Com a paisagem continental portuguesa em acelerada inquirição fotográfica — indo o geógrafo Álvaro Domingues à frente, seguido por Duarte Belo, mas também por Pedro Letria (Terra Formada, 1999), praias fluviais beirãs por Tito Morais, periferias urbanas por Paulo Catrica, urbanidades por André Cepeda, além dos trabalhos de Luísa Ferreira, Augusto Alves da Silva, Valter Vinagre, José Manuel Rodrigues e Pedro Lobo, entre outros —, José Afonso Furtado decidiu sair por uns instantes do ostracismo rabugento que o distingue e mostrar em livro — sem exposição que lhe anteceda, como sempre fizera desde Hospital (Caldas da Rainha, 1985-86) — um portfólio das suas antigas deambulações de quinze anos por minas abandonadas, um sortido de 21 lugares inóspitos de extrema ruína, desolação e dissolução que rasgam como chagas abertas o corpo ibérico do país, e desse modo chamar a nossa atenção para essa realidade brutal porém oculta pela cortina da indulgência e complacência habituais e pela sua própria recôndita geografia.
Não sei se, atendendo a Abril e Agosto de 2018 de que datam os escritos incluídos neste livro, a decisão deste campanha lhe surgiu com as imagens muito mediatizadas dos grandes incêndios de Julho de 2017 (quando a verdadeira face dum território em grave perigo foi exposta à outrance por todos os meios e insistentemente; e importa lembrar que o fotógrafo é do distrito de Leiria, dizimado como nunca antes) ou se terá sido a catadupa de anúncios de projectos de mineração — “o ciclo do lítio” (p. viii) —, de consequências ambientais ainda por avaliar, mas de efeitos paisagísticos seguramente devastadores, como os casos aqui registados elucidam —, seja como for esta iniciativa de resgate por José Afonso Furtado é bem-vinda e certeiramente actual, tendo sido acolhida por um editor experiente capaz de produzir um foto-livro em condições de excelência que este muito bom fotógrafo nunca tivera em três décadas e meia, refém que foi da limitada capacidade e competência de galerias municipais (Vale do Mondego, 1993; Linha de Costa, 1996; Estarreja, 1998; A Ocupação do Espaço, 2004), fundações (No Vale de Massarelos, 2001) e editores ou galeristas não especializados (Das Áfricas, 1991; Os Quatro Rios do Paraíso, 1994; Vale do Ave, 2002). Com recurso à tecnologia tritone e à mais-valia da Gráfica Maiadouro, a qualidade da impressão de Contaminações parece das melhores que se pode obter. E o formato maior (30 x 24 cm) dá às imagens toda a pormenorização que elas precisam e também merecem: o inverso do que sucedera em 2005, na edição do autor de Canada do Inferno (16 x 13 cm; design de Andrew Howard), o último livro deste fotógrafo.
A Furtado não interessa o humano mas a Paisagem e a sua representação, tema maior da Fotografia desde os seus primórdios. Não há, nunca houve retratos nem pessoas nos seus trabalhos. Tudo é desértico e enquadrado à distância, com zelos excepcionais de composição formal e de luminosidade favorável à graduação tonal das imagens a preto e branco. Em ruínas — que nunca lhe faltam (“ruínas sem nostalgia”, chamou-lhes certa vez Maria do Carmo Serén) —, não busca o destroço de presença humana concreta, rural ou industrial, que ajude a imaginar uma narrativa do ali vivido em tempos idos, como exemplarmente feito por Daniel Blaufuks em Fábrica (2013), por exemplo. Nada disso. Nem sequer “o cenário vazio e a sensação de que alguém saiu de cena”, que Teresa Siza refere a propósito das Periferias de Paulo Catrica. Não. Aqui o fotógrafo compraz-se no jogo infindável — no filão, para me ajustar ao motivo — das composições de volume, luz e sombra que enquanto andarilho persistente e obsessivo lhe vão aparecendo pela frente, num discurso tal que somos levados a pensar que tudo o que faz se destina a pretender ser visto e discutido no círculo restrito dos grandes sábios da história da velha fotografia como imagem.
O livro não é, por conseguinte, uma série de breves “ensaios fotográficos” sobre as minas abandonadas que lhe dão título, uma após outra estudadas na sua especificidade (há sequências de cinco, seis, sete, o máximo de dez fotografias; em Regoufe, Arouca), mas um deambular entrecortado entre elas. Os planos são todos de vistas largas, assaz abrangentes. A sua organização é estritamente visual (ou imagética, em linguagem de eruditos). Um completo despojamento informativo atira o esclarecimento dos respectivos lugares para o fim (pp. 190-91), e para maior desnorte do leitor num índice que é diacrónico mas ganharia em ser geográfico ou desdobrado em geográfico. Nos álbuns de finais dos anos 1990 Linhas de Costa e Estarreja, não era assim: legendas em rodapé ou na página ao lado identificavam de imediato os lugares; e realmente não vejo vantagem nenhuma em impor o actual desconforto, nem que ele possa ter sido uma opção de design que contrarie a vontade do artista. Quem quiser saber mais sobre onde e o quê, que se dê ao trabalho de andar constantemente para a frente e para trás, e vice-versa, vezes sem conta. Sequer há um mapa — sensato e útil, já agora… — que nos dê a distribuição territorial das duas dezena de locais fotografados, de Montalegre a Aljustrel e Mértola, do Vimioso à Panasqueira, de Vila Viçosa a Castelo de Paiva, e etc.
O exercício é, sobretudo, uma renovada declaração de alinhamento com a corrente “New Topographics”, que o título Contaminações explicita à perfeição. A pegada humana abre feridas na paisagem natural, e mostrar tais cicatrizes de uma maneira pungente embora fortemente estilizada tornou-se o desígnio de longínquos herdeiros dos grandes pioneiros da fotografia norte-americana. Lagoas que brilham pela química de metais emergentes, estruturas e maquinismos metálicos quebrados de erosão, edificações sem telhados, pirâmides de escórias, de tudo um pouco num abandono sobre abandono na longevidade destes sítios mineiros exauridos, a que ninguém foi dar depois um módico de ordem e conserto (para já não falar de perímetros de segurança), dão a este portefólio a verdade nua e crua da tremenda dissolução que grassa por este país contentinho e mediatizado afora, às vésperas de se lançar noutro disparate ambiental.
Bernardo Pinto de Almeida disse algures que José Afonso Furtado “fotografa como quem escreve”. Posso garantir-vos que, na verdade, fotografa muito melhor do que escreve…
Vasco Rosa, Observador, 9-IX-2019
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