sexta-feira, 15 de outubro de 2021

Apresentação do livro «Antropologia da Moda» de Filomena Silvano, por Sónia Vespeira de Almeida


«É um prazer enorme estar hoje aqui perto dos céus de Lisboa e na Moda Lisboa no lançamento do livro Antropologia da Moda de Filomena Silvano, colega e amiga, a quem agradeço imenso o convite para apresentar este seu último livro. É uma honra e uma responsabilidade.
 
1. Este livro é mais um marco na trajectória da investigação que a Filomena Silvano tem desenvolvido e espelha a vitalidade da Antropologia contemporânea, atenta ao que chega mas com forte interlocução com temas e autores clássicos, propondo análises críticas que nos ajudam a ler o real. E o real aqui, o pedaço de mundo, o recorte que a Filomena nos traz é, de facto, a moda e o vestir e o que este universo complexo activa.
 
Antes de me debruçar especificamente sobre este livro, e também com o objectivo de o compreendermos melhor, gostaria de sublinhar que a antropologia que a Filomena Silvano faz (uso aqui intencionalmente o verbo fazer), é uma antropologia desafiante e criativa que se caracteriza por diálogos e experiências com outras áreas, como por exemplo o design, o cinema, as artes visuais e, também, uma antropologia muito atenta nos últimos anos ao “fazer”. Acredito que estes diálogos e a atenção que dirige aos processos criativos, às criatividades culturais contaminam o seu modo de fazer e de ensinar antropologia.
 
O livro apresenta-nos os grandes territórios de interpelação que guiaram a autora no tratamento do assunto “moda” e que viriam a configurar o seu trabalho de campo mais recente (que não se encontra presente neste livro) realizado entre 2016-2018 no atelier do designer de moda Filipe Faísca, trabalhando sobre o que irradia a partir dele. Mas antes desta etnografia, importa destacar o trabalho anterior da Filomena sobre o traje ritual – em particular os mantos usados pelas rainhas nas Festas do Espírito Santo, na ilha do Pico, nos Açores – no quadro pesquisa de terreno realizada durante as festas de 2012, coordenado pelo antropólogo João Leal - onde analisa a cultura material têxtil no quadro mais vastos dos processos migratórios.
 
Porquê que convoco a etnografia estando ela ausente deste livro? Porquê que é importante? Convoco-a porque nos ajuda a compreender Antropologia da Moda, justamente porque o livro vem do real, vem dos mundos que “etnografou” e congrega simultaneamente o colectivo de autores que configurou a sua investigação mais recente.
                                 
2. Antropologia da Moda activa capilaridades várias a partir de um objecto complexo e contraditório que nos leva do luxo, às alterações climáticas até à pandemia. Ajuda-nos a reflectir porquê que o que existe não chega, é insuficiente como afirmou John Berger (1972) referindo-se à arte.
 
Filomena Silvano vai tecendo uma rota nómada. Não se cinge à Antropologia, tem a eficácia de ir anexando campos disciplinares diversos que permitem pensar a Moda hoje, apresentando uma constelação de autores e temáticas que são trabalhadas de forma muito ágil.
 
O que dá a ver? O que permite pensar Antropologia da Moda?
O livro desdobra-se em cinco momentos que revelam um quadro teórico-conceptual sofisticado e que é colocado em articulação com exemplos empíricos cuidadosamente seleccionados e analisados, que vão iluminando a teoria, aproximando-nos do mundo da moda. E conseguimos entrar…
 
Abre com os filões estruturantes dos primeiros escritos sobre a Moda e que configuraram as principais reflexões ao longo do século XX. Destaco um deles: o cruzamento tenso entre diferentes temporalidades. Por exemplo, a moda como um fenómeno que lida habilmente com a ideia de actualidade, de novidade, mas também como, paradoxalmente, se desajusta do tempo presente e como recua.
 
Depois o livro desenha um outro movimento. O olhar da autora desloca-se deste território interdisciplinar – onde habitam antropólogos, sociólogos, economistas e filósofos - para se deter na Antropologia, na sua disciplina, e em particular na Antropologia do Vestir e nas roupas enquanto cultura material, área de estudos que a autora tem também trabalhado.
 
Filomena Silvano sublinha o carácter ainda marginal destes tópicos na Antropologia, o que nos permite identificar o pioneirismo deste livro no contexto português e até internacional. Contudo, apesar do “vestir” ter estado presente nas análises antropológicas, o sub-campo disciplinar “Antropologia do Vestir” só se configura tardiamente, em particular no ano 2000.
 
De seguida cruza a moda e o vestir a partir de grandes temáticas dando visibilidade aos percursos sociais das coisas, à sua circulação, às várias condições que assumem, às relações que as pessoas estabelecem com as roupas, à corporalidade, às identidades e ao luxo.
 
No quarto momento, é trazida a dimensão política e de contestação no mundo da moda, analisando-se os direitos dos animais, a sustentabilidade no contexto da emergência climática - e alteração dos consumos daqui decorrentes e a resposta da indústria e dos criadores - a não discriminação racial, as condições de trabalho e a precariedade no quadro da neoliberalização da moda.  
 
São inquietantes as reflexões trazidas porque nos confrontam com os “processos antrópicos” que tiveram consequências planetárias (Haraway 2016) e que configuram o que designamos de Antropoceno.
 
Por exemplo, são necessários dois mil e setecentos litros de água para produzir uma t-shirt de algodão, que correspondem ao consumo médio de água por pessoa durante dois anos e meio (p. 165). Filomena Silvano dá a ver as contradições e complexidades do mundo da moda e afirma que “as pessoas do mundo inteiro têm cada vez mais consciência dos efeitos nocivos da produção de roupa, mas as pessoas do mundo inteiro consomem cada vez mais roupa.” (p. 166).
 
A atenção da autora ao presente conduz a uma reflexão que encerra o livro sobre a moda e o vestir na pandemia. E aqui são analisados como os desfiles, centrais para o funcionamento da indústria da moda ao construírem os sentidos e os valores das roupas, se reconfiguraram no digital, mas também são trabalhadas as alterações no vestir com o uso generalizado da máscara.
 
3. A grelha teórica magnamente costurada num arco temporal alargado, as temáticas e exemplos seleccionados, fazem de Antropologia da Moda um contributo extraordinário para multiplicarmos pontos de vista sobre o contemporâneo e percebermos as diferentes formas de se ser humano. Temos a moda, mas em articulação com os direitos laborais, com a emergência climática. Percebemos como as roupas circulam, quais as roupas que entram num desfile, e como se constrói o seu valor. Percebemos a vida social das coisas.
 
Contribui para percebermos porquê que cada um de nós se veste desta ou daquela maneira, porquê que a cantora Billie Eilish opta pelo oversize, porquê que Kamala Harris vestiu roxo na tomada de posse - a outra cor das sufragistas - ou ainda porquê que os índios brasileiros Caduveos tanto investem no cuidado e no adorno dos seus corpos.
 
E termino apropriando-me das palavras de Italo Calvino. No ensaio “Para quem se escreve”, que integra o livro Ponto Final, diz-nos que um livro é tão mais interessante se gerar curto-circuitos pela relação que estabelece com livros que não estão habituados a estar uns com os outros.
 
Antropologia da Moda activará esta relação, justamente por não ser um livro só para leitores de antropologia. Habitará, certamente, uma estante improvável.»

Sónia Vespeira de Almeida
Professora Auxiliar | Departamento de Antropologia NOVA FCSH
Investigadora do CRIA

Apresentação do livro Antropologia da Moda de Filomena Silvano
Moda Lisboa, 9 de Outubro de 2021
Palavras lidas, na ocasião

Sem comentários:

Enviar um comentário