quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

«Triângulo», por João Sarmento

João Sarmento, sacerdote jesuíta e responsável pela Galeria Brotéria, apresentou recentemente
 Persistência da Obra II — Arte e Religião, uma edição Documenta.

«Triângulo» é o título da exposição que ocupará os espaços do centro Brotéria de 22 de Abril a 25 de Maio de 2021. Para a preparação da mesma, os artistas receberam três textos: o texto da galeria Brotéria, e textos das curadoras, Carolina Quintela e Eva Oddo. A exposição é organizada pela Catarina Silva e contará com os trabalhos de Carla Castiajo, Catarina Silva, David Correia Gonçalves, Eduarda Rosa, Francisca Carvalho, Horácio Frutuoso, Hugo Bernardo, Pedro Sequeira, Pedro Tropa, Vasco Futscher.


Em 1967, Bruce Nauman desenhou uma espiral em néon, no interior da qual podemos ler as letras azuis que dizem: The true artist helps the world by revealing mystic truths. O conteúdo da mística é a própria natureza do mistério, o assombro, o espanto, o indizível. Contudo, também o acto de revelar é parte integrante do funcionamento da mística, do sagrado e do oculto. A afirmação do néon de Nauman demonstra, portanto, uma espécie de metodologia do fazer artístico como um aprofundamento em infinito, como uma espiral de claridade.

Independentemente do que possa significar ser um verdadeiro artista, podemos reconhecer que existe uma nostalgia demiúrgica no fazer das práticas artísticas. Persiste, sob a ideia de artista, uma sombra dos actos de culto: há uma proximidade entre a produção do mundo da arte e a construção atemporal de símbolos. De algum modo, nas palavras do Mircea Eliade, por «mais avançada que estivesse em determinada época a dessacralização do cosmos, os ofícios conservam ainda o seu carácter ritual.»[1] Por isso, a transformação das matérias-primas, as substâncias moldadas desde os seus princípios vitais, foram manipuladas, pela artesania, na construção dos artefactos, às mãos de alquimistas, xamãs, sacerdotisas e sacerdotes. Neste sentido, parece que se misturavam mais completamente à vida complexa da matéria os seus mistérios invisíveis. Assim, física e metafísica orbitavam na dinâmica do trabalho e do ritual.

Mircea Eliade lembrava que «o sagrado é uma parte da estrutura da consciência e não um estádio na evolução da consciência. Ou seja, não houve uma época em que as coisas eram mais espirituais do que hoje.»[2] Mesmo intuindo uma dessacralização do mundo e da cultura contemporânea — onde os ritos se privatizaram num crescente subjectivismo — persistem ainda hoje múltiplas dimensões não óbvias, latências da experiência do mistério.

Sem ritos, desfalecemos. O ritual pretende atribuir gestos, palavras, elementos que catalisem esse lugar não imediatamente lógico — científico e linguístico. O ritual trata de organizar, dar forma e tempo àquilo que não é apodítico. No fundo, o melhor ritual será aquele que nos fará progredir na pergunta, no inevitável espaço obscurecido do mistério. A ideia da ritualidade em arte será tanto mais significativa quanto mais revelar, trazendo à clarividência o não-saber. É neste lugar que se encontram as práticas que sondam ritualmente os limites da linguagem e dos símbolos, ressignificando-os. Prescrevem modos de relação entre coisas ou seres que aumentam o inesperado, a surpresa, as possibilidades.

Os princípios da geometria foram considerados ao longo dos séculos, em diferentes culturas, como uma metodologia para atingir os elementos da mística, as formas puras; como alvo de uma confluência extraordinária de sistemas simbólicos. A geometria condensa, sintetiza, torna analíticos os modos de representação de um significado. Exemplo disso, o triângulo. Do oriente ao ocidente, reúne grandes valores retóricos, resultando numa forma com um enorme sincretismo. O triângulo está patente em diversas correntes de misticismo, da alquimia babilónica, da cultura egípcia e judaico-cristã. O triângulo está obviamente associado às tríades, às representações dos elementos naturais, à ideia de perfeição e mesmo à ideia da visão plena, do visionismo. Triângulo são três lados infinitos; é, muitas vezes, uma porta que não deixa mais de se abrir — essa porta de Clarice Lispector. Neste sentido, albergamo-nos sob esta forma, a fim de dar a ver as verdades místicas que ocupam cada um dos artistas e das suas práticas.

[Galeria Brotéria]
 
  

[1] Mircea Eliade, Herreros y Alquimistas, Madrid, Alianza Editorial, 9.ª ed., p. 130.

[2] Cit. in Bill Viola, David A. Ross, Peter Sellars, Bill Viola, Nova Iorque, Whitney Museum of American Art, 1998, p. 143.


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