Dois textos notáveis - na redescoberta de uma das
mais fascinantes figuras da pintura moderna como na afirmação da arte
enquanto estrutura essencial do mundo
Élie Faure (1873-1937) e Joachim Gasquet (1873-1921) são dois escritores pouco ou nada conhecidos em Portugal - representantes da mesma geração, não têm uma obra conjunta, nem uma afinidade de estilo. O primeiro era médico, o segundo poeta. Une-os a vontade de compreender as grandes construções de inteligibilidade do mundo que se materializaram na arte e, no caso da presente edição, a admiração por Paul Cézanne. Não são dois textos apologéticos, mas dois olhares de alcance profundo sobre o pintor, onde se descobre que cada obra, longe de representar o acontecimento retiniano, pictórico e cromático do mundo, se revela um abismo face ao qual a pintura surge como gesto de exploração do profundo presente na superfície. Ambos os textos são atravessados pela inquietação que irradia dos retratos, das naturezas mortas e das paisagens de Cézanne, e pela admiração pelo génio do pintor, pelo modo como sempre esteve inteiro a cada nova pintura, repudiando escolas, fórmulas ou atalhos. O Cézanne que surge nestas páginas é um pintor destemido e animado pela bravura daqueles que não temem ter de enfrentar a cada obra o desconhecido e começar de novo.
O texto de Faure desenvolve-se entre o registo biográfico e a análise do modo como são articulados naquela obra níveis diferentes de sensibilidade, intuições, cores, espaços. Trata-se de um retrato em que o mais importante é a indiscernibilidade entre artista e a sua obra: “Desde há muito os habitantes de Aix se tinham posto de acordo a seu respeito: o senhor Cézanne era louco (...). Um nariz roxo, pálpebras caídas, vermelhas e lacrimejantes, o lábio inferior saliente, faziam-lhe o rosto menos marcial. Vestia como um burguês: fato preto, calças um pouco enrodilhadas, chapéu de feltro no Inverno, chapéu de palha no Verão. Muitas vezes com bolsa de caça a tiracolo” (p. 15). Umas linhas à frente, acrescenta como conclusão deste esboço: “Era um velho selvagem, cândido, irascível e bom” (p. 17).
Esta abertura não revela o cuidado com que Faure nos faz descobrir as tensões vividas por Cézanne e o seu sentimento de desenquadramento relativamente aos seus contemporâneos. A sua curta estadia em Paris, onde conviveu com Delacroix, Courbet ou Manet, permitiu-lhe perceber que não lhe interessava a conversa sobre a arte, sobre as obras, sobre o método, mas sim o contacto com as diferentes coisas que alimentam o espírito e olhar do pintor. Em Paris “declarava-se geralmente que a pintura estava muito simplesmente para nascer; que em breve a ciência permitiria a criação de um método verdadeiro; que o velho esforço dos homens tinha sido manchado por erros místicos, e os tempos conscientes estavam para chegar (...). Ainda assim, quando os versos de Virgílio ou de Racine lhe subiam aos lábios, quando fugia bruscamente do grupo entusiasta onde o seu silêncio escavava desde há momentos um buraco, era para correr até à grande galeria do Louvre e deambular lá até à noite, dizendo de si para si que havia ali outra coisa, que antes destes homens outros tinham existido a dar à sua alma uma forma sensível que parecia incapaz de morrer” (pp. 23-24).
O “absolutismo positivista” dos seus amigos forçava-o a abrir o coração à exploração interior e, por isso, fugiu de Paris e regressou a sua terra natal, onde, como escreveu, esteve empenhado em “fazer do Impressionismo qualquer coisa tão sólida e perdurável como a arte dos museus”. Uma declaração a que Faure acrescenta: é através disto que devemos definir a sua obra, porque ela não se descreve (...). É um ensaio primitivo sobre a arquitectura geral e permanente da terra, um seu pedaço transportado com profundos alicerces para a moldura de um quadro” (pp. 24-25).
Esta ideia do ensaio primitivo não revela um estilo, mas indica a necessidade de permanente contacto com o mais profundo e próprio da pintura. Cada obra, em vez de uma paisagem ou de um retrato, era antes, sempre, uma direcção do espírito. É isto que permite a Faure dizer que Cézanne levava “dentro dele o soberbo esboço de um mundo onde cada quadro só era uma etapa que ele atingia esgotado, e abandonava porém de imediato, desta vez com a certeza de o repouso estar na etapa seguinte, e a cada nova decepção ganhando a energia para chegar mais longe. Nunca houve desdém mais magnífico pela obra feita” (p. 39).
Um aspecto essêncial deste texto, entre os muitos possíveis de enumerar dada a sua intensidade, é o modo como nele é destituída a questão da mestria, do bem desenhar. Se, por um lado, o pintor Cézanne estava todo na tela, no desenho, na cor, por outro o elemento decisivo não se localizava nesse fazer da pintura. Diz Faure: “Não se desenha bem ou mal, não se escreve bem ou mal. Quando se desenha, quando se escreve, diz-se qualquer coisa ou não se diz nada, repete-se sem emoção palavras que outros pronunciaram a tremer ardentemente, ou vão procurar-se na forma e no espírito misturados das coisas alguns caracteres novos que em nós farão agitar sensações, tanto mais fortes quanto melhor corresponderem às fontes desconhecidas que a evolução incessante do mundo todos os dias abre nos cérebros aventurosos” (p. 46).
Neste contexto, as palavras de Cézanne são um necessário e importante complemento do modo como Faure lê a sua obra e o seu espírito - e, justamente, o texto de Gasquet, O que ele me disse (que foi o ponto de partida para Cézanne, filme de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet), recria três conversas imaginárias, extraídas, diz o autor, “de uma centena que [teve] realmente com ele nos campos, no Louvre e no seu estúdio: “Juntei tudo o que pude recolher e o que pude recordar das suas ideias sobre a pintura” (p. 61). Existem várias passagens impressionantes e reveladoras do modo como o pintor via e sentia a paisagem, sobre os apelos da natureza à arte e sobre o modo como o artista deve manter a sua vontade em silêncio. Ele é a consciência subjectiva da paisagem e a tela a sua consciência objectiva: “A minha tela, a paisagem, ambas exteriores a mim mas uma caótica, fugidia, confusa, sem vida lógica, fora de toda a razão; a outra permanente, sensível, categorizada, a participar na modalidade, no drama das ideias... na sua individualidade” (pp. 64-65).
Através destas conversas, descobre-se um pintor abandonado à lógica colorida do mundo e nunca à lógica racional do cérebro (p. 78), porque para Cézanne os olhos são o lugar do pensamento. Uma elaboração metafísica e especulativa da pintura que não destitui Cézanne do seu ser pintor: “Ali, à frente dos meus tubos, dos meus pincéis, não passo de um pintor, do último dos pintores, de uma criança. Transpiro coração e sangue. Já não sei nada. Pinto” (p. 89).
São dois textos notáveis não só pelo modo como apresentam e descobrem Cézanne, mas como através de e com esse pintor constroem um mundo. E nesse mundo a pintura, que pode servir de metáfora para toda a arte, não é uma questão lírica, ornamental, excessiva, mas o movimento necessário de ordenamento das sensações, da experiência, do pensamento. A esta luz, a obra de arte é a estrutura essêncial do mundo ou, como afirma Cézanne, a forma sensível da alma humana.
Nuno Crespo, «Ípsilon» / Público, 14-XII-2012
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