Rodrigo Silva, professor na
ESAD – Caldas da Rainha, apresentou recentemente
Persistência da Obra I — Arte e Política, uma edição Documenta
(O Tomás pediu-me
então que dissesse algumas palavras. Agradeço-lhe, agora aqui em público, muito
esse convite, também reparando o dano de não ter podido na altura estar
presente no colóquio e cumprimento-vos a todos, agradeço-vos desde já a escuta.
Escrevi, para esta ocasião, algumas frases que se foram estendo e que vos
gostava de ler.)
«As mãos da gruta Chauvet produzem toda uma outra lição de trevas, porque é aí que o homem reencontra a sua noite, cria a sua claridade e desdobra a sua capacidade nascente de manter com o mundo uma relação constituinte e separada. [...] Nas grutas, trata-se da economia da separação dos vivos com o primeiro sítio que lhes deu a vida, separação que faz aceder o infans à palavra.»
Marie-José Mondzain
«Um encontro não é senão o começo da separação.»
Provérbio Japonês
«O que verdadeiramente somos é aquilo que o impossível cria em nós.»
Clarice Lispector
1. Nunca soubemos o que foram os começos. Achámo-nos sempre já começados, avançados num tempo sem princípio nem fim, herdeiros involuntários de múltiplas histórias e tempos entrelaçados, cruzados, inapelavelmente compósitos, no meio do diverso e do múltiplo. Estamos sempre a começar e a recomeçar, a procurar novos começos, mas a origem esteve sempre já perdida, mesmo quando a sonhámos como dada para sempre num tempo primeiro, mitificado, num outrora claro e distinto. Mas das origens resta-nos uma bruma, fascinante e indistinta, que julgamos sempre ainda poder vir a reencontrar em certos gestos arriscados, imagens (entre)vistas, alguns fragmentos apagados, algumas palavras perdidas. Não as palavras da tribo, mas as palavras do abismo, do murmúrio, do segredo.
2. Emergimos, tacteando, do inseparado e do indistinto. Como em tudo, na expressão das formas vivas e nas coisas do espírito, o movimento vai do simples ao diferenciado, do unido a si para o uno diferindo de si, declinando-se em inúmeras especificidades, singularizações, metamorfoses incontáveis. Esse movimento parece ser também o movimento das culturas e das civilizações constituídas: sinais ténues, indícios terrestres, que testemunham da emergência do novo e de um começo, que nos permitem projectar um surgimento primeiro e inteiro, como se assistíssemos ao nascimento do inaudito. Do simples para o diferenciado: terá sido assim a emergência de cada uma das actividades humanas, as que testemunham da vida do espírito. Gestos simples e inteiros, lançados de uma obscuridade nativa, que se vão mostrando e reconhecendo com novos nomes e tonalidades, identificados e decididos na sua separação e divisão. Assim emergem os modos do fazer e do saber que dão forma ao colectivo e ao viver-em-conjunto: política, arte, religião, sagrado, nomes gregos e latinos, não o esqueçamos nunca, nomes ausentes na língua chinesa e do sânscrito, nomes inidentificáveis nas múltiplas línguas ameríndias e nos povos autóctones, a quem chamamos também «povos primeiros». «Arte», «Política», «Religião» são os velhos nomes migrantes de Atenas e Jerusalém, na princesa Europa, jovem idosa, atravessada por cicatrizes, divisões, separações múltiplas. «Arte», «Política» são os nomes da separação infinita dos gestos simples e inteiros do começo inseparado, com que julgamos reconhecer os gestos do fazer e do saber: os gestos da separação interminável daquilo que nasceu junto e unido, emergindo do inseparado e do indistinto.
3. Se a arte e a política são nomes gregos e latinos é porque são esses os nomes mais próprios da «nossa história», das separações internas e intermináveis que a nossa história não cessa de disjuntar e desunir. Mesmo se, sabemo-lo, arte e política hoje são os nomes, urbi et orbi, que se tornaram parte do mundo globalizado da geopolítica e da circulação imparável das mercadorias, do tecno-mundo e das suas ciberesferas. Dizer «a nossa história», é dizer também a história imperialista, colonizadora do Ocidente, dos seus projectos e projecções, que tantas vezes nós Ocidentais e Europeus tomamos como a história-mundo de um planeta que afinal é feito de tantas histórias e outras tantas modernidades, tantas alter-histórias e humanidades-outras, tantas artes, tantas políticas, quantos os lugares, quantas línguas para os falarem. Essa história que se pensou consciente de si e como movimento da autoconsciência da humanidade, que obliterou os plurais das histórias, que se quis centrípeta e se imaginou hegemónica como se tudo convergisse para o centro hipnótico das suas narrativas e categorias, essa história, é aquela que disjuntou aquilo que emergiu junto, puro surgimento indistinto. Quero por isso dizer que esta conjunção do que está disjunto, este face a face de dois distintos — e que em alguns destes textos se afirma como essencial separar — é uma operação interminável: a da separação infinita, daquilo que não cessa de se separar, como duas coisas que emergem distintas do inseparado.
4. A nossa história é a história das conjunções mortíferas desta disjunção inacabada, da separação infinita do que surgiu inseparado. Quer dizer: sempre que se deu a indistinção, i.e., a inseparação fusional, a instrumentalização dos meios de uma para os fins da outra (os meios da arte para os fins da política ou os meios da política para os fins da arte), ambas perderam a força que emerge da separação, do uno diferindo de si, daquilo que distingue e que diferenciando faz emergir. Ora o que não cessa de se separar infinitamente e de se distinguir interminavelmente, o que emergiu junto e inseparado, irremediavelmente estará ligado, inextricavelmente entrelaçado, mesmo se nós persistimos na sua distinção. Sim, insistimos, insiste-se nestes textos: il faut, é preciso, separar, estatuir claramente que a arte e a política não podem esquecer de manter a sua separação, apartadas, cada uma com a sua parte, mesmo se essa parte seja incerta e indeterminável, ou até, aberta — pura abertura, esvaziada para um vazio que possa acolher a nossa — a sua da arte ou da política, idem idem — indeterminação nativa. Estes textos afirmam: é preciso separar o distinto, é preciso não persistir em confundir, os meios de uma e os fins da outra e vice-versa. Esse é o exercício imunizante ao qual estamos vinculados como uma responsabilidade histórica: não descurar, não cair uma vez mais na negligência obscena e feroz que consente os pequenos fascismos que guardam a hibernação dos grandes demónios. Os anos 30 estão ainda diante de nós, como escreveu Gerard Granel. E, neste caso, em mais do que um sentido: como recidiva, como ressurgimento, como escreveu o filósofo Michael Foessel num livro recente, mas também como eclosão de sinais do inquietante, sob fundo uma ameaça silenciosa, das alterações do clima e dos ecossistemas. Temos hoje outra preparação para os reconhecer, eles estão aí, nos écrans diariamente, mas contra eles não estamos imunizados, não há vacina possível, para o vírus dos extremismos.
5. Temos de imunizar a arte da política e a política da arte — talvez porque o seu múnus, aquilo que passa em comum entre elas, o lote comum que as atravessa de parte a parte, seja justamente aquilo que abre a possibilidade de separar e de distinguir, de singularizar e de partilhar, de assinalar a nossa comum irredutibilidade: distintos e diferentes emergindo do inseparado. Mas o que imunizar quer dizer, hoje nos dias que correm? Sabemo-lo verdadeiramente? Como podemos estar imunizados daquilo que é a nossa condição comum e a nossa fragilidade partilhada, se a nossa condição se revela inextricavelmente com a da inseparabilidade e da interdependência constitutiva, antes de mais na grande rede de conexões e de transmutações que é o imenso reino do vivente? Fizemos talvez sempre e mais uma vez ainda a obra da separação: natureza e cultura, arte e política, arte e religião, política e religião, e dentro destas incontáveis separações e divisões que se replicaram fracturando-se em tantas oposições e dualismos. Separação infinita do que emergiu inseparado: mas não temos hoje, ainda e mais uma vez, a obra do inseparado por fazer? Não escutámos tantas vezes, agora ainda mais uma vez, os apelos da conexão e da ligação, não a das ligações dos cabos e das fibras do digital, mas a das ligações anteriores: a das ligações interrompidas e das conexões caídas, aquelas que hoje queremos restabelecer e retomar, repondo a inseparação nativa?
Talvez a pergunta sobre saber se a arte é política só possa ser encetada se primeiro se formular esta: o que surgiu junto será disjuntável? O que nasce uno e inteiro será alguma vez separável ou permanecerá para sempre ligado, inextricavelmente ligado?
6. Arriscaria dizer (e isto é, talvez, uma tese em contraponto à substância deste livro): só precisamos de separar o que não é separável, i.e., aquilo que não acabou de começar a sua separação infinita e a sua disjunção interminável, mesmo que o seu começo seja isso mesmo: a separação que fez emergir, que distingue, que assinala, dois gestos, duas acções, dois pensamentos que se instituem diferentes um do outro, um face ao outro, como dois modos de fazer mundo ou de enunciar um nós, de arriscar um comum ou cirscunscrever a vinda de uma comunidade tida ou prometida, aquém ou além de todas as fundações. Dois gestos gémeos, «gémeos não idênticos» como escreve o Tomás, a propósito da separação arte/religião. Mas não é da natureza da gemelidade permanecer inextricavelmente ligado mesmo quando há uma individuação que aparta e distingue dois caminhos, duas formas de ser e de existir?
7. Sabemo-lo: as coisas da arte e as da política são inteiramente distintas. Separadas e separáveis. Mutuamente irredutíveis, «precedências desajustadas», escreve a Silvina Rodrigues Lopes. Certo. Dois lugares que não se podem confundir quanto à sua exigência de verdade e de justiça, quanto aos seus protocolos de legitimação e modos de actuação, quanto aos seus limites (históricos, sociais) e formas de manifestação, quanto às suas cauções e genealogias, quanto às coisas que se aprendem e ensinam — se é que possível aprendê-las e ensiná-las — para poder professar uma e outra. Certo. Não acabaríamos de enumerar o que as separa e distingue. Mas sabemos quanto é inumerável e incessante o que as aproxima — basta que façamos todos um exercício de memória íntima (mas também colectiva): quantas vezes não é a «arte» — a poesia, o teatro, o cinema, a literatura — mais política que o que hoje desfila nos écrans como sendo «a política»; quantas vezes, o que as «artes» fazem sentir e pensar não é o afecto e a emoção mais intensamente política que podemos sentir (mesmo se sabemos, claro, como os afectos e as emoções estão hoje profundamente manipulados para as grandes maquinações da cólera e da expiação, colectiva ; quantas vezes o que nos reúne e que nos convoca a estar enfim juntos, não é o diapasão da obra, secreta ou confidencial (ou celebrada numa comunidade de amantes), que escande o ritmo e o espaçamento, o peso e a medida, de uma ressonância desconhecida, que nos comove ou anima. Quantas vezes diante daquilo em que partilhamos uma inspiração ou uma aspiração comum, daquilo que enleva ou que acende o movimento de desejo de futuro, de por vir, essa mesma que parece agora tão ensombrada, tão incerta, claudicante e derradeira.
8. À pergunta se a arte é política, estes textos respondem a várias vozes, inequivocamente: não. Ora, a essa pergunta, é possível dar outra resposta: tantas vezes, quantas vezes, incontáveis vezes, ela não foi e é o que de mais político — arquipolítico, escrevia Philippe Lacou-Labarthe com todo o peso solene que ele, em particular, sabia dar à escolha de certas palavras — sim, o que de mais político nos partilhou e inspirou. E acrescento ainda: são e serão hoje escandalosamente e tragicamente insuficientes os meios e os modos para responder, para assumir a responsabilidade, para responder à confiscação do político por todos os poderes que o confiscam, que o instrumentalizam e que o capturaram — a apropriação da política pela lógica do espectáculo e do sensacionalismo, a submissão do espaço público e do jornalismo à agenda hegemónica das narrativas neoliberais, à entrega da política à competição funesta dos bufões histriónicos e do grotesco populista na luta pela conquista do poder e dos lugares da dominação. Mas à encenação estética e audiovisual da política não responde, talvez, uma politização da arte: não responde uma arte feita com os meios da política para os fins da política, mas uma arte feita com os meios da arte para os fins da arte. Aqueles que guardam memória do Inseparado dos gestos primeiros e inteiros, aqueles que guardam a memória do que abre o comum, da abertura ao espaço do encontro e do reconhecimento, da exigência de justiça, da reparação do dano da iniquidade, do espaço livre do encontro de iguais, da justa repartição dos Bens Comuns, do cuidado da casa comum, como diz o Papa Francisco (e saúdo os nossos amigos cristãos católicos, esperando que sejam indefectíveis aliados deste papa), primeiro entre os primeiros a afirmar esse comum nativo, esse comum sem nome, essa a mais alta pobreza comum, de que fala il poverello, anterior a qualquer fraternidade e a qualquer pátria, esse comum que nada poderia confiscar e cuja abertura nativa teremos sempre de pôr a salvo das apropriações mortíferas, dos açambarcamentos e dos monopólios que hoje tomaram o nome da arte e o nome política.
9. Dizer que a separação infinita é uma separação que é interminável porque procede do inseparável é dizer: não sabemos talvez ainda o que política quer dizer, não sabemos o que é aquilo de que a arte é o nome. E teremos de persistir em continuar nesse não-saber: não porque não queiramos o saber, mas porque o não-saber (da arte, da política) é aquilo que nos preserva e nos torna indemnes à apropriação, à injunção e à prescrição, àquilo que nos fecha e encerra nas apropriações e representações que disso fazemos, àquilo que nos confina. Arte e política são por isso os nomes e lugares do inapropriável: daquilo que resiste — i.e. — que persiste contra a confiscação e a assimilação ao reconhecível e ao monetizável, ao algorítmico e ao calculável na extracção da mais-valia comportamental (expressão da Soshana Zuboff, agora muito lida) e do adestramento generalizado, à moeda de troca e ao equivalente geral, onde se sustenta a industrialização do sensível pelos media e pelo entretenimento, que tudo cobrem como uma insidiosa sombra ofuscante que nem um vírus mortal apagaria, sabemo-lo. Por isso, à pergunta sobre se a arte é política, é preciso contrapor a pergunta sobre se é necessário que seja política. E teremos ainda e logo de seguida, como na maiêutica platónica ou no método de inquérito heideggeriano, aquilo que é perguntado naquilo que perguntamos: é necessário que política seja política, se política for aquilo em que ela se converteu — no reino — ou melhor, no Império, como sublinha sempre Marie-José Mondzain — do falso e da dissimulação, na competição pelo desmantelamento do Estado e da Coisa Pública face à impotência dos seus escassos e supostos Guardiões? E, logo de seguida, teríamos de perguntar: é necessário que a «arte» seja artística, se o artístico hoje — como mostra o magnífico texto do Federico por exemplo — se converteu na descaracterização e na desconfiguração mesma do que arte já pôde querer dizer como operação da separação e da abertura, i.e., do sagrado? O que é uma arte na época em que a arte se integrou — confinou — voluntariamente e alegremente no reino do mercado e do mercantil, o reino das celebridades e do lifestyle, da competição pela visibilidade e pelo sucesso, aliando-se ao grotesco, heroicizando o informe, erguendo o abjecto como um resto decaído da beleza, erguendo o anómico como um sublime paródico, ao niilismo mesmo? O preço disso — o do cinismo e a indiferença absoluto do mercado e do dinheiro — ainda só agora o começámos a pagar como se vê na indigência aflitiva a que foram votados os artistas e as suas artes quando dependem do mercado.
10. Portanto: face a uma arte artística e a uma política política, convertida à politiquice e ao politiqueiro, palavras feias e usuradas à falta aqui de um melhor termo porque justamente essa confiscação não tem conceito mas apenas uma imensa acumulação catastrófica de evidências, é justo pugnar por uma afirmação: vamos, juntos, em busca de uma arte enfim política para que ela nos posso abrir o espaço de uma política enfim livre da política (ainda diria uma «religião livre do religioso» como Nancy, num dos seus livros, pode escrever em eco o dístico de mestre Eckhart, «um deus enfim livre de deus»). Quero dizer: apelemos, juntos, na nossa separação infinita e na nossa disjunção interminável, a uma arte que apele ao que na arte antecede a política porque é ela que abre o espaço, a escuta, a espera, a atenção, àquilo que na política antecede a arte — a antecedência do Inseparado, i.e., da união primeira — mística, talvez, Tomás — daquilo que abre o comum: o viver-junto, a nossa comum interdependência, aquilo a que poderíamos chamar a nossa inseparabilidade constitutiva, ou a que poderíamos dar o nome de, a nossa inseparabilidade nativa.
11. Nascemos de um outro, ou melhor, de dois outros, singulares plurais como escreveu uma vez o Jean-Luc Nancy, no título de um dos seus mais belos livros. E como sabemos hoje essa inseparabilidade não só a nossa inseparabilidade entre nós, a inseparabilidade humana: é a inseparabilidade anterior, a inseparabilidade de onde nascemos com que hoje nos confrontamos, sem escapatória possível: a inseparabilidade dos humanos de todas as entidades vivas, o grande todo de onde nunca acabaremos de começar a nossa separação infinita, porque justamente somos hoje, à força de medo e mortalidade, lembrados que não somos separáveis do grande fluxo metamórfico da vida.
12. Elas, Arte e Política, são inseparáveis, mesmo quando em separação infinita. Porque provêm ambas do que as antecede mutuamente: ambas provêm do Inseparado de onde provimos, desse comum inapropriável dos mortais que está hoje sob múltiplas confiscações, tantas que nem sabemos bem por onde começar as vastas operações de desconfiscação, ou melhor, talvez pudéssemos dizer, de desconfinamento, que teremos de empreender.
13. Não poderíamos e não poderemos perder de vista todas as reservas e objecções sobre a confusão instrumental da arte com a política, no tempo do hipercapitalismo que celebra a apoteose do indistinto e das amálgamas, do «tudo vale, tudo se equivale», porque tudo se pode converter em produto e em bens e serviços transacionáveis. Mas isso não nos pode fazer perder de vista que o que provém do Inseparado é inseparável. Sempre lidará com uma diferenciação constitutivamente interminável que não pode conhecer acabamento nem plenitude. Talvez tivéssemos de assumir e mobilizar a nossa melhor energia, atenção e desejo, no fundo, para a esperança e a véspera de novas núpcias: de um encontro amoroso onde os separados inseparáveis, preservassem o que neles é distinto mas que o assumissem que sem fazer obra comum eles partilham de um mesmo comum nativo. Sim, afirmo aqui, e não é um provocação, apenas uma aspiração íntima, que será do amor da arte pela política que pode nascer uma nova unidade das nossas emoções e dos nossos gestos, iluminados por esse amor que gera emoções em direcção da justiça, da igualdade, do reconhecimento da nossa comum fragilidade e da protecção mútua que nos temos de oferecer reciprocamente, como os amantes do amor se protegem separados apesar de unidos, nos tempos frios e sombrios (estou a lembrar, claro, no livro magnífico do Blanchot sobre a comunidade, onde justamente se trata disto mesmo: da inseparabilidade do distinto, dar arte e da política). Mas como unir aquilo que o tempo inapelavelmente separou? Haverá um Deus, esse de cujos oficiantes dizem que o tempo não pode separar o que o Deus uniu, mas será que haverá um dia um Deus que tornará distinto o inseparável, i.e., que Deus que distinguirá o inseparável de uma arte e de uma política anteriores a qualquer comunidade dada? Diria mesmo, piscando o olho aos nossos amigos da Cristãos Católicos aqui presentes: é de uma outra aliança que esperamos ainda o anúncio e a promessa. Mas talvez este seja apenas mais um exercício de teologia negativa, esse vício impune.
14. Arte e política não são a mesma coisa mas são a coisa mesma: o lugar da precedência ou da antecedência, daquilo que cede lugar à abertura do humano, à nossa comum humanidade e que é anterior a todas as artes, religiões e políticas. Encontrar esse lugar vazio, esse lugar em espera ou reserva, esse espaço aberto, esse espaço enfim livre para um encontro, para o lugar da partilha dos distintos. Então aí nesse lugar caem os nomes, não são precisos nomes: arte, política terão sido apenas na memória os nomes transitórios dos gestos intransitivos e imemoriais com que o humano se fez começo livre, encontro de outros e reconhecimento de si. Teologia negativa, certamente, teorias da conspiração espiritual, pior ainda, e por isso detenho-me aqui.
15. Resta, enfim, nesta apresentação apresentar o livro. Direi apenas: o Manuel Rosa — aqui ajudado pelo André Maranha — faz os livros mais bonitos que se publicam em Portugal e estes são os mais bonitos de todos. Este tem 280 páginas e doze textos magníficos, todos diferentes mesmo se 6 deles são muito parecidos com outros 6. E que é uma vantagem comercial extraordinária: é que nesta nova edição são mesmo dois livros em duas línguas totalmente diferentes (eu confirmei as palavras são todas diferentes escritas noutra língua, um tal de «francês», textos que parece que são gémeos verdadeiros apesar de falsos), dois pelo preço de apenas um. Ora aí está uma sugestão que deixo ao Manuel Rosa para a cinta do livro: «promoção» — leia o exactamente mesmo livro duas vezes em duas línguas totalmente diferentes, pelo preço de apenas um.
(Agradeço novamente ao Tomás o convite que me endereçou para dizer umas palavras e agradeço-vos infinitamente a paciência e a persistência em me escutarem. Obrigado.)
Palavras lidas, na ocasião.
Rodrigo Silva é licenciado em Filosofia (1998) pela FCSH-UNL, com uma tese sobre Imagem e História em Walter Benjamin e doutorado em Comunicação e Cultura Contemporânea (2007) pela FCSH-UNL, com uma investigação sobre O pensamento do espaço na filosofia contemporânea.
É professor coordenador na Escola Superior de Arte e Design de Caldas da Rainha, onde lecciona desde 1998 na área da teoria da arte, da estética e da filosofia contemporânea. Entre 2010 e 2014 foi subdirector dessa escola e posteriormente director, entre 2014 e 2016. Desde Junho de 2017 é o presidente do Conselho Científico da ESAD.CR.
Tem publicado em diversas publicações académicas, onde tem escrito sobre filosofia contemporânea, artes visuais, teatro e literatura e trabalhado sobre autores como Maurice Blanchot, Jean-Luc Nancy, Jacques Derrida, Georges Didi-Huberman, Jacques Rancière, Valère Novarina, Pascal Quignard, entre outros. Editou e organizou o livro colectivo A república por vir – arte, política e pensamento para o século XXI (Fundação Gulbenkian, 2011), com ensaios de Georges Didi-Huberman, Jacques Rancière, Marie-José Mondzain e Bernard Stiegler.