É um prazer estar aqui hoje* para dar continuidade a uma conversa que começou há uns meses, quando, ao ler o livro O Desligamento do Mundo, me deparei com uma pequena nota de rodapé onde André Barata se referia ao desencantamento do mundo. Esta nota evocou em mim uma expressão que surge logo no início deste novo livro do André, “parar diante de qualquer estado de coisas”. Para resolvermos o problema enunciado em O Desligamento do mundo, não precisaremos também de nos entregar à possibilidade de um estado de encantamento? Algo que nos ligue às coisas do mundo, ou melhor, que revele a nossa enredada ligação às coisas do mundo, sejam elas as coisas da matéria, da política, do social, das trocas intersubjetivas, ou do afecto, e que conserve em si um certo espanto, estupor, até mesmo feitiço - se por este entendermos a alteração da perceção de estados presentes alienados desse entrelaçamento entre nós e o mundo. Um estado também que acolha, no seio dos processos de conhecimento, um não saber que acolhe a relação, o modo relacional de existir no mundo, que é precisamente, e chegando agora a este livro, o que se necessita “para viver em qualquer mundo”, considerando a relação entre “nós, os lugares e as coisas”.
Mas, que “qualquer mundo” pode ser este? O que é um mundo?
Não se trata de viver em qualquer lugar. Viver pode ser também num mundo de
errância - e dou propositadamente um salto para o último capítulo do livro,
onde se faz um “Elogio da Errância”: Errar, ou, diria o biólogo chileno que não
me canso de referir, Humberto Maturana: Derivar, e não evoluir. Andar à deriva
como quem deriva de uma relação com o que encontra, com o que se cruza, ou com
o seu nicho ecológico… E por isso também este pensamento, que tanto acolhe a
possibilidade de viver num mundo de lugares, feitos de hábitos, como em mundos
de errância, feitos de acontecimentos que se desfazem, é atravessado, em todo o
livro, por um pensamento ecológico. Este não é, como cada vez mais vamos
sabendo, um pensamento salvífico das “coisas da natureza”. É um pensamento mais
radical – no sentido de ir às raízes da situação em que nos encontramos – e que
por isso nos convida à revolução, como nos indica o título do capítulo não
numerado, “Copernicando, revolucionando”, assim escrito em gerúndio, sabendo
que a revolução não acontece hoje, por decreto, mas que é um movimento, em
realização contínua e sem lugar onde se fixe. Trata-se de, como aconteceu com
Copérnico, de voltar a descentrarmo-nos do centro do mundo. Acolher o outro –
planta, animal, pessoa, cultura, contexto - em toda a sua alteridade e
diferença - talvez abissal? – e vivermos nessa e com essa diferença.
“Para viver em qualquer mundo” começa com uma reflexão sobre
a rarefacção dos lugares. O que são lugares? Os lugares são feitos da “(…)
camada de significação que se enraíza, cultiva e floresce através de um hábito,
uma repetição – que se faz forçosamente no tempo. Os hábitos são habitados como
lugares e os lugares são habitados por hábitos.” Perfazendo, e citando
novamente o André, “(…) uma geografia humana”. Os lugares são “relações de
sentido”, podem ser físicos ou já só habitadas pela memória, e que por isso
escapam a qualquer localização abstrata via GPS. Para entender o processo da
rarefação dos lugares, André Barata revisita vários momentos da filosofia e da
história - de Aristóteles a Heidegger; dos finais da idade média aos
“alvores da Modernidade” e a todo o percurso da constituição de uma filosofia
da Natureza, da concepção do planeta como globo, à globalização cultural e
económica, da diferença entre planeta-globo e planeta-mundo, esta mais
integrativa e aberta a diferentes configurações do que possa ser este “mundo”
(e o que é ou pode ser um mundo, comum, é explorado no
segundo capítulo).
Aludindo à tentativa da modernidade em criar o local-global
que reduz o lugar à abstração, André Barata escreve: “No mundo globalizado, os
espaços vividos desligam-se do tempo tornando-se, finalmente, espaço único, sem
camada de significado, tão literalmente geométrico que nem com o espaço físico
coincide, apenas uma abstração, um espaço de passagem, de pessoas, informação e
capitais. E, do mesmo modo, também com a globalização, as temporalidades deixam
de ser lugares, tornando-se apenas tempo abstrato, um só, apenas mensurável,
sem camada de significado, tão literalmente geométrico que nem com o tempo
físico coincide, tão unidimensional como o espaço abstrato.” (p.16). Justifico
aqui esta citação tão longa porque neste excerto se evocam os outros dois
livros que precedem este que agora lançamos – E se parássemos de sobreviver – pequeno livro para pensar e agir
contra a ditadura do tempo (2018) e O desligamento do mundo – e a questão do humano (2020).
De um modo que não exige que os tenhamos lido antes, vou encontrando neste novo
livro ecos e ressonâncias desses trabalhos e reflexões anteriores.
Mas voltemos a este livro e a este tempo abstrato, que, em
relação à vida concreta, a força também à violência de “ser abstrata”. E volto
a citar: “Forçarmo-nos a ser abstratos em vida, a incorporar a abstração no
concreto é como uma dominação da teoria sobre a praxis, ou da necessidade sobre a contingência, ou
ainda, de uma concepção unilateral de natureza, desligada mas opressora da
cultura e da história.” – ora, é contra este desligamento, contra esta
hierarquia da teoria sobre a praxis, por exemplo, que este livro opera. Não
digo a que este livro se refere, digo “que este livro opera” porque,
sentindo-se o que nos é informado numa nota na página final desta publicação,
que se trata aqui de textos que derivam de publicações anteriores em artigos ou
ensaios de jornal, sente-se também um pensamento que é feito acompanhando e
entrelaçando-se, com a contingência, com as circunstâncias históricas atuais e
com a práxis da vida quotidiana. É também de questões que reverberam diretamente
dos dias que estamos a viver que este livro emerge, interpelando o nosso modo
de os habitar.
E porque de habitação se
trata, encontramos também uma reflexão sobre como a experiência, o desenho e os
materiais da arquitetura e das cidades fazem lugar. Do lugar-casa, de segurança
ou refúgio, “cosmos próprio” ou “canto do mundo”, referindo-se a Bachelard,
onde cada pessoa “habita os seus hábitos” (p.28) e cumplicidades, e que
transportamos como uma sombra (p.30) pelo mundo. São também pensados os materiais
vítreos, esmaltados, plastificados dos edifícios, escorregadios ao toque e que
não conservam a memória das transformações temporais; o controlo vivido nas “smart cities”; a
“cidade dos 15 minutos” que “assenta em vários princípios - ecologia, proximidade,
solidariedade, participação”, que fazem re-existir de outro modo os espaços
exteriores tidos como pandémicos, ameaçadores e irrespiráveis que nos obrigam a
recolher nas nossas casas.
As casas surgem também como lugares de partilha:
“Visitarmo-nos ciclicamente, amigos, familiares, amantes, é ir fazendo
intersubjetividade, não como a construção de um edifício de paredes, mas
como fluxos de dar e receber, com o prazer do reconhecimento, também da
descoberta da diferença e da sua fruição.” (p.31)
Retomo esta passagem, “ir
fazendo intersubjetividade, não como a construção de um edifício de paredes”,
pois “Não se é sem mundo e, dificilmente, sem ser parte do mundo de outrem.”
(p. 39). O mundo, que este livro nos convida a viver, é concebido como uma “multidão
de singularidades” em múltiplos estados de partilha. Uma partilha que,
relembrando Arendt, num subcapítulo intitulado “Amor mundi”, não é só feita de proximidade e afeto, mas
também de distância crítica, uma distância em relação ao “interesse próprio” e
ao “individualismo da vida de cada um como único fim e a de todos os outros
como meios.” (p. 41). Sem essa distância, é o mundo que se rarefaz. Uma
política que considera esta distância é “uma consideração pela pessoa à
distância que o espaço do mundo coloca entre nós” (p. 42). Não uma política do
amor dos amigos, ou da família, mas do amor mundi, que conserva a polissemia das
singularidades que compõem o mundo: “Nas nossas sociedades contemporâneas, é
preciso articular de novo a experiência de mundo. Em toda a sua polissemia, o
mundo que tudo inclui e o mundo singular de cada um, visões de mundo,
esperanças de sentido que se habitam, mas com um pé dentro e outro fora, mundo
como espaço de amizade cívica, plural, de pensamento e discussão crítica”
contra o nacionalismo, os comunitarismos fechados e outros tantos tipos
de entrincheiramentos.
Entremos numa outra questão, já aflorada, e que não pode ser
deixada de lado quando falamos hoje de lugares, que é a sua dimensão ecológica.
André Barata refere-se neste livro à integralidade com que esta questão tem de
ser abordada, lembrando a encíclica Laudato Si, também conhecida como a Carta da Terra, do
Papa Francisco, mas também, o seu precedente num texto de 1989, As três ecologias,
de Felix Guattari, no qual se entrelaçam com efeitos de ação recíproca as três
esferas que compõem o grande nicho ecológico no qual vivemos: a ecologia
mental, a social e a ambiental. Todas estas esferas podem ser, e têm sido,
afetadas por práticas extrativistas e exploratórias que têm reduzido
drasticamente a complexidade dos ecossistemas (e o que estes contêm de
heterotopias, alteridade e diferença) e tornado o planeta num lugar inabitável.
Há uma pequena passagem do livro onde André Barata se refere a esta imbricação,
referindo que Guattari “propôs este alargamento de maneira a envolver, além do
mundo natural, também o mundo social e a própria subjetividade” (p.45). Ora,
talvez a chave esteja aqui, nesta palavra: envolver. Sónia Guajajara, uma das
vozes mais mediáticas das lideranças femininas dos povos indígenas do
território que conhecemos como o Brasil, diz-nos, repetidamente, que não é de
desenvolvimento que precisamos. Precisamos é de envolvimento. Deixar cair o
“des-”, este prefixo, que está também na base do “desligamento”. É esta queda
que nos fará compreender a ligação entre estas três esferas e a forma como uma
implica e contribui para o estado da outra. E isto permite-nos dar outro salto
no livro para chamar a vossa atenção para um outro exercício prático,
filosófico e económico, que é o de transformar a perceção que temos da
abundância e da escassez, o de transformar até a nossa perceção do que pode ser
uma relação de posse, enunciada, na página 49, como relações que vemos a se
desdobrarem em “posse recíproca”. Nesse sentido, a nossa
terra e a nossa casa possuem-nos tanto quanto nós as possuímos. E esta posse
surge-nos aqui como uma exigência de cuidado recíproco.
O subtítulo “O que tem de valer é a abundância e não a
escassez”, (p.57) lembra-nos que a necessidade de cuidado é abundante… Aqui,
André Barata mostra-nos como toda a economia dominante foi construída sobre o
paradigma da escassez - é isso que provoca a corrida às matérias primas,
que está na base do nosso ímpeto a amontoar, a possuir materialmente, ou
a consumir, antes que se gaste e desapareça… um paradigma que terá como base
também uma experiência de sofrimento. Nas palavras de André Barata, “uma
ecologia consequente - (…) deveria libertar o seu discurso deste imaginário de
escassez.”. E este é um desafio que me parece particularmente importante. Saber
ver onde estão as abundâncias e poder operar, fazer mundo, viver neste mundo, a
partir delas, e não do que é escasso parece-me uma revolução, ou uma mutação,
necessária, que exige ao mesmo tempo, uma paragem para que sejamos conscientes
acerca do paradigma a partir do qual estamos a operar. Esta passagem do livro
fez-me lembrar várias outras circunstâncias onde encontrei um olhar de
abundância onde outros só veem escassez. Só para referir alguns: no livro Afrotopia, de
Felwine Sarr, onde se opõem modos de fazer economia dos lugares que encontramos
em território africano, aos planos de desenvolvimento económico que o chamado
ocidente projeta para África; o trabalho da economista francesa Isabelle
Delannoy, no seu livro L’économie
symbiotique – régénerer la planète, l’économie et la société, onde
são expostas muitas formas de pensar e agir para mudar este paradigma económico
que, porque baseado no que é escasso, gera o escasso. Mas também nas artes,
quando vejo o documentário brasileiro sobre Estamira, essa mulher estrondosa,
em estados de alta vibração, que vivia na maior lixeira do Brasil e que olhava
para a abundância do lixo que fazemos, não como lixo, mas como descuido; no
elogio do “desperdício” e do que excede e da forma como ele permite a partilha,
entre humanos e não humanos, em obras como a do artista do Malawi Samson
Kambalu; ou no Manifesto pelos Produtos de Alta Necessidade, onde estão
incluídos as artes, os desportos, todas as atividades que permitem o re-tecer
das ligações sociais, escrito por poetas e filósofos das Antilhas (Edouard
Glissant, Patrick Chamoisseau, entre outros) como proposta para enfrentar a
escassez vivida nos anos da crise económica iniciada em 2008. Não podemos agora
entrar nos detalhes deste manifesto, mas, citando André Barata: “as relações
vivas na cultura e no convívio seguem a lógica da natureza - da abundância rara
- e não da eficiência que acumula o escasso. A ironia está em dar-se demasiado
crédito à oposição entre natureza e cultura quando ambas só se compreendem como
domínios da abundância rara e que, por isso, deve ser atentamente cuidada. A
festa do encontro das pessoas, o festival cultural e o lazer improdutivo não
dizem nada à gramática dos recursos ao serviço da multiplicação do escasso.”
(p.59). Este livro é atravessado por um pensamento que se faz também através
das artes, que convoca a poesia – Luiza Neto Jorge, com “Revoluções da
Matéria”, as esculturas de David Nash ou a obra de Fernando Calhau, entre
outros, em particular quando se pensa a dimensão material que se quer resgatar
de volta para a experiência.
Esta reflexão sobre a abundância e a escassez está no
capítulo “Copernicando, revolucionando”, um título que é como se andássemos
aqui a frequentar a revolução, política e epistemológica, gnosiológica talvez
também. André Barata pergunta-se, e pergunta-nos, aqui “O que nos faz parar
diante de um qualquer estado de coisas?”. Uma pergunta que inclui a distância
já referida, necessária a que haja mundo, e que ao mesmo tempo convida a que
consideremos este mundo de forma descentrada dos interesses humanos,
antropocêntricos: “Que me detém e faz reflectir sobre se devo, ou não,
perturbar um qualquer estado de coisas, mesmo que despovoado de seres
racionais, ou sencientes, ou vivos, ou orgânicos, apenas um estado de coisas
diante das minhas possibilidades de ação, por exemplo, um planeta inóspito,
extremamente longínquo, insignificante em todos os aspetos para a minha
existência.” (p. 52).
Pede-nos que consideremos que “existimos em
interdependência”, que “existir é coexistir” e que, por isso, referindo-se
neste capítulo a Kant devemos tratar tudo como fins em si e não como meios,
descondicionando o imperativo categórico; que estendamos o “princípio de
coexistência relacional” para além do humano, a todo o existente, tudo o que
existe com lugar no reino dos fins, o reino animal, o reino vegetal, o mineral
também, e acrescentaria outros quaisquer reinos que não conhecemos ainda… Um
mundo de coexistência com os que não são como nós, em todos os seus aspetos:
subjetivos, sociais e ambientais.
A rarefação dos lugares passa também por uma
desmaterialização das relações, evocada no primeiro capítulo e desenvolvida
depois no terceiro, “A revolução relacional com a matéria” (e não terei a
possibilidade aqui de explanar a forma como André Barata discorre sobre as
qualidades da experiência e do conhecimento por contacto, a evocação dos
sentidos, a forma como isso pode configurar também uma reflexão sobre a
experiência das imagens e da arte, os desafios que nos lançam as tecnologias de
medialização digital). A sua necessidade fulcral é logo enunciada no primeiro
capítulo, p. 37: “É só disso que se trata: uma materialidade relacional que
urge parar o cancelamento”.
Uma materialidade que resgate a “vitalidade energética” da
matéria que escutamos, lembrando a citação de Jane Bennett e o seu livro Vibrant matter, com
que André Barata nos convida a entrar no seu livro: “se o silêncio à volta for
profundo”. Uma matéria vitalizada, que escapa à plastificação – que isola e
desliga a matéria do mundo -, e que encontra expressão numa passagem acerca da
função dos rituais dionisíacos, aqui relacionado com a matéria dos corpos
humanos, mas que poderíamos estender a toda a matéria, humana ou não humana: trata-se
do “restabelecimento da respiração viva que sobrepuja as regras, uma redenção
da potência da matéria vibrante dos corpos e das suas vozes” (p.70). Um acordar
dos corpos que voltam a transpirar, cheirar, irradiar “para além da pele que os
envolve”. Não é por acaso que a certa altura, muito de soslaio, se faz
referência ao Qi, da concepção chinesa do universo – presente em escritos de
filósofos taoístas, confucionistas, entre outros -, a energia que tudo permeia,
que antecede (mas também está presente e procede) a diferença entre forma e
matéria, presente “nas coisas orgânicas como nas inorgânicas e nas realidades
imateriais”, que se revolve e irradia dos corpos. Há ainda um trabalho a fazer
para reconhecermos estas energias vibrantes na consciência de mundo tal como
ela foi concebida e figurada por outras culturas, noutros tempos e ou lugares,
que não os da modernidade europeia.
Uma revolução da matéria que nos impele a voltar a ser coisa, e não
objeto, coisa vibrante e agente também, resistente à semiótica e aos
enquadramentos dados pela significação e pela linguagem – e lembro aqui o
trabalho do filosofo italiano Federico Campagna, quando nos propõe um mundo de
existências libertas da linguagem, mas que para o fazer tem de voltar aos magos
persas, ao antigo pensamento mediterrânico que a modernidade encerrou na
designação de pensamento mágico. Uma matéria que “define o âmbito do
acontecimento do encontro, e, por isso, a complementaridade imprescindível da
alteridade” (p.81). Encontro perante o qual, as palavras, para serem
expressivas e não prescritivas, anulando qualquer experiência da alteridade
(indispensável, relembremos, a que se faça mundo habitável) e da matéria, têm
de conservar o “crepitar”, referido algumas páginas atrás numa citação que
André Barata faz de Italo Calvino. Trata-se também de libertar a experiência da
matéria das palavras que foram usadas para criarem oposições: de uma oposição
entre matéria e forma, entre natureza e cidades, entre mulher e homem - e aqui
André Barata alerta para o risco em que pode cair um certo entendimento do
ecofeminismo se não se fizer uma crítica desta dicotomia. Matérias que são
físicas e não físicas - a memória, por exemplo, táctil porque tão cheia de
impressões, do qual o oceano do filme Solaris é uma expressão, uma imagem. Sobre a
imagem, André Barata escreve: “Algo ser imagem é ter o poder ou a capacidade de
lançar de volta, irradiante, o mundo contido em cada coisa.” (p.32). A imagem,
talvez como a palavra, como uma matéria que faz irradiar o acontecimento.
Esta palavra, acontecimento, leva-nos para um outro capítulo,
que pensa a questão da irreversibilidade. O que é irreversível, que define o
que é também acontecimento, é o que temos tentado expulsar, claro que, sem
sucesso, criando um “culto da reversibilidade”, afastando-nos da morte,
suspendendo assim também o que é a vida, não nos inscrevendo nela. Como
acontece com a procura da reversibilidade do envelhecimento, ou da morte, que
nos mantém num estado “plastificado”, sempre jovem, por exemplo, ao não acolher
as alterações e as transformações da matéria. Como se nos quiséssemos escapar a
todo e qualquer acontecimento ou manter sempre todas as portas abertas, como
uma criança que “tem todas as possibilidades diante de si.” (p.89). Mas há que
crescer, conscientemente ou porque a vida a isso nos obriga, com mais ou menos
atropelos, consoante o vamos aceitando ou não. Escolhendo, determinando-nos e
fazendo caminhos e encontros de sentido(s) ou sendo atropelados por sentidos
impostos. Em defesa de irreversibilidade, André Barata lembra a importância de
assumir o risco de “confiar, deixar o mundo entrar-nos na vida.” (p.91), ao
invés de nos protegermos em escafandros contra a irreversibilidade,
“controlando a estranheza, rarefazendo a alteridade, contendo a exposição à
relação” (p. 97), cedendo ao medo, e transformando todo o exterior e toda a
alteridade (o que não é como nós) em ameaça. Ou como se escreve no capítulo
sobre o elogio à errância, “É preciso ir para existir” (p.135), para “gerar
mundo” (p.133). Lembra-nos também a importância de considerar a potência da
vulnerabilidade, que é também um lugar a habitar, se quisermos transformar este
mundo, ou qualquer mundo, num lugar habitável.
Neste capítulo sobre o Irreversível, há uma frase, numa
passagem sobre a mortalidade, que me fez parar e pensar na crítica à economia
de consumo, extração e escassez de capítulos anteriores, uma frase que sinto
reverberar em diversas discussões e ocorrências atuais (a guerra, a discussão
sobre morte assistida, por exemplo): “Morrer-se soberanamente e não às mãos das
circunstâncias é a vida a acontecer, finalmente consumar-se.” A dança do
consumar-se, a “possibilidade de ir morrendo vivendo” (p.90) e não o frenesim
do consumir-se. Deixo esta questão em aberto.
A minha apresentação já vai longa, e há muito mais no livro
do André Barata. Não entrámos o suficiente na defesa de uma razão ecológica, no
reencantamento, que evoquei no início desta apresentação e que surge quase no
final deste livro, no afecto que a matéria não nos devolve (será que não?!), na
discussão sobre o pós-humanismo e o transhumanismo, das simbioses e
resistências entre o humano e a tecnologia, e na forma que estas têm de
descentrar ou recentrar o foco no humano, perpetuando, ou não formas de desligamento,
exclusão e desigualdade; na possibilidade de um humanismo não
antropocêntrico. Resta-vos a vós ler o livro e, a mim, terminar esperando
que, estes minutos em que me escutaram, ou leram, não tenham sido tempos
perdidos mas ganhos, e citando o André Barata novamente: “O tempo que passamos
juntos, a atenção que nos damos uns aos outros, mas também às coisas, estar com
as coisas e fazer coisas juntos, sermos activos à roda de um projeto,
beneficiar da companhia ou da amizade, tem de poder ser pensado para lá de toda
a utilidade. É claro que gastamos tempo quando passamos tempo, mas o tempo que
passamos é único, é vivido, muito mais do que consumido. Não é tempo perdido,
mas ganho.” (p.62)
Muito obrigada pela vossa atenção.
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