para a Lea
No amor, pede-se a alguém para que nos
tire de nós mesmos.
No ensino da arte é diferente, não
muito, mas um pouco diferente.
Encontra-se alguém que nos tira — ou
nos ajuda a tirar — o nosso próprio dom de criar. Sem esse encontro, não há exactamente arte. O resto é história de arte.
(Sem dúvida, pode escrever-se e
pensar-se a história desses encontros — mas é então, precisamente, que a
história de arte se torna criadora porque ela é a narrativa do que, não tendo
apenas «interesse histórico», fez e faz literalmente história.)
*
Um tal encontro exprime a realidade e
a necessidade do ensino (quer dizer, da transmissão) da arte. Embora não se
possa transmitir o dom de criar (porque ele é inato), dão-se exemplos de obras
— com os quais, somente, se pode fazer despertar um dom. Aquele que ensina não
precisa de ser um criador (de obras), mas tem de saber dar o exemplo, em todos
os sentidos desta expressão. Talvez uma frase (suspendendo por uns segundos a
ideia de sacrifício no Ocidente, se é que isso é possível — e não há nada de
mais incerto), talvez uma frase de Padre António Vieira possa condensar essa
ideia de ensino (que tentarei desenvolver noutro lugar):
Há
homens que são como as velas; sacrificam-se, queimando-se para dar luz aos
outros.
*
A proximidade (a vertiginosa e até mesmo
perigosa proximidade) entre a arte, o ensino da arte e o amor termina aqui.
Demoremo-nos então por um instante em duas diferenças. Quando o amor dá filhos,
estes não são propriamente obras de arte; aliás, nem é requerido que o amor dê
essa espécie de frutos. A arte, em contrapartida, dá necessariamente obras.
Depois — e é uma segunda diferença — a obra, contrariamente a um filho, nunca
morre de morte natural, pelo menos se
seguirmos a ideia de obra que o Ocidente se fez. Pela simples razão que ela
mesma, a obra, se define como uma certa tiragem
da natureza.
Tal foi o motivo do meu primeiro
espanto quando comecei a ler o tratado de Francisco de Holanda.[1]
(Em rigor, mas isso requeria toda uma outra leitura de Francisco de Holanda, à
qual apenas posso aludir aqui: o meu primeiro espanto foi a redescoberta dessa
língua inaudita em que ele escreve, medita e cria, a ponto de, por momentos, eu
duvidar se não estava a ouvir uma certa invocação da graça feminina que se lê
na lírica camoniana, não esquecendo um certo culto do oximoro que lhe é
peculiar.)
Mas o espanto que me possibilitou
escrever reside no facto de Do Tirar pelo
Natural, não deixando de ser um tratado renascentista (sendo mesmo, importa
repeti-lo aqui, o primeiro tratado europeu exclusivamente dedicado ao retrato),
no facto de esse tratado enunciar algo de trans-histórico, por um lado, e de
transversal a qualquer género ou expressão artística, por outro. Esse algo é
precisamente o gesto de «tirar pelo natural» (que dá o título ao tratado).
Mas tirar pelo ou do natural o quê?
É assim que, simplesmente interrogando
o título, nos precipitamos para o estrato mais profundo do pensamento de
Holanda. O verbo «tirar», na sua expressão, tem uma acepção ontológica e
teológica.
Para dizê-lo numa frase, dando voz ao
próprio Francisco de Holanda,
o
Tirar ao natural [é] aquilo que só DEUS fez…
Ora, se subtrairmos o suporte
teológico a este enunciado — e eis, em suma, o que também tentei fazer —,
obtemos um dos mais rigorosos pensamentos sobre o gesto da arte. Desde sempre e
definitivamente. Com efeito, se tirar
é sinónimo de criar, então o que se
tira da natureza é a própria força nascente que faz dela, natureza, aquilo que
ela é: nascença (natura) perpétua. E
é porque a natureza (se) dá e (se) retira que a arte — por assim dizer no
intervalo da natureza, na sua diferença íntima — lhe tira essa força. Essa «nascença perpétua», na pintura, é
evidentemente a luz, e no retrato
esta concentra-se inevitavelmente nos olhos (ou em algo que substitua o olhar).
É pois uma tal luz que o pintor tem de tirar — e é exactamente por isso que
dizemos tirar um retrato (ou tirar uma fotografia; de resto, acaso
Francisco de Holanda tivesse podido conhecer a fotografia, tê-la-ia decerto
distinguido como ainda mais divina do que a pintura, pois a técnica fotográfica
parece ter contraído o acto de tirar a luz reduzindo-o a um único toque (a um
clique) — como se o grau de divindade da arte aumentasse com o grau de
apagamento da mão humana. Mas seria esquecer que a câmara fotográfica provém de
um desenvolvimento multissecular da camera
obscura…)
Como tentei condensar: a natureza é um
dom-que-se-retira, a arte é arte de
tirar. De tirar o vívido ou o vivificante da natureza — a qual não cessa de se
retirar ou de se esvair. Tirar (puxar para si) a retirada da natureza é
literalmente re-tratar ou fazer com
que a natureza se retracte (e é assim
que se explica como, a partir do âmbito — aparentemente restrito — do retrato,
se pode enunciar o gesto artístico como «arte de tirar»: «retratar» e
«retractar» são um só e mesmo verbo: trata-se sempre de tirar para nós aquilo
que se retirava…). Enquanto, pois, continuarmos a ler este tratado apenas como
um conjunto de preceitos sobre o retrato (como se alguma vez o ensino pudesse
resumir-se à enunciação de preceitos de forma mais ou menos virtuosa!), ou
enquanto continuarmos a entender exclusivamente a expressão «tirar pelo
natural» como equivalente ao acto de pintar um modelo vivo (quando, logo de
início, é o próprio Francisco de Holanda que elege o retrato executado com
«olhos invisíveis» ou «interiores»!), não apreenderemos a profundidade do seu
pensamento que antecipa por exemplo, pelo menos até certo ponto, a ideia
moderna de génio e, em particular, a de Kant.
*
Foi por isso que escrevi uma separata para acompanhar este tratado,
isto é, um texto que fisicamente sai do interior do livro de Holanda. Foi a
isso que ele me ia convocando, pedindo-me de algum modo que eu também lhe
tirasse algo, quase cinco séculos depois, com a sua voz a chegar-me intacta e
mesmo cristalina. Pareceu-me que deveria ficar assinalado — pelo menos, por uma
vez — que todos os textos e livros que escrevemos (assim como todas as obras
que fazemos) são separatas de uma voz anterior e interior a nós — e que tudo o
que inscrevemos também deve ser assim deixado, de certo modo já abandonado, em
todo o caso separado, para que outro desconhecido nos venha tirar algo que lhe
permita descobrir a sua própria voz.
Na verdade, um filho para ser filho, a
certa altura na vida, tem de se separar
da mãe — paradoxalmente para que esta continue a ser mãe… Foi um filho, pois,
que tentei tirar de Francisco de Holanda, quer dizer, da minha mãe para esta
ocasião, deixando à vossa escuta e consideração se a separata pode fazer jus à
epígrafe que o Paulo foi tirar (sim, uma vez mais, tirar!) a Herberto Helder:
As
mães são as mais altas coisas
Que
os filhos criam…
*
Resta-me dizer o essencial — e o
essencial, hoje, é agradecer.
Antes de mais, agradecer ao Paulo que
está na génese deste livro, nas circunstâncias explicadas na sua «Nota de
apresentação». Agradecer também — e quanto! — ao Raphael por ter retomado a sua
investigação de Mestrado e revisto o seu precioso trabalho de fixação do texto,
num equilíbrio inteiramente conseguido entre o português actual e o idioma de
Holanda; deste modo, o Raphael supriu a falta de uma edição crítica em português de um texto escrito na
mesma língua em 1549… E agradecer ainda — e muito! — ao Manuel por ter entrado
nesta aventura editorial, arriscada sobretudo no que diz respeito à separata,
pois ele teme — e com razão — que um filho destes se desprenda demasiado da mãe
e se perca por essa a um tempo violenta e indiferente distribuição comercial
livreira.
Por fim, tenho de voltar a agradecer
ao Paulo. Um agradecimento que muitos de nós aqui presentes lhe devemos. Quando
já esboçávamos uma capa tirada da obra pictórica de Holanda, o Paulo chegou com
uma imagem surpreendente mas evidente. Propôs uma sombra bordada pela Lourdes
Castro, fazendo uma espécie de faísca histórica através da qual um dos gestos
mais primitivos de tirar pelo natural — circunscrever uma sombra projectada, e
circunscrevê-la por amor, como diria Plínio — passava a iluminar o gesto de uma
artista nossa «contemporânea», trazendo assim também, e logo no rosto do livro,
o texto de Holanda para este presente. Mas havia mais: essa sombra bordada pela
Lourdes é a silhueta do Pedro Morais deitado sobre uma almofada.
O Pedro não pousa nem repousa em
lado algum: está sobre este branco — o branco que ele vestia e com que, de
certo modo, revestia o mundo. E a almofada (assim um pouco pendente na capa,
próxima do título) faz-me pensar que ele acharia justo este nosso gesto: nem pousado, nem repousado, mas suspenso e
transitando de mão em mão como um transeunte qualquer a cair numa espécie de
abismo branco. Que é talvez o branco da maternidade libertadora. Obrigado,
Pedro.
Tomás Maia, 1 de Março de 2019
[1]
O presente texto foi lido na apresentação do tratado de Francisco de Holanda, Do Tirar pelo Natural (Lisboa,
Documenta, 2019), na livraria Sistema Solar (Chiado) a 1 de Março de 2019.
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