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A poesia dos grandes bárbaros
Uma e outra experiências – o alvor da humanidade e o seu declínio – continuam longe de esgotar as reservas criativas da ficção, da mais laboriosa à mais foleira, tenha esta a forma que tomar: pirotecnia no cinema, fantasia distópica na literatura, saturação dos corpos na dança contemporânea. Para este efeito, e a título de exemplo, considere-se dois livros de um mesmo autor: A Guerra do Fogo (1909) e A Morte da Terra (1910), do francês de origem belga J.-H. Rosny Aîné, pseudónimo de Joseph Henri Honoré Boex (1856-1940). Um dos fundadores da ficção científica moderna, a par de Júlio Verne e H. G. Wells, Rosny Aîné entreteceu enredos fabulosos sobre o devir da humanidade, a partir do naturalismo de Zola e do entusiasmo com que lia as teses evolucionistas de Darwin e Lamarck. Acossado por essa “paixão poética pelas ciências”, segundo o próprio, alguns dos seus contemporâneos apelidá-lo-iam de “poeta da Pré-História”, o neto veria nele o “poeta do Cosmos”, e hoje está incluído no gabinete de curiosidades literárias que é a editora Sistema Solar, com tradução de Aníbal Fernandes.
A Guerra do Fogo dá um pulo à pré-história, quando o domínio das chamas determinava quem é que, entre as diversas tribos nómadas, detinha verdadeiramente poder. Logo a abrir, recuando-se oitenta mil anos no tempo (pelo menos, segundo os cálculos feitos pelo argumento da adaptação cinematográfica, em 1981, pelo cineasta Jean-Jacques Annaud), é na presença da horda dos “ulhamres” que se assiste à temível calamidade: “o Fogo tinha morrido”. E essa morte justifica a primeira contextualização patusca sobre os hábitos de vida desta horda primeva, as suas estratégias defensivas e imperativos alimentares, colocando no centro de todos os rituais a força misteriosa do Fogo: “O seu poderoso rosto afastava o leão negro e o leão amarelo, o urso das cavernas e o urso cinzento, o mamute, o tigre e o leopardo; os seus dentes vermelhos protegiam o homem contra o vasto mundo. Toda a alegria habitava perto dele. Tirava das carnes um cheiro apetitoso, endurecia a ponta dos chuços, fazia estalar a pedra dura […]. Era o Pai, o Guardião, o Salvador, no entanto mais bravio, mais terrível do que os mamutes quando fugia da gaiola e devorava as árvores” (p. 21).
Se há quem tome a ficção literária como exótico escapismo, esta saga em busca de lume vivo corrobora as expectativas, com o seu arsenal de enredos e intervenientes ariscos, “flor de uma vida com energia e veemência que imperfeitamente imaginamos” (p. 25). O guerreiro Naoh, “filho do Leopardo” e “emanação da raça”, tem como missão roubar o Fogo a uma horda inimiga, obtendo como recompensa, caso triunfe na demanda, uma das mulheres protegidas pelo ancião da tribo. Típica engrenagem romanesca, variação do épico de viagens. Uma acção matizada, com princípio, meio e fim, por encontros e situações incríveis: savanas com mamutes, tigres devorando megáceros, espécies proto-humanas em distintos estádios de evolução, como os “anões-vermelhos” e os “homens-de-pêlo-azul”. Há ainda espaço para rasgos contemplativos diante do ímpeto das águas ou da Lua subindo na noite, nos quais o olhar dos nómadas abdica inocentemente da função utilitária dos sentidos e se entrega à disposição desinteressada e reabilitante do espírito – o pressentimento dessa “trágica emoção”, segundo o narrador, “de onde nasceria, séculos e séculos mais tarde, a poesia dos grandes bárbaros” (p. 43). O direito ao prazer, no fundo, tanto mais genuíno quanto menor a consciência dele.
E se acaso o romance começa pouco a pouco a frustrar, tal é a obediência que presta aos constrangimentos tácitos do género, há no entanto súbitas irrupções do texto que põem a língua de fora às convenções da narrativa, mimando a primitividade dos seus heróis pré-históricos como autênticas festas da língua, com longas listas de exuberância vocabular. Como se àquele mundo de eras extintas se exigisse uma linguagem – ou um estilo – capaz de capturar, não tanto a verosimilhança provável do homo faber, mas o élan do impensável, a alegria furiosa de ver tudo o que existe pela primeiríssima vez, de um tempo ainda não pensável enquanto tempo e, por isso, eternamente durável, enquanto durar o prazer de enumerar pedras, plantas e bichos ao ritmo dos impulsos do corpo. Espécie de infinito, de alegria imanente à vida e à língua-pele que a capta:
“Gafanhotos vermelhos, pirilampos de rubi, carbúnculo ou topázio agonizavam na brisa; asas escarlates davam estalos quando se dilatavam; uma fumarola repentina erguia-se em espiral e achatava-se à luz da lua; havia chamas enroscadas como víboras, palpitantes como ondas, imprecisas como nuvens” (p. 102); “Por todo o lado pululava uma miúda população de lebres, coelhos, arganazes, ratazanas, doninhas e leirões… sapos, rãs, lagartos, víboras e cobras… vermes, larvas, lagartas… gafanhotos, formigas, carochas… gorgulhos, libélulas e nematóceros… zângãos e vespas, abelhas, vespões e moscas… vanessas, borboletas-caveira, piérides, nóctuas, grilos, pirilampos, besouros, baratas…” (p. 113).
E assim decorre “a juventude de um mundo que não voltará a existir. Tudo é vasto, tudo é novo…” (p. 224).
Ruínas humanas
Se queres encontrar o fogo, procura-o nas cinzas.
Provérbio assídico
Essa juventude auspiciosa, insciente quanto à natureza rudimentar dos seus anelos e costumes, é arrasada pelo cenário de holocausto nuclear que Rosny Aîné apresentaria no ano seguinte, 1910, com a publicação da novela A Morte da Terra. Se A Guerra do Fogo seduz pela vertigem das listas e das exibições lexicais, já A Morte da Terra, consideravelmente menor no número de páginas, parece escusar-se a descrições exaustivas ou a enredos rebuscados e, em lugar disso, detém-se com a circunstância que lhe serve de título: o acontecimento inequivocamente apocalíptico, o fim de todos os fins para a nossa espécie. A “derradeira idade”, a “era radioactiva”. Depois de todo o progresso técnico-científico ter sido responsável pelo dispêndio brutal dos recursos naturais, pela devassa do nicho sócio-ecológico, não resta mais da humanidade senão uns simples despojos, acantonados em pequenas ilhas. À volta, a crescer imparável, a imensa desolação do deserto.
Se no romance anterior o elemento do Fogo granjeava a dignidade edificante da maiúscula, símbolo maior das primeiras comunidades proto-humanas, em A Morte da Terra é à Água que se dirigem todos os apelos desesperados: severos abalos sísmicos ao longo dos últimos séculos têm sido responsáveis pela abertura de fissuras abissais nas planícies terrestres, o que, por arrasto, acabam por fender as reservas de água disponíveis. Extintas as variedades de fauna e flora, à excepção de umas certas aves cuja resiliência adaptativa lhes proporcionou uma racionalidade quase humana, “[a] terra deserta parecia mordida por uma prodigiosa charrua; conforme se iam aproximando, o oásis mostrava casas desmoronadas, a área deslocada, as colheitas quase afundadas, miseráveis formigas humanas a fervilharem no meio dos escombros…” (p. 47).
Como sublinha Aníbal Fernandes no seu prefácio, a imaginação corajosa de Rosny Aîné passa por descrever, em primeiro lugar, a consumação de um estado de calamidade: tudo correu irreversivelmente mal à biodiversidade do planeta, e nenhum deus ex machina é remotamente convocável para inverter a progressiva decadência. O ser humano assume-se, finalmente, como “o prodigioso destruidor da vida” (p. 131) – uma auspiciosa perífrase do que hoje se denomina como Antropoceno, o termo proposto em 2000 por Paul Crutzen, cientista holandês galardoado com o Nobel da Química, para designar a nova era geológica em que as acções humanas produzem efeitos devastadores no ambiente, superando as forças naturais.
Mais: n’A Morte da Terra não há qualquer excepcionalidade do humano em relação às restantes espécies, nenhum humanismo salvífico em nome do qual se possa reclamar um direito inalienável à vida, o desejo último de vingança por termos sido narcisicamente feridos (Vesalius, Copérnico, Darwin e Freud, esses conhecidos agentes desestabilizadores do humano enquanto falso centro do universo). Tanto que, como se depreende das últimas páginas, os últimos homens acabam por dar a vez, ao nível das hierarquias entre espécies, a umas estranhas mutações minerais que se alimentam de sangue humano.
Repare-se, ademais, que o visionarismo de A Morte da Terra é ainda mais surpreendente se pensarmos que o livro foi publicado quatro anos antes da Primeira Guerra Mundial, essa primeira constatação colectiva de que o humanismo civilizacional constitui, na verdade, um projecto falível e que “o abismo da História nos afecta a todos” (Paul Valéry, citado por Peter Sloterdijk em O Sol e a Morte, 2007, com o que diz ser “uma das duas ou três frases que definem o século em termos absolutos”, p. 92).
Resta esperar que a morte seja suave. Ainda que um vigilante, de nome Targ, tente convencer-se de ser a excepção, “a palpitar com os vastos desejos que durante cem mil séculos tinham feito viver a humanidade” (p. 88). Rebelando-se contra a “resignação lúgubre” dos demais, é com Targ que o leitor estreita uma inquietante solidariedade: afinal, Targ não é apenas um corpo a definhar, mas a vaga sombra de uma interioridade complexa, agarrando-se com um fervor desesperado aos seus “sonhos […] ridículos” e à “excessiva emotividade”. Prova irredutível, até ver, de que o humano, no mais desastroso dos cenários, é ainda promessa de excessos, de fuga aos eixos, de surpresas. O mundo ainda não acabou para Targ enquanto a sua consciência se tomar a si mesma como medida do mundo – e é a ele que o leitor dá a mão, palmilhando um terreno que se espera ainda extraordinariamente longe dos seus pés, como se a catástrofe mais não fosse que um isco para matizações artísticas e bazófias do imaginário. (Afinal, lê-se ficção científica, e o subgénero literário desprende-se, de súbito, das rasteiras categorizações com que os literatos adubam as horas: mais do que isso, ficção científica produz o efeito de um “ah” de alívio, semeando reticências entre um livro e a vida.)
Seja como for, o deserto cresce. E foi nestes termos que Rosny Aîné imaginou o deserto a crescer-nos pelo lado de dentro:
“De selecção em selecção, a raça adquiriu um espírito de obediência automática, e nesse ponto perfeita, com leis de ora em diante imutáveis. A paixão é rara, o crime nulo. Nasceu uma espécie de religião sem culto, sem rituais: a do temor e do respeito pelo mineral” (pp. 38-9).
“Nada havia, portanto, que agitasse a atonia dos Últimos Homens. Os indivíduos menos emotivos, que nunca tinham amado ninguém e nem a si mesmos se tinham amado, eram os que melhor fugiam ao marasmo. Estavam perfeitamente adaptados às leis milenárias e mostravam uma monótona perseverança, tão estranhos às alegrias como às penas. A inércia dominava-os, e ela mantinha-os defendidos contra a excessiva depressão e o impacto de inesperadas resoluções; eram os produtos perfeitos de uma espécie condenada.” (p. 88).
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[Diogo Martins, Comunidade Cultura e Arte, 17 de Maio de 2010]
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