que se abre, se prolonga e se fecha, e que, por vezes, deixa adivinhar soluções futuras. 
[José Luís Porfírio]

Poetry as an Echological Survival

Poetry as an Echological Survival 
Nuno da Luz

Textos de Margarida Mendes, Nuno Crespo, Nuno da Luz, Stefan Helmreich 

ISBN 978-989-9006-72-0 | EAN 9789899006720 

Edição: Junho de 2022 
Preço: 18,87 euros | PVP: 20 euros 
Formato: 16,5 × 24 cm (encadernado) 
Número de páginas: 176 (a cores) 
Com a Universidade Católica, Escola das Artes, CITAR 

Edição bilingue: português-inglês


Que a natureza seja um poder circular que ciclicamente retorna a si mesma poderia ser uma constatação a partir da qual todo o trabalho de Nuno da Luz tem começado. Emerson refere-se ao scholar, mas as suas palavras podem facilmente transferir-se para aquela que é a dinâmica das pesquisas artísticas. 



A maneira como nos tem feito escutar o vento, a energia produzida pelo deslocamento das massas aquáticas nas ondas, a superfície e a profundidade, transportam-nos de um modo poético para uma ideia de paisagem sonora que se constitui como uma dobra: por um lado, detém toda a dimensão da paisagem na sua dimensão contemplativa, subjectiva e experiencial; por outro, torna evidente o modo como o descontrolo sonoro contemporâneo é um elemento de destruição, desequilíbrio e devastação de imensas formas de vida. Este livro vive nessa duplicidade: é um dispositivo poético de contemplação e imersão na paisagem, na vida e no mundo através, fundamentalmente, de experiências sonoras, e é um instrumento ecológico destinado à nossa sobrevivência. 
[Nuno Crespo] 

Nos trabalhos de Nuno da Luz, os meios do vento e da água são transduzidos em diversas formas tecnológicas de registar o ambiente. Cartografias políticas e climáticas entram no espaço expositivo oferecendo novos entendimentos dos meios ambientais. O espaço para a interpretação de dados e fruição estética opera a partir de um interstício mínimo entre o evento, a sonorização e a reposição, onde a turbulência inesperada e a qualidade repetitiva das condições climatéricas em mutação permitem que o ato de deteção tecnológica ocorra; um registo do comum que é poeticamente traduzido a partir da sua instanciação inefável. 
[Margarida Mendes]

quinta-feira, 21 de julho de 2022

Espinosa e o Estado dos Hebreus – Ensaios de Filosofia Política


Espinosa e o Estado dos Hebreus – Ensaios de Filosofia Política 
António Bento 


ISBN 978-989-568-032-0 | EAN 9789895680320 

Edição: Junho de 2022 
Preço: 20,75 euros | PVP: 22 euros 
Formato: 16 × 22 cm (brochado, com badanas) 
Número de páginas: 368 

Com o apoio do Grupo de Filosofia Prática LabCom.IFP


Este livro reúne um conjunto de ensaios consagrados a problemas e a conceitos próprios da Filosofia Política. O fio cronológico adoptado na ordenação dos capítulos, começando na Baixa Idade Média, estende-se à Proto-Modernidade e termina na Contemporaneidade.



Contudo, mais do que a extensão de um arco temporal normativamente circunscrito, o que aqui está verdadeiramente em causa são os usos da linguagem na política e, consequentemente, o carácter ficcional dos conceitos em Filosofia Política. Em poucas palavras, pode dizer-se que é este o objecto comum aos diferentes ensaios aqui coligidos e que é também este o tipo de unidade a que eles podem modestamente aspirar. 
Sabemos bem que, nos casos mais afortunados, os conceitos de Filosofia Política não só constituem uma língua própria dentro da língua da Filosofia, como forjam todo um léxico, uma sintaxe, e por vezes mesmo um estilo, com uma fisionomia própria e uma vida autónoma. No entanto, ir hoje atrás do que Maquiavel, há mais de quinhentos anos, chamou a «verdade efectiva» da política, implica muitas vezes, como observou Friedrich Nietzsche, que «os filósofos já não possam contentar-se em aceitar os conceitos que lhes são dados apenas para os limparem e os fazerem brilhar, antes é necessário que comecem por os fabricar, criar, formular, e que persuadam os homens a recorrer a eles». É, sem dúvida, esse singular gosto filosófico ou afecção pelo «baptismo do conceito», como alguém recentemente lhe chamou, que caracteriza os grandes clássicos de Filosofia Política, sejam estes antigos, medievais, modernos ou contemporâneos. Disso, procurarão dar conta, espera-se, os ensaios que o leitor tem diante dos olhos. 
[António Bento]

Bem Comer & Curiosidades


Bem Comer & Curiosidades 
José Quitério 


ISBN 978-989-8566-86-7 | EAN 9789898566867 

3.ª edição: Abril de 2022
Preço: 26,42 euros | PVP: 28 euros
 Formato: 15,5 × 22,5 cm (brochado) 
Número de páginas: 592


Miguel Esteves Cardoso: «Eu já sabia (mas nunca tinha visto) que José Quitério é o crítico gastronómico mais culto, justo e democrático dos nossos tempos.» 



Chega-me às mãos um festim natalício farto como uma cesta de Natal de se mandar a ministro: as Histórias e Curiosidades Gastronômicas, de José Quitério, que Portugal tenha na galeria dos seus varões. […] Ah, meu caro José Quitério, como você me faz bem à minha gota, ao meu ácido úrico, como me afaga as entranhas e o coração. 
GUILHERME FIGUEIREDO, O Globo (Rio de Janeiro), 25/12/1992 

Fim-de-semana à luz de Outono, o Guincho em horizonte deserto. Uma sopa de lagostins em tigela coberta com massa folhada e um branco da Quinta da Gaivosa verdadeiramente a calhar. Lembro-me de José Quitério na sua arte de escrever e de saborear escrevendo. 
JOSÉ CARDOSO PIRES, O Independente, 29/11/1996 

Mas no fundo, no fundo, o que eu procuro sempre é a crónica do José Quitério que é, para mim, uma espécie de Nemésio da arte gastronómica, e que me parece sempre que escreve para mim… 
JOÃO LOBO ANTUNES, Expresso, 5/01/2013 

José Quitério é um dos grandes prosadores do nosso tempo. Porventura o maior. Um jornalista? Sim, um jornalista, um escritor, um erudito, um homem de cultura, um excelente conversador. Reli, outro dia, com imenso prazer o seu Escritores à Mesa, confirmando uma vez mais a qualidade da sua escrita. […] Durante anos a fio, tenho lido as palavras matizadas de José Quitério de uma transparência fluente em que a ironia e a graça se combinam com um hábil domínio dos vários estratos de linguagem, desde o vocabulário vivo, não raro surpreendente, à construção irónica que apela a um leitor capaz de decifrar as escalas do subtexto. 
MÁRIO DE CARVALHO, facebook, 6/09/2013

quinta-feira, 7 de julho de 2022

«André Barata e a solidariedade discreta das coisas»


 
1.
«O que há a fazer é sermos muito melhores a apanhar boleias, do sol, do mar e da inteligência técnica da vida natural do mundo. Tentarmos viver sendo do mundo, cada vez mais do mundo, compreendendo e respeitando a sua inteligência, e não num pós-mundo.» (André Barata, E se parássemos de sobreviver?, 2018, p. 72.)
«No humano, o que tem de estar em jogo é uma existência, não um existente. Mesmo se este fosse um deus. As últimas palavras de Cyborg Manifesto [de Donna Haraway, 1983] não poderiam ser mais iluminadoras desta concepção do humano: ‘Embora ambas estejam ligadas numa dança em espiral, eu preferia ser uma cyborg do que uma deusa.’ E Roy, já muito perto do final de Blade Runner, mata o seu próprio criador. Sobreviver aos limites, e às suas revoluções, significa manter as coisas humanas, apenas humanas. E para isso, não menos do que nos anos 80, faz sentido hoje sugerir: Let’s cyborg the Humanities!» (André Barata, O desligamento do mundo, 2020, pp. 112.)
«O segredo da matéria é ser memória.» (André Barata, Para viver em qualquer mundo, 2022, p. 72.)
2.
Percorrendo os três livros mais recentes de André Barata, entremeando-os com entrevistas dispersas, vídeos e comunicações avulsas do filósofo e professor da Universidade da Beira Interior, há uma obviedade tópica que se impõe, tanto mais necessária quanto mais prontamente a descartamos por ser, justamente, demasiado óbvia, por demais pegada à anódina e anónima contingência da vida. Concretizo: nenhum de nós, pura e simplesmente, é aquilo que diz ou julga ser na exorbitância incaptável do presente; ninguém condiz, num absolutismo total, com a sua presença instantânea, ou com o instante em que o presente ressalta e fugazmente se pensa como tal, isto é, como presente a acontecer. Ou seja: não caímos a cada momento de paraquedas no real, como se não tivéssemos connosco todo o nosso passado, toda uma insondável noite do mundo, de mundos que nem sabemos muito bem o que são, alguns deles feitos da mesma matéria que os sonhos, os desejos e as virtualidades com que vitalmente nos excedemos, como membros de uma espécie cuja medida do humano não tem feito outra coisa senão quebrar o molde, transgredir a medida.
Existir no momento presente, ou existir na plenitude humana, comparecendo plenamente com aquilo que somos, com os outros, os lugares, as coisas e os animais, acontece sempre a meio, in medias res, como se apanhássemos «boleias», para usar uma imagem de André Barata. Quer a título individual, indo à boleia de tudo o que contribuiu, directa e indirectamente, para que sejamos o que somos hoje, com as nossas convicções e dúvidas, as areias movediças da nossa identidade, mais os livros lidos, os filmes vistos, as memórias, encontros e afinidades electivas. Quer a título transpessoal, indo à boleia do que nos situa historicamente como a espécie animal que somos, conscientes da irreversibilidade dos acontecimentos históricos, cientes das progressivas mutações culturais de que somos, com maior ou menor sentido crítico, ora sujeitos ora objectos, cúmplices da espiral onde barbárie e cultura, ou os monstra e os astra, progridem juntos. À maneira das pranchas com que Aby Warburg compôs o seu atlas Mnemosyne, no princípio do século, espacializando a ordem do tempo, espalmando as estórias da História: somos, a cada segundo passa, contemporâneos de tudo e de todos, vizinhos da arte rupestre de Lascaux ao pé das câmaras de gás de Treblinka, dispondo lado a lado um solene ícone medieval e o ar de pose numa selfie.
Acontecemos, aqui e agora, com tudo isto. Presumir o contrário é fazer do presente um tempo invivível, que passa sem acontecer verdadeiramente, alienado em relação a nós, e nós em relação a ele.
De resto: «Como começar pelo início, se as coisas acontecem antes de acontecer?» – interroga-se a voz que narra em A Hora da Estrela (1977), de Clarice Lispector. Neste sentido, estamos continuamente a abrir a possibilidade de um recomeço, estamos sempre em vias de recomeçar no dorso desta viagem. Como visitantes que, justamente, não somente passam pelos lugares, como são também atravessados por eles: «É a minha própria casa», escreve Maria Gabriela Llansol, «mas creio que vim fazer uma visita a alguém» (Um Falcão no Punho, 1985). Sem o peso oneroso do domínio das coisas, nem o poder que advém da ilusão de tudo conhecer; mas, pelo contrário, tornando as coisas, os lugares – «a minha própria casa» – e os outros, humanos e não-humanos, como formas de companhia, outros modos de presença que colorizam e ampliam o mundo em que estamos e o que nele(s) irradia surpresa, dúvida, abismo.
3.
Recomeço, por isso, com o poema «O Rei de Ítaca» de Sophia de Mello Breyner Andresen, do livro O Nome das Coisas (1977):
civilização - poesia - Sophia - O Rei de Ítaca
A consequência extrema do «erro» em que estamos, na qualidade de figurantes exímios desta «civilização», foi a mão ter-se desligado do pensamento. O pendor sentencioso dos dois primeiros versos, o seu recorte ferino de clareza, o rigor da simplicidade, como se Sophia não mais fizesse do que legendar a própria vontade imanente de o mundo falar de si por palavras humanamente exclusivas – tudo isto contribui para acentuar o logro civilizacional, a impostura embandeirada de um «conhecimento» elevado à condição de fazer sistema, assente em abstracções, como os intocáveis arquétipos de Platão, desmerecendo sempre o real sensível em nome de uma hipótese de mundo a que, porventura, só pela morte acedemos. A singularidade de Ulisses, segundo a voz do poema, reforça o estatuto fraudulento deste saber: o «rei de Ítaca», ardiloso aventureiro da Odisseia homérica, não se deixava ensimesmar pela autoridade que detinha, exibindo a famosa astúcia como Narciso no espelho da água. O verdadeiro saber seria indiscernível do contacto com os utensílios e a terra, como se aí Ulisses fundasse, com os seus servos, artesãos e camponeses, uma comunidade horizontal, lançando à terra a primeira semente de uma democracia por vir. Já num poema anterior do mesmo livro, «Esteira e Cesto», como outra aba de um mesmo díptico que o poema «O Rei de Ítaca» completaria, Sophia reitera este sentido integral de sabedoria como um entrançamento, esse laço profundo entre o pensamento e a mão:
O Rei de Ítaca - poesia - Sophia - filosofia
Sophia usa o verbo «desligar», e André Barata explora os meandros do «desligamento» na contemporaneidade, naquele que é o segundo de três livros de filosofia social, editados pela Documenta: O desligamento do mundo e a questão do humano (2020). Antes deste havia publicado E se parássemos de sobreviver? Pequeno livro para pensar e agir contra a ditadura do tempo (2018), fechando este tríptico com o tom saudavelmente optimista do livro Para viver em qualquer mundo. Nós, os lugares e as coisas (2022).
Poder-se-ia arriscar esta pergunta, retomando a denúncia de Sophia: será possível o pensamento religar-se à mão? E que significa isso nos tempos que correm – tempos, literalmente, que correm, que derrapam, que expulsam toda e qualquer possibilidade de pausa, interrupção, atrito? E em que condições pode acontecer esse religamento, ou que condições é urgente mudar para que o pensamento religado à mão não figure tão-só como um eloquente desvario, mera pólvora seca que se perde, inaudível, no ruído geral?
4.
André Barata não é um apocalítico. Quer dizer: não se deixa alinhar pela tradição judaico-cristã de pensamento de que somos herdeiros, fazendo coincidir no Apocalipse um momento de revelação e um desastre irreversível. Somos tentados a interpretar situações de maior agudeza como se de escolas se tratassem: num momento de crise, em instantes de aflição, estará alhures uma lição por decifrar, um sentido latente com o qual a dor se redime e a aprendizagem se eleva. Nesta linha – e não faço mais do que parafrasear um outro filósofo, Peter Sloterdijk –, o instante de maior clarividência, como portas e janelas escancaradas das quais irradiasse a mais límpida verdade, dar-se-ia apenas no colapso do mundo, no fim de todos os fins, quando já não restassem mais tempo nem mais algum lugar para podermos, enfim, recomeçar o estado das coisas, reparar o erro, falhar melhor.
É urgente, por isso, romper com este elo indefectível entre clarividência e apocalipse, entre eclosão moral e irreversibilidade. E é a esse desafio que André Barata se lança: não ser apocalíptico, como mais um arauto do fim que recusa a vida, na sua multiplicidade, em nome de um qualquer paraíso perdido consabidamente irresgatável. No entanto, esta atitude filosófica exige, ao mesmo tempo, que não se oblitere o que é, de facto, um apocalipse em curso, a todos os níveis, como um feixe simultâneo de correlativas tragédias: impossível fugir às responsabilidades trazidas pelos cataclismos ambientais, as alterações climáticas, as clivagens atrozes no domínio económico, as crises migratórias, as tensões sociais crescentes, a violência estatal, as guerras, a desumanização. Repare-se como o efeito paralisante desta listagem, acentuando a nossa impotência perante estas enormidades insolúveis, parece apelar subterraneamente aos nossos instintos tanatológicos: como se o mundo, enquanto totalidade absurda, devindo este não-lugar inabitável que não sabemos reparar, merecesse sucumbir de uma só vez.
Reconhecendo à partida que os problemas globais, justamente porque o são, se condicionam uns aos outros, que o estado de crise é a regra, e não a excepção, no modo de existência do capitalismo, André Barata propõe que se deslasse a espessura impenetrável desta imagem suicidária do mundo – começando por deslassar a imagem contínua do tempo com que este mundo recai sobre nós, como um penedo colossal que, todos os dias, de hora em hora, faz reincarnar no comum dos mortais a danação de um Atlas ou um Sísifo.
Um tempo contínuo, achatado, aplanado – um tempo que André Barata descreve como «sem fissuras» rege as nossas existências na era do capitalismo global. Como um tempo em estado puro, logo transcendental, e por isso imunizado contra a liminar circunstância de sermos corpos, de existirmos à superfície da Terra, condicionados pela nossa mortalidade e duração. Um tempo que surge já dado, como dado bruto, que invalida o inesperado da nossa presença, como se, na prática, não existíssemos. Ora, enquanto não pudermos levar existências temporais que tenham sentido – o direito pleno a viver e não a sobreviver –, enquanto se reificar a aparência de que o real já existe todo feito, e não por fazer, não nos podemos considerar genuinamente como sujeitos políticos.
Por sua vez, a partir do momento em que a razão de ser do trabalho é integralmente confiscada pela necessidade de ter rendimento, por um lado, e se o rendimento auferido nunca é suficiente para que, num plano geral, uma vivência plena se demarque de uma lógica de sobrevivência, por outro, podemos falar sem escrúpulos de uma «ditadura do tempo»: vidas postas ao serviço de uma produtividade ilimitada, de uma obsolescência consumista, de uma ubiquidade quantificadora, subjugando-se a soberania das escolhas políticas aos ditames económico-financeiros (a este nível, segundo André Barata, o sistema de crédito social chinês constitui um dos exemplos da impessoalização do tempo, tomando neste caso proporções inquietantemente distópicas). Na era da automação cada vez mais evoluída, quando parecem estar reunidas condições suficientes para libertar os humanos de tarefas exequíveis por máquinas, os humanos são cada vez mais interpelados enquanto máquinas: como se munidos de um prosaico interruptor, pudessem ser ligados e desligados consoante as necessidades de produção, as metas a cumprir, os lucros a gerar.
Esta dessubjectivação do tempo, esfarelando o que há de segredo, de imaginário e de visceral numa singularidade, tornando-a puro objecto manuseável e consumível, encontra o seu átimo nas redes sociais, no tempo contínuo da nossa presença online como o de uma disponibilidade total, sem hiatos. Da mesma forma que a razão instrumental extractivista se serve da Terra como um meio inesgotável para obter recursos naturais, também o sistema algorítmico reduz o pretenso enigma existencial de cada um à transparência inerte de uma base de dados. Existimos virtualmente na medida em que passamos a integrar, sem fissuras, o continuum comunicativo, os fluxos de informação, os ritmos comuns da aceleração, esbatendo-se as fronteiras entre tempo de trabalho e tempo de lazer, entre ruído e silêncio. «A presença de tudo. O presente de tudo. O simultâneo. O número. A nitidez que impede» – eis como Rui Nunes apresenta, em Baixo Contínuo, a impossibilidade de sermos mundo no mundo, quando este se desrealiza e se evade para os universos da desmaterialização virtual, um dos muitos «escafandros» que, segundo André Barata, usamos para forrar corpos, coisas, experiências, lugares, cada qual preservado no seu invólucro, impermeável à boa contaminação da vida pela vida, intolerante à espera, ao silêncio, à ausência de reacção.
Escreve o filósofo: «Forçarmo-nos a ser abstractos em vida, a incorporar a abstracção no concreto é como uma dominação da teoria sobre a práxis, ou da necessidade sobre a contingência, ou ainda, de uma concepção unilateral de natureza, desligada, mas opressora da cultura e da história. Em vez da reivindicação de que a natureza é, afinal, cultura, pelo contrário impõe-se a ideia, como uma necessidade incontornável, de que a história é natureza por outros meios. A globalização é, na verdade, só o nome da situação planetária de já só termos um espaço concreto, um tempo concreto e um lugar concreto, como se fosse a inevitabilidade de uma natureza das coisas. E não é exagero ver na resposta das sociedades à pandemia da covid-19, nos anos 2020 e 2021, talvez o mais global e acelerado exercício de massiva incorporação do abstracto nas vidas concretas. Se subsistiam temporalidades e espacialidades até então, no grande confinamento transmutaram-se em abstracções concentradas na casa de cada um, diante de monitores, a preencher o campo visual todo, sobrando só restos periféricos» (Para viver em qualquer mundo, pp. 16-7).
5.
«Ulisses rei de Ítaca carpinteirou seu barco». Saramago sabia de cor este verso e foi com alegria que o citou numa carta endereçada a Sophia de Mello Breyner, felicitando-a pelo Prémio Camões, em 1999. À luz da imensa e inventiva obra do escritor, conhecendo um pouco do seu trilho profissional anterior ao ofício da escrita – a dada altura, trabalhara como serralheiro mecânico –, sublinhando as convicções materialistas no seu modo de entender as dinâmicas dos humanos no mundo, este verso tão claro de Sophia, de uma nudez quase rude na sua afloração poética, parece criar uma feliz ressonância com o tempo vivível nos seus romances, os gestos demorados no fazer das coisas, a compreensão generosa da matéria relacional.
Quer se trate da construção da passarola no Memorial do Convento, esse prodígio tecnocientífico que muito deve aos olhos mágicos de Blimunda, quer se trate do barro elementar de Cipriano Algor, o oleiro do romance A Caverna (2000), com o qual vai moldando cântaros, primeiro, e bonecos decorativos, depois. Seja, portanto, para subverter as leis da física com altos voos, seja para rechear o espaço doméstico com utensílios mundanos, as personagens de Saramago tocam de facto nas coisas, contemplam a matéria de que são feitas, reparam nos seus veios, rugosidades e estrias, atestando a alteridade incontível da sua presença. Não cessam, pois, de «carpinteirar» o real que têm por morada e memória. São personagens que dão tempo ao tempo, procurando existências fruíveis, com «aroma» (Byung-Chul Han), cultivando relações de sentido entre si, os lugares e as materialidades que são «o abecedário em relevo do mundo» (Saramago, A Caverna, p. 83). Um pouco como os skaters, segundo André Barata.
Os skaters existem nos espaços da cidade à revelia da maré desmaterializante da ubiquidade digital. São uma espécie de tribo resistente, fazendo lugar nos esconsos urbanos, criando uma comunidade que reabilita o sentido de um lanço de escadas, de um gradeamento, de um insuspeito ângulo na esquina. Contra a assepsia homogeneizante dos não-lugares, meros sítios de passagem onde o tempo não vinga, os skaters criam efectivamente lugares por onde passam: com os seus truques acrobáticos, a sua alegria de corpos presentes, reacendem uma espécie de fulgor mágico na cinza urbana do betão. O próprio corpo está, ou acontece, em absoluta imanência, comparecendo plenamente na prática desta modalidade: é, pois, um corpo de carne e osso aquele que ressalta no skate, que arrisca a fatalidade do choque, dos joelhos em ferida, de um arranhão na face. Um corpo que convive alegremente com a sujidade, a impureza do chão, o suor e os cheiros, a profusa opacidade do mundo, atenuando-se na prática a neurose imunitária com que, de um modo geral, nos protegemos do que é exterior aos nossos corpos individuais (a chamada «sociedade paliativa», segundo Byung-Chul Han, que parece totalmente intolerante à dor e a um convívio salutar com as próprias fragilidades).
Filhos indisciplinados da matéria, os skaters não se evadem para a espectralidade online, para modos de existência destituídos da visceralidade do corpo: pelo contrário, reafirmam-se enquanto matéria, humanos por entre o húmus, singularidades que eternizam, a cada pirueta ou deslize, o ápice fulgurante do agora. E que se eternizam, a si mesmos, no instante desse ápice, no imo da vertigem, como quem mata a própria morte na alegria de viver. Melhor: de conviver.
Tal como Ulisses visto por Sophia, nos skaters o pensamento continua ligado à mão. O que instiga André Barata a concluir o seguinte, num rasgo crítico que merece ser citado na íntegra: «Idealmente, a mais pura transparência, se perfeita, não tem materialidade. Como uma gravação digital não tem ruído. A perda da materialidade e de capacidade de sermos sujeitos vão lado a lado num tempo em que o processo global nos interpreta, acima de tudo, como ruído. O democrata e o trabalhador, as emoções de cada um deles, são tratados como ruído a canalizar para lugares em que se possam exprimir de forma inócua, sem perturbar os processos em curso e as suas metas de eficiência, metas cada vez mais intolerantes, desde logo com as crianças que não são ou não querem ser prodígios nas nossas escolas, depois com elas na rua, depois com a própria ideia de rua pública, anónima, de todos, depois com a liberdade, a do skater, mas também a do skater que há dentro de cada um.» (O desligamento do mundo, p. 73).
6.
E se parássemos de sobreviver? (2018) convida a que se interrogue radicalmente se o caminho que se tem vindo a trilhar no neocapitalismo pós-industrial constitui, primeiro, um verdadeiro caminho e, segundo, se deverá continuar a ser feito nos mesmos moldes sistémicos, visando as mesmas metas: maior competitividade, maior fluidez e flexibilização, índices de produtividade – este modo de ser neoliberal entranhado até aos ossos. E, daí, uma pergunta que urge ser feita: o que é, afinal, um caminho? E outra: para onde vamos – ou aonde somos levados?
Desconsiderar ou invalidar a cesura radical que este questionamento propõe implica a consolidação crescente do tipo de realidade que é a d’O desligamento do mundo (2020), um título passível de gerar alguns equívocos ingratos. Não se trata de interromper pontualmente o modo de existência neoliberal em que estamos embebidos – como quem decide desligar-se mais vezes, ou por hiatos temporais mais longos, de toda a conectividade online, abrindo menos vezes a conta do Facebook, desactivando notificações, ou respondendo a emails apenas a uma determinada hora do dia. O regime sobrevivencialista, afinal, convive tranquilamente com estes exercícios individuais, a par de sessões de mindfulness e outros paliativos que, em todo o caso, ajudam somente a conservar a ausência de alternativas ao status quo. Uma ausência que se reifica, precisamente, neste desligamento do mundo: desligamo-nos de uma ideia de mundo quando o transferimos para o rosário de instantes das redes sociais; desligamo-nos da matéria, da physis em clave pré-socrática, da plena assumpção de sermos corpos vulneráveis e mortais e, nesse sentido, que cuidarmos uns dos outros é fazer da finitude um infinito, vivendo a eternidade no que há de efémero nesta passagem pela Terra. Pelo caminho, desligamo-nos da condição irreversível do próprio planeta se continuarmos a consumir desmedidamente os seus recursos, desligando-nos dos restantes seres vivos, animais, vegetais ou minerais, quer por arrogância antropocêntrica, quer por cegueira desanimalizante (esquecemo-nos, inclusive, de que também somos animais). Desligamo-nos, por fim, das interrogações violentas, dos saltos de fé, do simples vagar, correndo o risco imponderável de boiar à tona das nossas dúvidas, sem a ansiedade de ver tudo esclarecido, tudo iluminado, num estalar de dedos.
Todos estes desligamentos simultâneos desaguam num modo de existir indissociável de uma condição de perda: perda de subjectividade, perda de real, perda de mundo. E o âmago transversal aos sete capítulos de Para viver em qualquer mundo (2022) passa, justamente, à revelia de certas presciências mais apocalípticas, por admitir que, seja em que planeta – neste ou noutro qualquer que venhamos a ocupar –, seja como for a convivência, humana ou pós-humana – entre membros da mesma espécie, ou tecendo laços com máquinas sencientes talvez dotadas de uma inteligência superior à nossa –, uma vida digna de ser vivida não pode escusar-se a pensar radicalmente sobre como experiencia o tempo, que sentido entrevê nas coisas, que gestão política e económica deseja para fundar comunidades mais justas e solidárias, ou o que significa fazer e densificar lugares no tempo-espaço em que se existe. Por isso, «o caminho nunca estará em termos medo de que as experiências de humanidade deixem de ser exclusivamente humanas, ou em estranhar poder conceber-se uma tecnologia tornada humana, a ponto de padecer de humanidade como os humanos biológicos. É só disto que se trata: uma materialidade relacional que urge restabelecer» (Para viver…, p. 37).
7.
Um dos traços mais notáveis na escrita de André Barata: a partilha de um tom comum com o imponderável dos seus leitores. A partilha de um tom comum reconhece, desde logo, que pensar filosoficamente sobre as coisas, os humanos e o mundo significa elevar as coisas, os humanos e o mundo à dignidade mesma daquilo que merece atenção filosófica, ou atenção simplesmente.
Não se enrodilha em abstracções alienantes, por maior que seja a sua exuberância conceptual, o que contribuiria, de um modo contraproducente, para rarefazer ainda mais o imo existencial do mundo em que estamos. (Seria, assim, como repetir os diálogos de Platão, chegando às mesmas conclusões acerca da inverdade deste chão que pisamos, por oposição a um céu supraceleste indigno dos olhos que temos.) Nem esbanja o autor citações eloquentes, de Martin Heidegger ou Hannah Arendt, com o intuito de reforçar a autoridade crítica dos argumentos expostos.
André Barata evita a tentação dos grandes edifícios teóricos, que procuram totalizar a visão sobre as coisas. Recusando um sistema de pensamento incorruptível ou à prova de bala, aceita a força imprecisa e imprevisível das contingências: o repto «Não se existe sem equívocos» (idem, 125) poderia servir, de facto, como princípio orientador das Humanidades de hoje. O autor deixa-se contagiar – e fá-lo, em muitas passagens, com um prazer indesmentível e uma alegria empolgante – pelos acidentes de percurso, pela «solidariedade enervada da errância» (idem, p. 130), pela prática originária da filosofia assente num questionamento radical sobre tudo. Como se reabilitasse, a cada bifurcação, a célebre máxima de Terêncio: nada do que é humano nos deve ser estranho. Ou, noutros termos, quase inversos: tudo o que é humano merece ser estranhado, se desse modo atrair outros olhares e renovados espantos.
Há clareza e simplicidade no modo de expor os temas e criar relações entre eles, mas nenhuma dessas qualidades sacrifica a exigência de complexidade, sobretudo quando o foco destes três livros está em aprendermos a «viver juntos», retomando André Barata a conhecida questão de Roland Barthes (Para viver…, p. 61). Viver juntos com os outros humanos, com as suas contradições, luzes e sombras, mas igualmente com as outras espécies vivas, as plantas, as pedras, à luz de uma assertiva «razão ecológica», em detrimento da esgotante razão instrumental. Viver juntos e conscientes de que, como em mais nenhuma fase histórica da evolução humana, nunca houve tanta abundância, em termos materiais, nem tantos meios práticos para resolver injustiças gritantes de natureza socioeconómica. Viver juntos com a perturbação essencial das várias linguagens artísticas – e André Barata vai da poesia de Luiza Neto Jorge ao corpo em performance de Jackson Pollock, sem esquecer o cinema, a arte popular por excelência, a partir de filmes como Solaris (Tarkovsky, 1972), Matrix (Wachowskis, 1999), Inception (Nolan, 2010) ou Uma História de Violência (Cronenberg, 2005).
Viver juntos. O contrário de sobreviver cada um por si, não obstante todos os signos contemporâneos que se empenham em obnubilar a crescente miséria ontológica, o enfraquecimento da linguagem e da sua espessura simbólica, a avalanche da solidão depressiva. Signos que vão do efeito de presença mediado pelas redes sociais à positividade tóxica propalada por influencers, empreendedores, até mesmo por investigadores humanistas que, dedicados à leitura como acto de resistência, se sentem impelidos religiosamente a picar o ponto no Facebook, a ceder à ansiedade produtivista de mostrar o mais recente artigo publicado ou a última conferência em que se participou.
Outras derivas. A partilha de um tom comum em André Barata religa-o, por exemplo, à envolvência desarmada que se sente ao lermos Trajectos Filosóficos (2019) e O Tempo Indomado (2020), do filósofo José Gil. A vulnerabilidade de quem, pensando sobre as coisas, nitidamente se deixa afectar por elas faz sobressair, aqui e ali, laços de admiração pelo trabalho ensaístico de Rosa Maria Martelo e de Silvina Rodrigues Lopes, mostrando como a exegese literária ou o comentário fílmico fazem necessariamente ressonância com a vida, e vice-versa. O mesmo se poderia dizer de uma reabilitação poética da linguagem, mesmo em contexto de reflexão filosófica, que aproxima certos rasgos de André Barata à cadência rítmica de Jean-Luc Nancy, companheiros de viagem nos trilhos da fenomenologia (exercícios possíveis: reler Herberto Helder, Rui Nunes ou Maria Gabriela Llansol à luz do que pensa André Barata sobre «a revolução relacional com a matéria», o encontro com «o irreversível» ou a heurística da «errância»).
Last but not least, salientar o optimismo gnosiológico deste filósofo português, ou a sua recusa em ceder a uma certa compulsão apocalíptica. A vontade de pensar-imaginar o futuro, restabelecendo a jouissance imanente da matéria e o direito congénito ao inesperado da vida, trazem à colação, por exemplo, (1) A Vida das Plantas (2019), de Emanuele Coccia (leia-se o capítulo «Copernicando, revolucionando», de André Barata, à luz ecológica da vida como «a forma por excelência do heliocentrismo», segundo Coccia, p. 123, em nome de um humanismo não-antropocêntrico); (2) o livro Novacene (2020), de James Lovelock, autor da célebre «hipótese de Gaia», segundo o qual é com naturalidade que devemos imaginar a nossa própria extinção como espécie, caso o futuro da Terra esteja destinado evolutivamente aos autómatos da bioengenharia, numa nova era que inclua no código da vida – RNA e DNA – a presença de códigos de informação digital que serão programados, já não por humanos, mas por andróides e ciborgues; ou (3) Mundo Subterrâneo (2021), de Robert Macfarlane, relatando viagens do autor a locais insólitos do planeta, desde grutas naturais em geografias remotas até a um conjunto de estruturas subterrâneas altamente complexas, montadas para resistirem a eventuais desastres nucleares ou a uma nova era glaciar. Exemplo notável de um ethos ecológico, Mundo Subterrâneo desperta no chão mais raso uma força incrivelmente mágica: «Quando observadas através dos olhos do tempo profundo, coisas que pareciam inertes ganham vida. Revelam-se novas responsabilidades. Uma sociabilidade existencial salta-nos à vista e à mente. O mundo torna-se nova e misteriosamente heterogéneo e dinâmico. O gelo quebra-se. As rochas sofrem marés. As montanhas vazam e enchem. A pedra pulsa. Vivemos numa Terra inquieta» (Mundo Subterrâneo, p. 26).
Uma brevíssima nota de André Barata, colocada na página 11 do livro Para viver em qualquer mundo, segue à boleia da inteligência sensível com que Robert Macfarlane desposa o sentido do chão. Nessa nota de abertura, poesia e pensamento conjugam-se para que nos seja endereçado este convite: «Até connosco as pedras dançam e flutuam. Basta aceitar a solidariedade discreta das coisas.» Basta aceitar, desdobrando este relacionamento solidário, as condições que potenciam o acontecimento do encontro. Não mais segundo o molde antropocêntrico e antropomórfico, não mais tomando os outros, os animais ou as coisas como meios que intensificam, ou corroboram, a imagem de humanidade que mais convém a um sentimento inegociável de poder dominante. Mas antes «na compreensão dos modos de ser humanos pela perspectiva da matéria, o que nela haja de fundamentalmente inerente à compreensão do que é uma relação» (Para viver…, p. 82). Como este «jornal esquecido» que o poeta Tomas Tranströmer reaprendeu a ver à luz do tempo profundo:
8.
A 18 de Junho de 2022, André Barata esteve em Castelo Branco, a convite da associação Terceira Pessoa, para participar na nona edição do «Serviço Público». Fim de tarde, dia de sol, ao ar livre: nas escadas do Jardim do Paço, uma plateia de várias idades, com experiências e motivações distintas, aparece para escutar e intervir, surpreendendo súbitos desvios, cavando enxertos no terreno movediço da conversa. Um encontro potenciado pelos livros de André Barata mas, sobretudo, pelo tom comum de certas angústias, de alguns nós apertados, de feridas em aberto que, com maior ou menor clarividência, com maior ou menor aparato crítico, apelam à contingência das vidas que somos, à pesagem dos nossos corpos na superfície do mundo. A época é esta, a Terra é aqui, os nomes são estes, por agora.
(Por agora? Soa a prémio de consolação, um lanho fatalista por onde o real nos dói, escoando. Mas agora não deixa de ser um deíctico: o que a mim me paralisa, em ti é recomeço. Que o agora devenha ágora, onde os corpos passam e se cruzam, onde a relação acontece e, por essa via, se relativizam os sentidos absolutos, assim como a imagem da época, da Terra e dos nomes que usamos.)
«Mas, afinal, o que é pensar?», arremessa alguém nos interstícios, uma voz elevando-se dos últimos degraus. E desnuda-se precisamente aí, na forma mais prosaica de se usar o discurso, um assomo intempestivo, flagrantemente pré-socrático. Primeiro, fazendo uma pergunta (perguntar é perturbar, fazer tremer a água morta do lago, sentir como é granulosa a dúbia lisura do consenso). Segundo, fazendo uma pergunta à imagem de quem acaba de nascer, como as crianças diante das nuvens ou das ondas no mar, nessa alegria desavergonhada de ver com as pontas dos dedos («o que é pensar?», «o que é o que é?», «porquê isto em vez de nada?», «porquê perguntar?» – há uma trapalhice alucinada neste elenco, espécie de vertigem que apetece estender, o gargalhar de uma criança que nos provoca com a sua vontade de vida). Depois, tocando nestes verbos indómitos, como «pensar», tão embalsados num pendor abstracto, reféns de um idealismo inacessível, espessamente livresco – e, todavia, naquelas escadas, o granito ainda quente, os arbustos em volta, eis que «pensar» vem à presença e nos pesa, é um lampejo pesante, um corpo com espessura, segundo Jean-Luc Nancy. O pensamento é, pois, matéria: não apenas ideia, evanescência mental ou ente abstracto, mas impacto no rosto, sobrolho franzido, presença nervosa. A pergunta estampa-se-nos toda na cara, devém muscular. Mexemos as mãos para que o «pensar» não se alue, agarrando-o à terra do corpo.
Pensar é matéria, tão opaca e tangível como a própria pele e a pele de quem se senta ao pé de nós. Uma distância na proximidade, um longe selado no perto. «Pensar» põe-nos, de facto, também ao pé de nós mesmos: ao lado das coisas, à beira dos outros. Não em vez das coisas, nem no lugar dos outros. Não para decifrar a esfinge, nem dominar a chave que desarmadilha este ou aquele sentido do mundo. Pelo contrário: para que um mundo de sentido manifestamente se aclare, diante de nós e connosco. Sabendo estar, reaprendendo a estar, animais rentes à orla do real, sem pedir nada em troca que não a «justa luz do dia» (Sophia). Na iminência de um recomeço, num encontro que dessele uma radiância de festa.
9.
De um poema de Carlos Poças Falcão, no livro Arte Nenhuma (2020), que dá a ver de forma tão jubilosa a solidariedade discreta entre nós, os lugares e as coisas:
1.
«O que há a fazer é sermos muito melhores a apanhar boleias, do sol, do mar e da inteligência técnica da vida natural do mundo. Tentarmos viver sendo do mundo, cada vez mais do mundo, compreendendo e respeitando a sua inteligência, e não num pós-mundo.» (André Barata, E se parássemos de sobreviver?, 2018, p. 72.)
«No humano, o que tem de estar em jogo é uma existência, não um existente. Mesmo se este fosse um deus. As últimas palavras de Cyborg Manifesto [de Donna Haraway, 1983] não poderiam ser mais iluminadoras desta concepção do humano: ‘Embora ambas estejam ligadas numa dança em espiral, eu preferia ser uma cyborg do que uma deusa.’ E Roy, já muito perto do final de Blade Runner, mata o seu próprio criador. Sobreviver aos limites, e às suas revoluções, significa manter as coisas humanas, apenas humanas. E para isso, não menos do que nos anos 80, faz sentido hoje sugerir: Let’s cyborg the Humanities!» (André Barata, O desligamento do mundo, 2020, pp. 112.)
«O segredo da matéria é ser memória.» (André Barata, Para viver em qualquer mundo, 2022, p. 72.)
2.
Percorrendo os três livros mais recentes de André Barata, entremeando-os com entrevistas dispersas, vídeos e comunicações avulsas do filósofo e professor da Universidade da Beira Interior, há uma obviedade tópica que se impõe, tanto mais necessária quanto mais prontamente a descartamos por ser, justamente, demasiado óbvia, por demais pegada à anódina e anónima contingência da vida. Concretizo: nenhum de nós, pura e simplesmente, é aquilo que diz ou julga ser na exorbitância incaptável do presente; ninguém condiz, num absolutismo total, com a sua presença instantânea, ou com o instante em que o presente ressalta e fugazmente se pensa como tal, isto é, como presente a acontecer. Ou seja: não caímos a cada momento de paraquedas no real, como se não tivéssemos connosco todo o nosso passado, toda uma insondável noite do mundo, de mundos que nem sabemos muito bem o que são, alguns deles feitos da mesma matéria que os sonhos, os desejos e as virtualidades com que vitalmente nos excedemos, como membros de uma espécie cuja medida do humano não tem feito outra coisa senão quebrar o molde, transgredir a medida.
Existir no momento presente, ou existir na plenitude humana, comparecendo plenamente com aquilo que somos, com os outros, os lugares, as coisas e os animais, acontece sempre a meio, in medias res, como se apanhássemos «boleias», para usar uma imagem de André Barata. Quer a título individual, indo à boleia de tudo o que contribuiu, directa e indirectamente, para que sejamos o que somos hoje, com as nossas convicções e dúvidas, as areias movediças da nossa identidade, mais os livros lidos, os filmes vistos, as memórias, encontros e afinidades electivas. Quer a título transpessoal, indo à boleia do que nos situa historicamente como a espécie animal que somos, conscientes da irreversibilidade dos acontecimentos históricos, cientes das progressivas mutações culturais de que somos, com maior ou menor sentido crítico, ora sujeitos ora objectos, cúmplices da espiral onde barbárie e cultura, ou os monstra e os astra, progridem juntos. À maneira das pranchas com que Aby Warburg compôs o seu atlas Mnemosyne, no princípio do século, espacializando a ordem do tempo, espalmando as estórias da História: somos, a cada segundo passa, contemporâneos de tudo e de todos, vizinhos da arte rupestre de Lascaux ao pé das câmaras de gás de Treblinka, dispondo lado a lado um solene ícone medieval e o ar de pose numa selfie.
Acontecemos, aqui e agora, com tudo isto. Presumir o contrário é fazer do presente um tempo invivível, que passa sem acontecer verdadeiramente, alienado em relação a nós, e nós em relação a ele.
De resto: «Como começar pelo início, se as coisas acontecem antes de acontecer?» – interroga-se a voz que narra em A Hora da Estrela (1977), de Clarice Lispector. Neste sentido, estamos continuamente a abrir a possibilidade de um recomeço, estamos sempre em vias de recomeçar no dorso desta viagem. Como visitantes que, justamente, não somente passam pelos lugares, como são também atravessados por eles: «É a minha própria casa», escreve Maria Gabriela Llansol, «mas creio que vim fazer uma visita a alguém» (Um Falcão no Punho, 1985). Sem o peso oneroso do domínio das coisas, nem o poder que advém da ilusão de tudo conhecer; mas, pelo contrário, tornando as coisas, os lugares – «a minha própria casa» – e os outros, humanos e não-humanos, como formas de companhia, outros modos de presença que colorizam e ampliam o mundo em que estamos e o que nele(s) irradia surpresa, dúvida, abismo.
3.
Recomeço, por isso, com o poema «O Rei de Ítaca» de Sophia de Mello Breyner Andresen, do livro O Nome das Coisas (1977):
civilização - poesia - Sophia - O Rei de Ítaca
A consequência extrema do «erro» em que estamos, na qualidade de figurantes exímios desta «civilização», foi a mão ter-se desligado do pensamento. O pendor sentencioso dos dois primeiros versos, o seu recorte ferino de clareza, o rigor da simplicidade, como se Sophia não mais fizesse do que legendar a própria vontade imanente de o mundo falar de si por palavras humanamente exclusivas – tudo isto contribui para acentuar o logro civilizacional, a impostura embandeirada de um «conhecimento» elevado à condição de fazer sistema, assente em abstracções, como os intocáveis arquétipos de Platão, desmerecendo sempre o real sensível em nome de uma hipótese de mundo a que, porventura, só pela morte acedemos. A singularidade de Ulisses, segundo a voz do poema, reforça o estatuto fraudulento deste saber: o «rei de Ítaca», ardiloso aventureiro da Odisseia homérica, não se deixava ensimesmar pela autoridade que detinha, exibindo a famosa astúcia como Narciso no espelho da água. O verdadeiro saber seria indiscernível do contacto com os utensílios e a terra, como se aí Ulisses fundasse, com os seus servos, artesãos e camponeses, uma comunidade horizontal, lançando à terra a primeira semente de uma democracia por vir. Já num poema anterior do mesmo livro, «Esteira e Cesto», como outra aba de um mesmo díptico que o poema «O Rei de Ítaca» completaria, Sophia reitera este sentido integral de sabedoria como um entrançamento, esse laço profundo entre o pensamento e a mão:
O Rei de Ítaca - poesia - Sophia - filosofia
Sophia usa o verbo «desligar», e André Barata explora os meandros do «desligamento» na contemporaneidade, naquele que é o segundo de três livros de filosofia social, editados pela Documenta: O desligamento do mundo e a questão do humano (2020). Antes deste havia publicado E se parássemos de sobreviver? Pequeno livro para pensar e agir contra a ditadura do tempo (2018), fechando este tríptico com o tom saudavelmente optimista do livro Para viver em qualquer mundo. Nós, os lugares e as coisas (2022).
Poder-se-ia arriscar esta pergunta, retomando a denúncia de Sophia: será possível o pensamento religar-se à mão? E que significa isso nos tempos que correm – tempos, literalmente, que correm, que derrapam, que expulsam toda e qualquer possibilidade de pausa, interrupção, atrito? E em que condições pode acontecer esse religamento, ou que condições é urgente mudar para que o pensamento religado à mão não figure tão-só como um eloquente desvario, mera pólvora seca que se perde, inaudível, no ruído geral?
4.
André Barata não é um apocalítico. Quer dizer: não se deixa alinhar pela tradição judaico-cristã de pensamento de que somos herdeiros, fazendo coincidir no Apocalipse um momento de revelação e um desastre irreversível. Somos tentados a interpretar situações de maior agudeza como se de escolas se tratassem: num momento de crise, em instantes de aflição, estará alhures uma lição por decifrar, um sentido latente com o qual a dor se redime e a aprendizagem se eleva. Nesta linha – e não faço mais do que parafrasear um outro filósofo, Peter Sloterdijk –, o instante de maior clarividência, como portas e janelas escancaradas das quais irradiasse a mais límpida verdade, dar-se-ia apenas no colapso do mundo, no fim de todos os fins, quando já não restassem mais tempo nem mais algum lugar para podermos, enfim, recomeçar o estado das coisas, reparar o erro, falhar melhor.
É urgente, por isso, romper com este elo indefectível entre clarividência e apocalipse, entre eclosão moral e irreversibilidade. E é a esse desafio que André Barata se lança: não ser apocalíptico, como mais um arauto do fim que recusa a vida, na sua multiplicidade, em nome de um qualquer paraíso perdido consabidamente irresgatável. No entanto, esta atitude filosófica exige, ao mesmo tempo, que não se oblitere o que é, de facto, um apocalipse em curso, a todos os níveis, como um feixe simultâneo de correlativas tragédias: impossível fugir às responsabilidades trazidas pelos cataclismos ambientais, as alterações climáticas, as clivagens atrozes no domínio económico, as crises migratórias, as tensões sociais crescentes, a violência estatal, as guerras, a desumanização. Repare-se como o efeito paralisante desta listagem, acentuando a nossa impotência perante estas enormidades insolúveis, parece apelar subterraneamente aos nossos instintos tanatológicos: como se o mundo, enquanto totalidade absurda, devindo este não-lugar inabitável que não sabemos reparar, merecesse sucumbir de uma só vez.
Reconhecendo à partida que os problemas globais, justamente porque o são, se condicionam uns aos outros, que o estado de crise é a regra, e não a excepção, no modo de existência do capitalismo, André Barata propõe que se deslasse a espessura impenetrável desta imagem suicidária do mundo – começando por deslassar a imagem contínua do tempo com que este mundo recai sobre nós, como um penedo colossal que, todos os dias, de hora em hora, faz reincarnar no comum dos mortais a danação de um Atlas ou um Sísifo.
Um tempo contínuo, achatado, aplanado – um tempo que André Barata descreve como «sem fissuras» rege as nossas existências na era do capitalismo global. Como um tempo em estado puro, logo transcendental, e por isso imunizado contra a liminar circunstância de sermos corpos, de existirmos à superfície da Terra, condicionados pela nossa mortalidade e duração. Um tempo que surge já dado, como dado bruto, que invalida o inesperado da nossa presença, como se, na prática, não existíssemos. Ora, enquanto não pudermos levar existências temporais que tenham sentido – o direito pleno a viver e não a sobreviver –, enquanto se reificar a aparência de que o real já existe todo feito, e não por fazer, não nos podemos considerar genuinamente como sujeitos políticos.
Por sua vez, a partir do momento em que a razão de ser do trabalho é integralmente confiscada pela necessidade de ter rendimento, por um lado, e se o rendimento auferido nunca é suficiente para que, num plano geral, uma vivência plena se demarque de uma lógica de sobrevivência, por outro, podemos falar sem escrúpulos de uma «ditadura do tempo»: vidas postas ao serviço de uma produtividade ilimitada, de uma obsolescência consumista, de uma ubiquidade quantificadora, subjugando-se a soberania das escolhas políticas aos ditames económico-financeiros (a este nível, segundo André Barata, o sistema de crédito social chinês constitui um dos exemplos da impessoalização do tempo, tomando neste caso proporções inquietantemente distópicas). Na era da automação cada vez mais evoluída, quando parecem estar reunidas condições suficientes para libertar os humanos de tarefas exequíveis por máquinas, os humanos são cada vez mais interpelados enquanto máquinas: como se munidos de um prosaico interruptor, pudessem ser ligados e desligados consoante as necessidades de produção, as metas a cumprir, os lucros a gerar.
Esta dessubjectivação do tempo, esfarelando o que há de segredo, de imaginário e de visceral numa singularidade, tornando-a puro objecto manuseável e consumível, encontra o seu átimo nas redes sociais, no tempo contínuo da nossa presença online como o de uma disponibilidade total, sem hiatos. Da mesma forma que a razão instrumental extractivista se serve da Terra como um meio inesgotável para obter recursos naturais, também o sistema algorítmico reduz o pretenso enigma existencial de cada um à transparência inerte de uma base de dados. Existimos virtualmente na medida em que passamos a integrar, sem fissuras, o continuum comunicativo, os fluxos de informação, os ritmos comuns da aceleração, esbatendo-se as fronteiras entre tempo de trabalho e tempo de lazer, entre ruído e silêncio. «A presença de tudo. O presente de tudo. O simultâneo. O número. A nitidez que impede» – eis como Rui Nunes apresenta, em Baixo Contínuo, a impossibilidade de sermos mundo no mundo, quando este se desrealiza e se evade para os universos da desmaterialização virtual, um dos muitos «escafandros» que, segundo André Barata, usamos para forrar corpos, coisas, experiências, lugares, cada qual preservado no seu invólucro, impermeável à boa contaminação da vida pela vida, intolerante à espera, ao silêncio, à ausência de reacção.
Escreve o filósofo: «Forçarmo-nos a ser abstractos em vida, a incorporar a abstracção no concreto é como uma dominação da teoria sobre a práxis, ou da necessidade sobre a contingência, ou ainda, de uma concepção unilateral de natureza, desligada, mas opressora da cultura e da história. Em vez da reivindicação de que a natureza é, afinal, cultura, pelo contrário impõe-se a ideia, como uma necessidade incontornável, de que a história é natureza por outros meios. A globalização é, na verdade, só o nome da situação planetária de já só termos um espaço concreto, um tempo concreto e um lugar concreto, como se fosse a inevitabilidade de uma natureza das coisas. E não é exagero ver na resposta das sociedades à pandemia da covid-19, nos anos 2020 e 2021, talvez o mais global e acelerado exercício de massiva incorporação do abstracto nas vidas concretas. Se subsistiam temporalidades e espacialidades até então, no grande confinamento transmutaram-se em abstracções concentradas na casa de cada um, diante de monitores, a preencher o campo visual todo, sobrando só restos periféricos» (Para viver em qualquer mundo, pp. 16-7).
5.
«Ulisses rei de Ítaca carpinteirou seu barco». Saramago sabia de cor este verso e foi com alegria que o citou numa carta endereçada a Sophia de Mello Breyner, felicitando-a pelo Prémio Camões, em 1999. À luz da imensa e inventiva obra do escritor, conhecendo um pouco do seu trilho profissional anterior ao ofício da escrita – a dada altura, trabalhara como serralheiro mecânico –, sublinhando as convicções materialistas no seu modo de entender as dinâmicas dos humanos no mundo, este verso tão claro de Sophia, de uma nudez quase rude na sua afloração poética, parece criar uma feliz ressonância com o tempo vivível nos seus romances, os gestos demorados no fazer das coisas, a compreensão generosa da matéria relacional.
Quer se trate da construção da passarola no Memorial do Convento, esse prodígio tecnocientífico que muito deve aos olhos mágicos de Blimunda, quer se trate do barro elementar de Cipriano Algor, o oleiro do romance A Caverna (2000), com o qual vai moldando cântaros, primeiro, e bonecos decorativos, depois. Seja, portanto, para subverter as leis da física com altos voos, seja para rechear o espaço doméstico com utensílios mundanos, as personagens de Saramago tocam de facto nas coisas, contemplam a matéria de que são feitas, reparam nos seus veios, rugosidades e estrias, atestando a alteridade incontível da sua presença. Não cessam, pois, de «carpinteirar» o real que têm por morada e memória. São personagens que dão tempo ao tempo, procurando existências fruíveis, com «aroma» (Byung-Chul Han), cultivando relações de sentido entre si, os lugares e as materialidades que são «o abecedário em relevo do mundo» (Saramago, A Caverna, p. 83). Um pouco como os skaters, segundo André Barata.
Os skaters existem nos espaços da cidade à revelia da maré desmaterializante da ubiquidade digital. São uma espécie de tribo resistente, fazendo lugar nos esconsos urbanos, criando uma comunidade que reabilita o sentido de um lanço de escadas, de um gradeamento, de um insuspeito ângulo na esquina. Contra a assepsia homogeneizante dos não-lugares, meros sítios de passagem onde o tempo não vinga, os skaters criam efectivamente lugares por onde passam: com os seus truques acrobáticos, a sua alegria de corpos presentes, reacendem uma espécie de fulgor mágico na cinza urbana do betão. O próprio corpo está, ou acontece, em absoluta imanência, comparecendo plenamente na prática desta modalidade: é, pois, um corpo de carne e osso aquele que ressalta no skate, que arrisca a fatalidade do choque, dos joelhos em ferida, de um arranhão na face. Um corpo que convive alegremente com a sujidade, a impureza do chão, o suor e os cheiros, a profusa opacidade do mundo, atenuando-se na prática a neurose imunitária com que, de um modo geral, nos protegemos do que é exterior aos nossos corpos individuais (a chamada «sociedade paliativa», segundo Byung-Chul Han, que parece totalmente intolerante à dor e a um convívio salutar com as próprias fragilidades).
Filhos indisciplinados da matéria, os skaters não se evadem para a espectralidade online, para modos de existência destituídos da visceralidade do corpo: pelo contrário, reafirmam-se enquanto matéria, humanos por entre o húmus, singularidades que eternizam, a cada pirueta ou deslize, o ápice fulgurante do agora. E que se eternizam, a si mesmos, no instante desse ápice, no imo da vertigem, como quem mata a própria morte na alegria de viver. Melhor: de conviver.
Tal como Ulisses visto por Sophia, nos skaters o pensamento continua ligado à mão. O que instiga André Barata a concluir o seguinte, num rasgo crítico que merece ser citado na íntegra: «Idealmente, a mais pura transparência, se perfeita, não tem materialidade. Como uma gravação digital não tem ruído. A perda da materialidade e de capacidade de sermos sujeitos vão lado a lado num tempo em que o processo global nos interpreta, acima de tudo, como ruído. O democrata e o trabalhador, as emoções de cada um deles, são tratados como ruído a canalizar para lugares em que se possam exprimir de forma inócua, sem perturbar os processos em curso e as suas metas de eficiência, metas cada vez mais intolerantes, desde logo com as crianças que não são ou não querem ser prodígios nas nossas escolas, depois com elas na rua, depois com a própria ideia de rua pública, anónima, de todos, depois com a liberdade, a do skater, mas também a do skater que há dentro de cada um.» (O desligamento do mundo, p. 73).
6.
E se parássemos de sobreviver? (2018) convida a que se interrogue radicalmente se o caminho que se tem vindo a trilhar no neocapitalismo pós-industrial constitui, primeiro, um verdadeiro caminho e, segundo, se deverá continuar a ser feito nos mesmos moldes sistémicos, visando as mesmas metas: maior competitividade, maior fluidez e flexibilização, índices de produtividade – este modo de ser neoliberal entranhado até aos ossos. E, daí, uma pergunta que urge ser feita: o que é, afinal, um caminho? E outra: para onde vamos – ou aonde somos levados?
Desconsiderar ou invalidar a cesura radical que este questionamento propõe implica a consolidação crescente do tipo de realidade que é a d’O desligamento do mundo (2020), um título passível de gerar alguns equívocos ingratos. Não se trata de interromper pontualmente o modo de existência neoliberal em que estamos embebidos – como quem decide desligar-se mais vezes, ou por hiatos temporais mais longos, de toda a conectividade online, abrindo menos vezes a conta do Facebook, desactivando notificações, ou respondendo a emails apenas a uma determinada hora do dia. O regime sobrevivencialista, afinal, convive tranquilamente com estes exercícios individuais, a par de sessões de mindfulness e outros paliativos que, em todo o caso, ajudam somente a conservar a ausência de alternativas ao status quo. Uma ausência que se reifica, precisamente, neste desligamento do mundo: desligamo-nos de uma ideia de mundo quando o transferimos para o rosário de instantes das redes sociais; desligamo-nos da matéria, da physis em clave pré-socrática, da plena assumpção de sermos corpos vulneráveis e mortais e, nesse sentido, que cuidarmos uns dos outros é fazer da finitude um infinito, vivendo a eternidade no que há de efémero nesta passagem pela Terra. Pelo caminho, desligamo-nos da condição irreversível do próprio planeta se continuarmos a consumir desmedidamente os seus recursos, desligando-nos dos restantes seres vivos, animais, vegetais ou minerais, quer por arrogância antropocêntrica, quer por cegueira desanimalizante (esquecemo-nos, inclusive, de que também somos animais). Desligamo-nos, por fim, das interrogações violentas, dos saltos de fé, do simples vagar, correndo o risco imponderável de boiar à tona das nossas dúvidas, sem a ansiedade de ver tudo esclarecido, tudo iluminado, num estalar de dedos.
Todos estes desligamentos simultâneos desaguam num modo de existir indissociável de uma condição de perda: perda de subjectividade, perda de real, perda de mundo. E o âmago transversal aos sete capítulos de Para viver em qualquer mundo (2022) passa, justamente, à revelia de certas presciências mais apocalípticas, por admitir que, seja em que planeta – neste ou noutro qualquer que venhamos a ocupar –, seja como for a convivência, humana ou pós-humana – entre membros da mesma espécie, ou tecendo laços com máquinas sencientes talvez dotadas de uma inteligência superior à nossa –, uma vida digna de ser vivida não pode escusar-se a pensar radicalmente sobre como experiencia o tempo, que sentido entrevê nas coisas, que gestão política e económica deseja para fundar comunidades mais justas e solidárias, ou o que significa fazer e densificar lugares no tempo-espaço em que se existe. Por isso, «o caminho nunca estará em termos medo de que as experiências de humanidade deixem de ser exclusivamente humanas, ou em estranhar poder conceber-se uma tecnologia tornada humana, a ponto de padecer de humanidade como os humanos biológicos. É só disto que se trata: uma materialidade relacional que urge restabelecer» (Para viver…, p. 37).
7.
Um dos traços mais notáveis na escrita de André Barata: a partilha de um tom comum com o imponderável dos seus leitores. A partilha de um tom comum reconhece, desde logo, que pensar filosoficamente sobre as coisas, os humanos e o mundo significa elevar as coisas, os humanos e o mundo à dignidade mesma daquilo que merece atenção filosófica, ou atenção simplesmente.
Não se enrodilha em abstracções alienantes, por maior que seja a sua exuberância conceptual, o que contribuiria, de um modo contraproducente, para rarefazer ainda mais o imo existencial do mundo em que estamos. (Seria, assim, como repetir os diálogos de Platão, chegando às mesmas conclusões acerca da inverdade deste chão que pisamos, por oposição a um céu supraceleste indigno dos olhos que temos.) Nem esbanja o autor citações eloquentes, de Martin Heidegger ou Hannah Arendt, com o intuito de reforçar a autoridade crítica dos argumentos expostos.
André Barata evita a tentação dos grandes edifícios teóricos, que procuram totalizar a visão sobre as coisas. Recusando um sistema de pensamento incorruptível ou à prova de bala, aceita a força imprecisa e imprevisível das contingências: o repto «Não se existe sem equívocos» (idem, 125) poderia servir, de facto, como princípio orientador das Humanidades de hoje. O autor deixa-se contagiar – e fá-lo, em muitas passagens, com um prazer indesmentível e uma alegria empolgante – pelos acidentes de percurso, pela «solidariedade enervada da errância» (idem, p. 130), pela prática originária da filosofia assente num questionamento radical sobre tudo. Como se reabilitasse, a cada bifurcação, a célebre máxima de Terêncio: nada do que é humano nos deve ser estranho. Ou, noutros termos, quase inversos: tudo o que é humano merece ser estranhado, se desse modo atrair outros olhares e renovados espantos.
Há clareza e simplicidade no modo de expor os temas e criar relações entre eles, mas nenhuma dessas qualidades sacrifica a exigência de complexidade, sobretudo quando o foco destes três livros está em aprendermos a «viver juntos», retomando André Barata a conhecida questão de Roland Barthes (Para viver…, p. 61). Viver juntos com os outros humanos, com as suas contradições, luzes e sombras, mas igualmente com as outras espécies vivas, as plantas, as pedras, à luz de uma assertiva «razão ecológica», em detrimento da esgotante razão instrumental. Viver juntos e conscientes de que, como em mais nenhuma fase histórica da evolução humana, nunca houve tanta abundância, em termos materiais, nem tantos meios práticos para resolver injustiças gritantes de natureza socioeconómica. Viver juntos com a perturbação essencial das várias linguagens artísticas – e André Barata vai da poesia de Luiza Neto Jorge ao corpo em performance de Jackson Pollock, sem esquecer o cinema, a arte popular por excelência, a partir de filmes como Solaris (Tarkovsky, 1972), Matrix (Wachowskis, 1999), Inception (Nolan, 2010) ou Uma História de Violência (Cronenberg, 2005).
Viver juntos. O contrário de sobreviver cada um por si, não obstante todos os signos contemporâneos que se empenham em obnubilar a crescente miséria ontológica, o enfraquecimento da linguagem e da sua espessura simbólica, a avalanche da solidão depressiva. Signos que vão do efeito de presença mediado pelas redes sociais à positividade tóxica propalada por influencers, empreendedores, até mesmo por investigadores humanistas que, dedicados à leitura como acto de resistência, se sentem impelidos religiosamente a picar o ponto no Facebook, a ceder à ansiedade produtivista de mostrar o mais recente artigo publicado ou a última conferência em que se participou.
Outras derivas. A partilha de um tom comum em André Barata religa-o, por exemplo, à envolvência desarmada que se sente ao lermos Trajectos Filosóficos (2019) e O Tempo Indomado (2020), do filósofo José Gil. A vulnerabilidade de quem, pensando sobre as coisas, nitidamente se deixa afectar por elas faz sobressair, aqui e ali, laços de admiração pelo trabalho ensaístico de Rosa Maria Martelo e de Silvina Rodrigues Lopes, mostrando como a exegese literária ou o comentário fílmico fazem necessariamente ressonância com a vida, e vice-versa. O mesmo se poderia dizer de uma reabilitação poética da linguagem, mesmo em contexto de reflexão filosófica, que aproxima certos rasgos de André Barata à cadência rítmica de Jean-Luc Nancy, companheiros de viagem nos trilhos da fenomenologia (exercícios possíveis: reler Herberto Helder, Rui Nunes ou Maria Gabriela Llansol à luz do que pensa André Barata sobre «a revolução relacional com a matéria», o encontro com «o irreversível» ou a heurística da «errância»).
Last but not least, salientar o optimismo gnosiológico deste filósofo português, ou a sua recusa em ceder a uma certa compulsão apocalíptica. A vontade de pensar-imaginar o futuro, restabelecendo a jouissance imanente da matéria e o direito congénito ao inesperado da vida, trazem à colação, por exemplo, (1) A Vida das Plantas (2019), de Emanuele Coccia (leia-se o capítulo «Copernicando, revolucionando», de André Barata, à luz ecológica da vida como «a forma por excelência do heliocentrismo», segundo Coccia, p. 123, em nome de um humanismo não-antropocêntrico); (2) o livro Novacene (2020), de James Lovelock, autor da célebre «hipótese de Gaia», segundo o qual é com naturalidade que devemos imaginar a nossa própria extinção como espécie, caso o futuro da Terra esteja destinado evolutivamente aos autómatos da bioengenharia, numa nova era que inclua no código da vida – RNA e DNA – a presença de códigos de informação digital que serão programados, já não por humanos, mas por andróides e ciborgues; ou (3) Mundo Subterrâneo (2021), de Robert Macfarlane, relatando viagens do autor a locais insólitos do planeta, desde grutas naturais em geografias remotas até a um conjunto de estruturas subterrâneas altamente complexas, montadas para resistirem a eventuais desastres nucleares ou a uma nova era glaciar. Exemplo notável de um ethos ecológico, Mundo Subterrâneo desperta no chão mais raso uma força incrivelmente mágica: «Quando observadas através dos olhos do tempo profundo, coisas que pareciam inertes ganham vida. Revelam-se novas responsabilidades. Uma sociabilidade existencial salta-nos à vista e à mente. O mundo torna-se nova e misteriosamente heterogéneo e dinâmico. O gelo quebra-se. As rochas sofrem marés. As montanhas vazam e enchem. A pedra pulsa. Vivemos numa Terra inquieta» (Mundo Subterrâneo, p. 26).
Uma brevíssima nota de André Barata, colocada na página 11 do livro Para viver em qualquer mundo, segue à boleia da inteligência sensível com que Robert Macfarlane desposa o sentido do chão. Nessa nota de abertura, poesia e pensamento conjugam-se para que nos seja endereçado este convite: «Até connosco as pedras dançam e flutuam. Basta aceitar a solidariedade discreta das coisas.» Basta aceitar, desdobrando este relacionamento solidário, as condições que potenciam o acontecimento do encontro. Não mais segundo o molde antropocêntrico e antropomórfico, não mais tomando os outros, os animais ou as coisas como meios que intensificam, ou corroboram, a imagem de humanidade que mais convém a um sentimento inegociável de poder dominante. Mas antes «na compreensão dos modos de ser humanos pela perspectiva da matéria, o que nela haja de fundamentalmente inerente à compreensão do que é uma relação» (Para viver…, p. 82). Como este «jornal esquecido» que o poeta Tomas Tranströmer reaprendeu a ver à luz do tempo profundo:
8.
A 18 de Junho de 2022, André Barata esteve em Castelo Branco, a convite da associação Terceira Pessoa, para participar na nona edição do «Serviço Público». Fim de tarde, dia de sol, ao ar livre: nas escadas do Jardim do Paço, uma plateia de várias idades, com experiências e motivações distintas, aparece para escutar e intervir, surpreendendo súbitos desvios, cavando enxertos no terreno movediço da conversa. Um encontro potenciado pelos livros de André Barata mas, sobretudo, pelo tom comum de certas angústias, de alguns nós apertados, de feridas em aberto que, com maior ou menor clarividência, com maior ou menor aparato crítico, apelam à contingência das vidas que somos, à pesagem dos nossos corpos na superfície do mundo. A época é esta, a Terra é aqui, os nomes são estes, por agora.
(Por agora? Soa a prémio de consolação, um lanho fatalista por onde o real nos dói, escoando. Mas agora não deixa de ser um deíctico: o que a mim me paralisa, em ti é recomeço. Que o agora devenha ágora, onde os corpos passam e se cruzam, onde a relação acontece e, por essa via, se relativizam os sentidos absolutos, assim como a imagem da época, da Terra e dos nomes que usamos.)
«Mas, afinal, o que é pensar?», arremessa alguém nos interstícios, uma voz elevando-se dos últimos degraus. E desnuda-se precisamente aí, na forma mais prosaica de se usar o discurso, um assomo intempestivo, flagrantemente pré-socrático. Primeiro, fazendo uma pergunta (perguntar é perturbar, fazer tremer a água morta do lago, sentir como é granulosa a dúbia lisura do consenso). Segundo, fazendo uma pergunta à imagem de quem acaba de nascer, como as crianças diante das nuvens ou das ondas no mar, nessa alegria desavergonhada de ver com as pontas dos dedos («o que é pensar?», «o que é o que é?», «porquê isto em vez de nada?», «porquê perguntar?» – há uma trapalhice alucinada neste elenco, espécie de vertigem que apetece estender, o gargalhar de uma criança que nos provoca com a sua vontade de vida). Depois, tocando nestes verbos indómitos, como «pensar», tão embalsados num pendor abstracto, reféns de um idealismo inacessível, espessamente livresco – e, todavia, naquelas escadas, o granito ainda quente, os arbustos em volta, eis que «pensar» vem à presença e nos pesa, é um lampejo pesante, um corpo com espessura, segundo Jean-Luc Nancy. O pensamento é, pois, matéria: não apenas ideia, evanescência mental ou ente abstracto, mas impacto no rosto, sobrolho franzido, presença nervosa. A pergunta estampa-se-nos toda na cara, devém muscular. Mexemos as mãos para que o «pensar» não se alue, agarrando-o à terra do corpo.
Pensar é matéria, tão opaca e tangível como a própria pele e a pele de quem se senta ao pé de nós. Uma distância na proximidade, um longe selado no perto. «Pensar» põe-nos, de facto, também ao pé de nós mesmos: ao lado das coisas, à beira dos outros. Não em vez das coisas, nem no lugar dos outros. Não para decifrar a esfinge, nem dominar a chave que desarmadilha este ou aquele sentido do mundo. Pelo contrário: para que um mundo de sentido manifestamente se aclare, diante de nós e connosco. Sabendo estar, reaprendendo a estar, animais rentes à orla do real, sem pedir nada em troca que não a «justa luz do dia» (Sophia). Na iminência de um recomeço, num encontro que dessele uma radiância de festa.
9.
De um poema de Carlos Poças Falcão, no livro Arte Nenhuma (2020), que dá a ver de forma tão jubilosa a solidariedade discreta entre nós, os lugares e as coisas:

Texto escrito por Diogo Martins.

Referências
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Saramago, José (2000), A Caverna, Lisboa, Caminho.
Tranströmer, Tomas (2012), 50 Poemas, tradução de Alexandre Pastor, Lisboa, Relógio D’Água.
Fotografias: Nuno Leão | Terceira Pessoa
A escrita deste texto foi financiada por fundos nacionais do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, no âmbito do projecto de pós-doutoramento «Ousar corromper: (o)caso retratístico em Rui Nunes» (referência: SFRH/BPD/114849/2016).