A ilusão do triunfo da vida sobre a morte, num estranho jogo de reflexos e de penumbras.
Durante séculos, Bruges fez parte das rotas comerciais dos grandes navios hanseáticos, crescendo e prosperando na actividade mercantil, atraindo artesãos, artistas e famílias nobres. Mas, no final do século XV, o canal natural Zwyn, que ligava a cidade ao Mar do Norte, assoreou, e o comércio marítimo desapareceu por impossibilidade de os navios lá chegarem; como uma "rainha destronada", Bruges tornou-se taciturna e melancólica, o lendário fausto dos seus palácios ficou reduzido à pedra dos brasões que encima as portas, a agonia tornou-se o seu estado permanente, a vida apenas um arremedo, um pálido reflexo daquilo que fora em tempos.
O silêncio pio e a quietude estendem-se agora como uma sombra de pedra sobre Bruges, cidade tomada pela melancolia cinzenta dos horizontes nublados, pelos tons tristes do céu do Norte, pelo canto agoirento dos cisnes, pelos toques dos sinos que parecem trazer de volta "a cinza morta dos anos" - um passado longínquo que teima em reflectir-se nas águas escuras. O escritor belga Georges Rodenbach (1855-1898) usa este pano de fundo de penumbras iluminadas para nele colocar a história de Hugues Viane, homem de cerca de 40 anos que, após ter enviuvado, escolhe esta cidade como o lugar onde iria tentar continuar a viver. "À esposa morta deveria corresponder uma cidade morta. O seu grande luto exigia um tal cenário. Só em Bruges a vida lhe seria suportável. Que o mundo para além dela se agitasse, fizesse ruído, acendesse as suas festas, entrançasse os seus mil rumores. Ele precisava de silêncio infinito e de uma existência tão monótona que deixasse, quase, de dar-lhe a sensação de viver."
Há na escolha uma estranha ilusão de um tempo que não se move, como se essa imobilidade tornasse possível a imortalidade daquela que ele amou. Hugues conserva em casa, ocupando várias paredes, muitos retratos da mulher morta (em várias idades) para que a sua imagem não se desvaneça na sua memória, à semelhança do que acontece há séculos com o reflexo da cidade nas águas escuras dos canais. Fechada dentro de uma caixa de vidro, "para a defender das contaminações", está a comprida trança de cabelo, "amarelo de âmbar", que ele tomara do cadáver da mulher havia cinco anos. É a trança, o cabelo que "a terra não come", que por metonímia substitui o corpo, criando a ilusão do triunfo da vida sobre a morte. Hugues vive o êxtase numa estranha eternização do luto. Mas uma tarde encontra por acaso, numa rua de Bruges, aquela cidade de "que ele também parecia ser o viúvo", uma mulher em tudo semelhante à defunta, de "uma semelhança que chegava à identidade". Segue-a, perde-a, encontra-a de novo, e mais tarde conseguirá falar com ela: tem "uma voz da mesma cor, voz com um idêntico trabalho de ourives". Também o olhar é igual, parecendo chegar "de muito longe, ressuscitado do túmulo como o que Lázaro deve ter deitado a Jesus". Esta espécie de dupla da falecida leva o protagonista a uma nova ilusão, que de novo contribui para tornar a mascarar a morte da mulher. Começa então a encontrar-se com ela amiúde, ao final do dia. "Acreditava que possuía de novo a outra, possuindo esta. O que parecia acabado para sempre ia recomeçar." Estabelece-se assim na narrativa uma relação ambivalente entre a morte e a imortalidade, uma quase "instabilidade ontológica" entre vida e morte.
Bruges-a-Morta foi publicado originalmente (1892) em forma de folhetim no jornal Le Figaro, apesar de ter sido escrito no seio do movimento simbolista (os três belgas que despertaram a atenção do grupo francês, onde se destacava Mallarmé, foram Georges Rodenbach na prosa, Maeterlink no teatro, e Émile Verhaeren na poesia). Nessa tentativa de aproximação à estética romântica que parecia caracterizá-lo - rejeitando claramente o Realismo, então em moda em França -, tem ainda quase todas as características das obras do "romantismo alemão tardio". Rodenbach escreve uma história intimista, com um mal disfarçado gosto pela morte, num ambiente melancólico sublinhado por uma religiosidade penumbrosa, em que idealiza temas (saudade, tristeza, e desilusão) "exagerando" as emoções, de tal forma que a cidade, a mulher e o protagonista, num processo de identificação, se igualam à morte. "Bruges era a sua morta. E a sua morta era Bruges. Tudo se unificava num destino idêntico. Era Bruges-a-Morta, descida ela própria ao túmulo dos seus cais de pedra, com as artérias dos seus canais arrefecidas desde que deixara de bater ali a forte pulsação do mar."
José Riço Direitinho, «Cinzenta melancolia», «Ípsilon» / Público, 30 de Agosto de 2013.