segunda-feira, 17 de março de 2014

azul de perdição


Ilda David’
azul de perdição
( pinturas sobre papel para Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco )

Inauguração: 20 de Março de 2014, quinta-feira, às 18h00
21 de Março — 13 de Maio

Conversa com Jorge Vaz de Carvalho e Nuno Faria
26 de Março, quarta-feira, às 18h30

giefarte
Rua da Arrábida, 54 B-C | 1250-034 Lisboa
Segunda a sexta-feira, 11h00 – 14h00 | 15h00 – 20h00

«A “Autobiografia” de Thomas Bernhard», por João Barrento




Acaba de sair, na editora Sistema Solar, um volume que reúne as cinco narrativas que, posteriormente à morte de Thomas Bernhard, foram agrupadas com o título — que o autor nunca lhes deu — de Autobiografia.

O Público de hoje  [14 de Março de 2014] traz um desenvolvido artigo de José Riço Direitinho sobre este novo livro de Bernhard traduzido por José Palma Caetano, onde são transcritas algumas declarações minhas. Elas resultaram de cinco perguntas que Riço Direitinho me colocou, e a que respondi procurando articular um discurso que fosse ao encontro das questões colocadas e ao mesmo tempo pensasse alguns tópicos essenciais desta «Autobiografia» e da Obra de Bernhard em geral. Como o texto aparece disperso e fragmentário no jornal de hoje, deixo aqui o que escrevi, pela ordem das questões que me foram colocadas. 

1.
Se colocar a mim próprio a questão do «grande escritor» no espaço de língua alemã, ocorre-me certamente um nome como Günter Grass, que, mais do que um grande escritor, é – como Thomas Mann antes dele, ou Goethe para este romancista – um dos grandes «representantes» da literatura de língua alemã do pós-guerra, com uma Obra que acompanha e reflecte como poucas a sua própria época. Um outro grande antecessor de Bernhard, simultaneamente espelho de uma época e «escritor da escrita» – falo de Robert Musil –, distinguia entre os «grandes escritores» (cujo paradigma seria Thomas Mann) e os «homens do circo» (ele próprio). Bernhard é um grande escritor – agora sem aspas! – precisamente porque é o grande «homem do circo» das letras austríacas na segunda metade do século XX. E a arena desse circo, não diria trágico, mas agónico, é a sua própria existência (a sua alma?) de palhaço pobre e hiperlúcido, muitas vezes cáustico, outras vezes snobe, sempre capaz de um humor soberano, no grande lunaparque da sociedade e da história austríaca e europeia. Ou do mundo em geral, que ele via – não sem razão, constatamo-lo hoje claramente – como «um lugar cheio de erros». Entre nós, alguns, que podemos ver como versão menos funambulesca, mas igualmente radical e íntegra, viram também desse modo aquilo a que se chama «mundo» – que «é um erro», disse um dia Rui Chafes, que não tem forma fixa nem é lugar idílico, mas um «jardim devastado», escreve Maria Gabriela Llansol).

2.
A questão da autobiografia é uma não-questão em Thomas Bernhard, de tal modo a sua obra é inequivocamente a sua vida genialmente transfigurada – ou nem tanto – como, uma vez mais, o é numa autora nossa como Llansol. O autobiográfico enquanto matéria ficcionada (e muito reinventada, em particular nos «factos» desta Autobiografia) é em Bernhard o equivalente do seu estilo enquanto linguagem redundante que, como Adorno dizia de Beckett, é espelho de uma «historicidade imanente». Toda a Obra de Bernhard – em especial a ficção, que é autobiográfica, e a autobiografia, que não pode deixar de ser lida como ficção, e como tal se apresenta – é uma construção comparável àquela que serve já a Goethe para definir a forma então nova da «novela»: a partir de um centro que é «um acontecimento insólito» e obsessivo (aqui: ele próprio, Thomas Bernhard), vão-se desenvolvendo ondas concêntricas, semelhantes, mas de amplitude e intensidade diversas, num eterno ciclo da diferença na repetição. Ler Bernhard é, assim descobrir esse núcleo central e seguir os círculos que dele nascem e constituem a matéria do romance – ou da autobiografia, que, deste ponto de vista, não é mais nem menos importante do que o romance propriamente dito. Aqui, a ficção é autobiografia deslocada e amplificada, e a autobiografia necessariamente ficcionada, isto é, transfigurada para servir, quer os mitos pessoais do autor, quer a sua vontade de dar a ler a História na experiência subjectiva. Esconde-se aqui um paradoxo central da escrita de Thomas Bernhard: o eu, empolado até ao limite do insuportavelmente reconhecível, é, afinal, o momento menos importante dessa escrita. É ela, a própria escrita, que verdadeiramente conta, na sua radicalidade e singularidade. O resto, que está fora dos círculos desse mar de linguagem, é... o chamado «mundo» – que não existe, e não interessa, a não ser para denunciar o seu absurdo pela escrita.

3.
Daqui, é fácil concluir por que razão a Obra de Bernhard continua a questionar-nos, mesmo fora do seu habitat mais evidente e natural, a Áustria do autor. Mas, por mais estranho que pareça, o mais importante nesta Obra não é, nem o autor, nem «a sua» Áustria (de que ele parece estar sempre hainamouré, diz um crítico francês). Isso torna-se evidente hoje, quando o podemos ler com maior distância e serenidade. O que conta e o que fica é essa sua capacidade de transpor para uma linguagem límpida e limpa (apesar de todo o esterco do mundo que lhe subjaz) um posicionamento heterofágico, que engole o outro, o social, a História, para o vomitar no papel, que destila veneno sobre o mundo, mas mais não pretende do que, à maneira do seu par Samuel Beckett e do seu «realismo» também agónico, ler o mundo a partir do seu centro – que só por grande hipocrisia ou ingenuidade se quererá ver fora do próprio sujeito, de um sujeito para quem a escrita é o seu modo de estar no mundo. Em Bernhard, como em Beckett ou ainda em Llansol, do tecido subjectivo, objectivado e obsessivo do texto evolam-se os vapores da grande História do século e do mundo.

4.
Como o próprio Bernhard escreve num dos seus romances traduzidos cá (Betão), andamos sempre «às voltas com os mortos». O que quer dizer que somos reféns de passados, o próprio e os alheios. O tema freudiano da «morte do pai» desloca-se, no caso de Bernhard, para um espaço mais amplo que parece ser o de todos os grandes pais (e mães) que nos moldam e condicionam, a começar pelos próprios (no caso de Bernhard a questão nem sequer se pode aplicar ao pai biológico, com quem não conviveu, sendo, como foi, substituído pelo avô que ele idolatrava) e acabando na famigerada «pátria/mátria», simbolizada em Bernhard na peça-testamento intitulada Praça dos Heróis, o locus horrendus vienense que consubstancia todo o seu amoródio pela Áustria.
Na Autobiografia, esse «pai» odiado é o próprio Estado (o nazi e o austríaco anexado e todos os outros), origem de todos os males, pessoais e históricos. É este composto explosivo de ressentimento e exclusão, de abandono e opressão, que alimenta toda essa narrativa das origens que é a Autobiografia (nisto idêntica a muitas outras obras do autor), estruturada em cinco partes que trazem nomes que são ao mesmo tempo «alusão» a uma «causa» («raiz»? «origem»?) de onde tudo nasce (a Guerra e o que se lhe segue, e esse lugar real-simbólico da morte, de seu nome Salzburg), um «isolamento» e uma «retirada», até à «decisão» de pôr meia vida em escrita.
As «origens» são importantes em toda a obra de Bernhard porque é o regresso a elas, sob a forma de ficção, que melhor lhe permite compreender o mundo, igual na sua essência ontem como hoje, já que, como lemos em A Cave, é pela encenação literária das origens próprias que melhor se pode realizar um dos pressupostos centrais desta Obra: a ideia de que «o importante, afinal, é o conteúdo de verdade da mentira».

5.
Penso que a «ferida» não sarável presente em tudo o que Bernhard escreveu divide os leitores porque, provavelmente, nem os adoradores nem os detractores o entendem – quero dizer, não é possível chegar perto desta escrita a partir de tais posições (pré-)determinadas. Isto, porque há na sua Obra um fundo de «a-moralidade» e de indiferença que dificulta um acesso mais sereno a esta obra. A «genial imperfeição» de que Bernhard tem consciência em relação a si próprio (apercebi-me disso nas duas ou três ocasiões em que tive contacto pessoal com ele) vai de par com um sentido de superioridade que lhe permite ser o lugar irreferenciável da total in-diferença. Sendo o niilista perfeito que é, Bernhard é também o impossível moralista. O grande paradoxo desta escrita que parece estar sempre de dedo em riste é que ela não se faz a partir de um «lugar de sentido» claro e unívoco, muito menos com pretensões de validade universal. Bernhard é também o perfeito relativista de uma ironia dissolvente que não poupa nada nem ninguém. A começar por si próprio, ao ver-se como exímio autor de «fracassos de escrita».

João Barrento Escrito a lápis | 14 de Março de 2014

sábado, 15 de março de 2014

Ilda David'


Ilda David’ (n. 1955) frequentou o curso de Pintura da Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa, de 1976 a 1981. Vive e trabalha em Lisboa. Expõe — de 14 de Março a 15 de Junho na Casa de Camilo | Sala de Exposições do Centro de Estudos São Miguel de Seide | Vila Nova de Famalicão — 38 desenhos concebidos para a edição Sistema Solar de Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco.

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sexta-feira, 14 de março de 2014

A verdade da mentira | Bernhard, por José Riço Direitinho


                                                            Fotos de JRD, via Facebook

Ficção e biografia sempre andaram juntas nas narrativas de Thomas Bernhard, como se ambas participassem da grande encenação da sua escrita enquanto arte. Em Autobiografia, o austríaco usa o biográfico como material reinventado para compreender o mundo. Uma mistura explosiva de ressentimento e exclusão, de abandono e de privação, alimenta estas geniais narrativas das origens.

“Escrever sobre uma época, sobre um período da vida, da existência, seja qual for a distância a que já se encontre no passado e qualquer que tenha sido a sua duração, é um aglomerado de centenas e de milhares e de milhões de falsificações e deturpações, que aquele que descreve e escreve tem por verdades e unicamente verdades. A memória segue exactamente os acontecimentos e segue a cronologia exacta, mas o que resulta é algo completamente diferente do que efectivamente aconteceu.” (pág. 154) Isto escreve o austríaco Thomas Bernhard (1931-1986) em A Cave – uma retirada, o segundo dos cinco romances autobiográficos (originalmente publicados entre 1975 e 1982) agora por cá editados num só volume, Autobiografia. São cinco textos ficcionais em que o austríaco dá a conhecer episódios marcantes da sua infância e juventude, episódios decisivos para a construção da sua personalidade, e que se tornaram parte do magma fervilhante que alimentou a sua singularíssima obra literária. A vida como uma sucessão de catástrofes: orfandade, humilhação, pobreza, guerra, doença e provação, as paisagens bernhardianas de aniquilamento espiritual e físico dos seus primeiros vinte anos de idade, onde a morte pareceu exercitar-se em continuo nas suas mais diferentes variantes, até a personagem se transformar num “herói do espírito”.

Para o tradutor José Palma Caetano, professor e membro de associações internacionais que se dedicam ao estudo da obra de Bernhard, Autobiografia é da maior importância para se compreender não só a personalidade do autor, mas também o seu percurso de escritor e tudo o que está por detrás da obra e que a explica, ou pelo menos lhe serve de base. “Isto apesar de os cinco volumes que hoje compõem a obra com este nome – o próprio autor nunca os reuniu num livro nem assim os designou – abrangerem apenas o período da infância e juventude. Trata-se, porém, do período que marcou a sua vida e o lançou no caminho que o levaria ao culto da escrita e à carreira em que se notabilizou.”

Ficção e biografia quase sempre andaram juntas em Bernhard, como se ambas participassem do grande cenário da sua escrita enquanto arte. Essa relação íntima continuou depois nos romances que se seguiram a este “ciclo autobiográfico”: Derrubar Árvores, Antigos Mestres, O Sobrinho de Wittgenstein, e ainda a sua obra-prima, Extinção. Há sempre um regresso cíclico à memória, à lembrança dos acontecimentos, regresso sempre disfarçado de ficção e que assim lhe permite encenar magistralmente a sua arte. A ideia de desvendar uma existência é para Bernhard um acto sempre condenado ao fracasso. A memória pode ser fiel à cronologia dos acontecimentos, pode até corresponder ao desejo da verdade, as lembranças da noite antiga, mas aquilo que se escreve é já por si, e de maneira sempre inevitável, algo diferente daquilo que efectivamente aconteceu, e por isso um “aglomerado de deturpações e de mentiras”. A vida inteira foi uma prolongada tentativa em que ele nunca desistiu de transmitir a verdade, mas a verdade, para Bernhard, é intransmissível, e somos no fim forçados a aceitar que as descrições que fazemos de objectos e de acontecimentos reais não são a verdade, não se diz tudo, não é possível dizer tudo. O que Bernhard descreve em Autobiografia “é a verdade e, no entanto, não é a verdade, porque nada escrito pode ser a verdade”. Para o germanista João Barrento, a obra de Bernhard é inequivocamente “a sua vida genialmente transfigurada”, como o é também, lembra, em Maria Gabriela Llansol. “A ficção é autobiografia deslocada e amplificada, e a autobiografia é necessariamente ficcionada, isto é, transfigurada para servir quer os mitos pessoais do autor, quer a sua vontade de dar a ler a História na experiência subjectiva”, diz Barrento. “Esconde-se aqui um paradoxo central da escrita de Bernhard: o eu, empolado até ao limite do insuportavelmente reconhecível, é, afinal, o momento menos importante dessa escrita. É ela, a própria escrita, que verdadeiramente conta, na sua radicalidade e singularidade.” O biográfico enquanto material reinventado, em particular neste volume autobiográfico assumido como ficção, “é o equivalente do seu estilo enquanto linguagem redundante, que é espelho de uma ‘historicidade imanente’, como Adorno dizia de Samuel Beckett.”

Ao escolher a autobiografia como material de ficção Bernhard coloca-se no centro da sua arte. Para a germanista Teresa Seruya “muita da literatura austríaca tem esse pendor auto-reflexivo muito marcado, lembre-se Hugo von Hofmannsthal e a sua Carta de Lord Chandos. Thomas Bernhard cultivou, revolucionou e elevou este traço à perfeição. Esta radicalidade estendeu-se à crítica política e social impiedosa, como nenhum outro autor do seu tempo”. Para Barrento, a obra do escritor é uma construção comparável à que já servia a Goethe para definir a forma, então nova, da “novela”: “a partir de um centro que é ‘um acontecimento insólito’ e obsessivo (ele próprio, Bernhard), vão-se desenvolvendo ondas concêntricas, semelhantes, mas de amplitude e intensidade diversas, num eterno ciclo da diferença na repetição. Ler Thomas Bernhard é descobrir esse núcleo central e seguir os círculos que dele nascem e constituem a matéria do romance – ou da autobiografia, que, deste ponto de vista, não é mais nem menos importante do que o romance propriamente dito.”

As origens

As recordações estão sempre presentes em Bernhard como uma chaga. A memória parece ser como uma doença mortal, uma omnipresença maligna que o “condena para sempre à extinção e à infâmia”. O autor é refém de um passado doloroso que nunca conseguiu abandonar. Há coisas que se tornam graves mesmo quando não pensamos nelas. Cicatrizes que num momento se transformam em chagas. Todo o radicalismo violento que o caracteriza foi fruto de uma dura experiência vivencial que teve início com o nascimento num asilo para “raparigas perdidas”, em Heerlen, Holanda, para onde a mãe se mudara para trabalhar como empregada doméstica e dar à luz um “filho ilegítimo”. O facto de o pai nunca o ter reconhecido, e de a mãe o tratar com desprezo – como um empecilho que lhe estragara a vida – marca-lhe toda a obra. Em Uma Criança, o último dos cinco romances de Autobiografia, refere-se por várias vezes à relação com a mãe (que apenas se tornaria afectuosa um ano antes de ela morrer, tinha ele 18 anos). O facto de a mãe ter sido “vítima de um vigarista”, e de ele ter nascido, alterando para sempre a vida da progenitora, pesava sempre entre os dois. “Com palavras infernais ela atingia o seu objectivo de ter sossego, mas, por outro lado, lançava-me sempre no mais horroroso de todos os abismos, do qual a vida inteira nunca mais saí. Tu eras só o que me faltava! Tu és a minha morte! Ainda hoje nos sonhos isso me martiriza. Ela não tinha conhecimento desse efeito devastador. E tinha de desabafar. O filho era um monstro, que ela não suportava, uma criança cheia de artimanhas, uma criança do demónio. Ela nunca foi capaz de compreender o meu vício mórbido das sensações.” (pág. 461)

Desta relação tumultuosa com a mãe, e de um pai que não o reconheceu como filho (só anos mais tarde e apenas por via judicial), resultaram outros factos que o levaram a ter problemas de incontinência e a ser humilhado no “inferno da escola” (e também em casa – a mãe pendurava no estendal o lençol manchado da cama) e que o levaram (com a idade de nove ou dez anos) a passar uns tempos internado numa instituição nacional-socialista, “um lar para crianças de educação difícil”, longe de casa, na Turíngia.

O tradutor Palma Caetano não concorda com a ideia de a obra do autor dar grande importância às “origens”. Prefere salientar “a sua visão do mundo, uma visão crítica da banalidade e da incoerência do ser humano, e a procura dos sentimentos que dominam o homem e fazem muitas vezes da realidade um absurdo revoltante e insuportável”. Já para Barrento as “origens” são importantes “porque é o regresso a elas, sob a forma de ficção, que melhor lhe permite compreender o mundo, igual na sua essência ontem como hoje, já que, como lemos em A Cave – uma retirada [segundo romance de Autobiografia], é pela encenação literária das origens próprias que melhor se pode realizar um dos pressupostos centrais desta obra: a ideia de que ‘o importante, afinal, é o conteúdo de verdade da mentira’. Como o próprio Bernhard escreve num dos seus romances (Betão), andamos sempre ‘às voltas com os mortos’. O que quer dizer que somos reféns de passados, o próprio e os alheios.” Já quanto ao tema freudiano da “morte do pai”, Barrento é da opinião de que no caso de Bernhard ele se desloca para um espaço mais amplo, o de todos os grandes pais (e mães) que moldam e condicionam o Homem: “na Autobiografia, esse ‘pai’ odiado é o próprio Estado (o nazi e o austríaco anexado e todos os outros), origem de todos os males, pessoais e históricos. É este composto explosivo de ressentimento e exclusão, de abandono e opressão, que alimenta toda essa narrativa das origens que é a Autobiografia (nisto idêntica a muitas outras obras do autor), estruturada em cinco partes que trazem nomes que são ao mesmo tempo ‘alusão’ a uma ‘causa’ (‘raiz’? ‘origem’?) de onde tudo nasce (a Guerra e o que se lhe segue, e esse lugar real-simbólico da morte, de seu nome Salzburgo), um ‘isolamento’ e uma ‘retirada’, até à ‘decisão’ de pôr meia vida em escrita”.

Salzburgo

Num pequeno lugar na Baviera, um rapaz com oito anos monta uma velha bicicleta militar, pertença do seu tutor (que na altura estava com o exército alemão a invadir a Polónia), dá umas voltas na praça central e, de um momento para o outro, decide ir visitar uma tia que vivia perto de Salzburgo, a dezenas de quilómetros de distância. Uma “tentação que só podia ter um fim extremamente horrível”, recordará ele anos depois em Uma Criança. Atravessou alguns lugares com o maior dos entusiasmos, o caminho alongava-se, mas de repente a corrente partiu-se e enrolou-se de maneira impiedosa nos raios da roda de trás. Começou a escurecer e um temporal ameaçava transformar a região num inferno. Sentiu que a chuva lhe levava tudo, mesmo os sapatos, deixando-lhe apenas a miséria. Umas horas depois encontrou uma hospedaria, pediu ajuda e dois rapazes prometeram levá-lo a casa depois da meia-noite. Teve medo da reacção da mãe e não entrou. Caminhou na noite mais uns quilómetros até à casa do avô (o escritor Johannes Freumbichler), que ele “amava mais do que tudo no mundo”, porque só ele o compreenderia. Esta história é uma das mais antigas lembranças que Bernhard associa à cidade de Salzburgo, esse lugar simbólico da “morte espiritual” e que se tornará na sua obra uma estranha espécie de Gólgota, um calvário da morte mas também de redenção, num claro sentimento de amor-ódio. “A cidade onde eu cresci é na realidade uma doença mortal, na qual os seus habitantes nascem e vão viver, se não a abandonarem no momento decisivo, ou cometem, directa ou indirectamente (…) súbito suicídio ou são aniquilados, directa ou indirectamente, de forma miserável, neste solo de morte arquitectónico-arquiepiscopal-estúpido-nacional-socialista-católico, no fundo inteiramente inimigo das pessoas. A cidade é, para aquele que a conhece e aos seus habitantes, um cemitério de fantasias e desejos, belo à superfície, mas sob essa superfície efectivamente horroroso.” (pág. 24)

Para o germanista João Barrento, Bernhard é o perfeito relativista de uma ironia dissolvente que não poupa nada nem ninguém, a começar por si próprio, ao ver-se como exímio autor de “fracassos de escrita”. “O grande paradoxo desta escrita que parece estar sempre de dedo em riste, é que ela não se faz a partir de um ‘lugar de sentido’ claro e unívoco, muito menos com pretensões de validade universal.”

Depois do escândalo provocado em 1972 pela representação da sua peça O Ignorante e o Louco no festival de teatro de Salzburgo, ao mesmo tempo que sentia ser uma falsidade o que o dramaturgo alemão Carl Zuckmayer (1896-1977) dissera em Henndorfer Pastorale sobre a sua infância, Thomas Bernhard decidiu escrever sobre esse período marcante da sua vida. Foi a maneira como em Salzburgo fora então tratado que o motivou a começar esse projecto autobiográfico com uma diatribe contra a cidade e os seus habitantes. Salzburgo é a cidade para onde fora enviado aos treze anos pela mãe e pelo avô para estudar num internato nacional-socialista, e onde desde os primeiros dias a “ideia de suicídio lhe andou na cabeça”, sobretudo quando se fechava para estudar violino (esse “precioso instrumento de melancolia”) no escuro “compartimento do calçado”. A sensação de abandono, o sentimento de ter sido enjeitado pela mãe e pelo avô e entregue à disciplina estatal, no “ambiente brutal, rigoroso e infame” do internato, tirou-lhe o sono e o repouso durante meses. Nesse escuro “compartimento do calçado” fez ele várias tentativas para se suicidar mas nunca as levou “demasiado longe”. Foi enquanto aluno desse internato que viveu esse “tempo horrível” dos bombardeamentos aéreos a Salzburgo e se refugiou com os outros alunos nos abrigos insalubres onde as pessoas morriam de asfixia e de medo. Passada a guerra voltou ao mesmo internato, agora já não nacional-socialista mas católico. A “chamada sala de dia” tinha sido transformada em capela, e a fotografia de Hitler fora substituída pelo crucifixo, tudo o resto continuava igual. Esta aparente ligação entre nacional-socialismo e catolicismo, de que Bernhard acusa a mentalidade austríaca, marca muitas das suas obras, e afirma: “tanto o nacional-socialismo como o catolicismo são doenças contagiosas, doenças mentais e nada mais do que isso”. Para Bernhard, com o seu habitual exagero, o liceu nada mais era do que “uma instituição de aniquilamento do espírito”. E por isso uma manhã, em vez de ir para o liceu foi “na direcção oposta”, para o serviço de emprego, onde lhe arranjaram um lugar num estabelecimento de géneros alimentícios no “horroroso” bairro de Scherzhauserfeld, como conta em A Cave – uma retirada. É lá que adoece com uma pleurisia purulenta que o leva ao internamento hospitalar, onde chega a estar na enfermaria dos moribundos, experiência que conta em A Respiração – uma decisão (terceiro livro de Autobiografia). No livro seguinte, O Frio – um isolamento, narra a sua estada de recuperação no sanatório de Grafenhof, de onde saiu um mês antes de completar 20 anos.

Foram muitos os escândalos que provocou na Áustria, quer com a publicação de alguns livros, quer com discursos de “agradecimento” aquando da atribuição de prémios, autênticas diatribes contra a Áustria e os austríacos. Chegou a deixar lavrada em testamento a proibição da publicação e representação das suas peças em território austríaco até que caíssem no domínio público. Mas aos poucos foi passando de “escritor maldito” e controverso a escritor “nacional austríaco” (expressão que odiaria). Hoje a sua obra é “vista na Áustria como uma expressão literária do mais alto nível” – quem o afirma é o tradutor Palma Caetano, que vive em Viena. “Verificou-se realmente uma mudança de atitude após a morte de Bernhard, mudança que não foi súbita, mas que hoje é evidente. E pode-se dizer que só os velhos conservadores ignorantes mantêm ainda talvez alguma aversão ao escritor.”

A música

Para Bernhard, escrever é como compor música, criar uma estrutura musical em que as sucessivas repetições de palavras e variações de expressões funcionam como temas e trechos. Ele próprio declarou: ”Eu sou realmente uma pessoa musical. E escrever prosa tem sempre a ver com musicalidade.” Para o tradutor Palma Caetano, os textos trazem sempre essa dificuldade acrescida, uma tarefa complicada e por vezes mesmo desesperante, pois “o texto é como uma partitura em que as notas são naturalmente os sons da língua alemã. Mas esses sons são símbolos que formam uma ‘estrutura semântica’, isto é, que se articulam num significado bem definido, que produzem uma história. Traduzir esse texto será, portanto, criar uma outra partitura com as ‘notas’ da língua de chegada, mas em que a ‘estrutura semântica’ se aproxime o mais possível da da língua de partida.” Mas as dificuldades de tradução não se ficam por aqui: “as repetições, as tautologias, as redundâncias, a imagética, em especial as metáforas, os jogos de palavras, a criação de novas formas vocabulares, em especial palavras compostas (um processo fácil no alemão, mas em geral muito difícil ou impossível no português) e mesmo o tipo de linguagem, nuns casos violenta e agressiva e noutros repleta de sensibilidade e poesia, e, por outro lado, os períodos por vezes extremamente longos (em Correcção [Fim de Século, 2007] chegam a atingir três páginas), os tempos dos verbos, que Bernhard emprega de uma forma muito própria, o uso frequente do particípio substantivado (sem correspondência no português), as súbitas mudanças de perspectiva do narrador.”

Thomas Bernhard fez estudos de canto, violino e musicologia, e como um músico entregava-se à minúcia da escrita com claros propósitos estilísticos, como se se transformasse em instrumento para repetir uma palavra as vezes que fossem necessárias para “lacerar o mundo”, que achava insofrível. O músico António Pinho Vargas compôs em 2009 uma peça intitulada Um discurso de Thomas Bernhard para narrador e orquestra, que foi apresentada num festival austríaco, baseado num famoso “discurso de agradecimento” na entrega de um prémio. Para Vargas as repetições de Bernhard, como as da poesia de Paul Celan, correspondem a uma das ideias básicas da música, repetir entidades temáticas e trabalhar esses materiais. “Trata-se de um jogo com a memória. Nesse sentido a identificação dos elementos e o pouco tempo disponível que o público – e o leitor – dispõe, quando não há gravações, torna esse factor decisivo no acto de compor: apresentar à percepção com a máxima clareza o jogo entre os vários elementos.”

A germanista Teresa Seruya confessa que a fonte do fascínio que tem por Bernhard é a revolução que ele provocou com a desconstrução radical da narrativa, da sua artificialidade exposta, da auto-reflexão quanto à própria arte de narrar. “A estrutura progressiva de um princípio, meio e fim, é agora substituída pela repetição, frases enroladas umas nas outras, cascatas de pensamentos, associação de ideias, citação de outros, sugerindo que o cérebro e o pensamento são imparáveis na sua dinâmica, mas não num sentido de progressividade e novidade, antes recorrendo ao princípio da repetição que, tal como o mar, o fogo ou a música de Bach nunca é repetitiva porque, de frase para frase, há sempre uma alteração.”

Ler Thomas Bernhard hoje, a esta distância, continua a levantar-nos questões, pois o mais importante na sua obra não é o próprio nem a Áustria, mas a genialidade da sua linguagem límpida “que engole o outro, o social, a História, para o vomitar no papel, que destila veneno sobre o mundo, mas mais não pretende do que, à maneira de Samuel Beckett e do seu “realismo” também agónico, ler o mundo a partir do seu centro”, diz João Barrento. “Em Bernhard, como em Beckett ou ainda em Llansol, do tecido subjectivo, objectivado e obsessivo do texto evolam-se os vapores da grande História do século e do mundo.”

José Riço Direitinho, Ípsilon | Público de 14 de Março de 2014

quarta-feira, 12 de março de 2014

«Amor de Perdição», por Ilda David'



Exposição de pintura 

AMOR DE PERDIÇÃO
Ilda David'

Inauguração | 14 de Março de 2014 | 10h00

Casa de Camilo | Sala de Exposições do Centro de Estudos
São Miguel de Seide | Vila Nova de Famalicão

A exposição pode ser visitada até ao dia 15 de Junho
segunda a sexta: 9h00 - 17h30 | sábado e domingo: 10h30 - 12h30; 14h30 - 17h30


Ilda David’ (n. 1955) frequentou o curso de Pintura da Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa, de 1976 a 1981. Vive e trabalha em Lisboa. As mais recentes exposições individuais: «O Quarto e o Bosque» (desenho), Giefarte, Lisboa, 2012; «Vicente» (pintura), Teatro de São João, Porto, 2009; «Cartas de São Paulo» (pintura), Seminário Conciliar de Braga, Braga, 2009; «Pentateuco» (pintura), Museu Carlos Machado, Ponta Delgada, 2007; «Ínsula» (pintura), Escola António Arroio, Lisboa, 2006; «Tábuas de Pedra» (pintura), Porta 33, Funchal, 2005; «Florestas» (desenho), Giefarte, Lisboa, 2005. Para além da pintura, tem-se dedicado também à ilustração de livros em colaboração com muitos dos melhores poetas portugueses. Numa iniciativa de José Tolentino Mendonça, ilustrou uma nova edição, em oito volumes, da primeira tradução da Bíblia para língua portuguesa, traduzida por João Ferreira Annes d’Almeida, publicada pela Assírio & Alvim, 2006. Em 2012 ilustrou livros de Camilo Castelo Branco, Maria Velho da Costa, Manuel António Pina e Maria Gabriela Llansol.