Pouco tempo após a morte de sua mulher, o inconsolável Hugues Viane decide instalar-se na cidade de Bruges. Ele precisava de “silêncio infinito e de uma existência tão monótona que deixasse, quase, de dar-lhe a sensação de viver” (pág. 23).
Os seus passos são guiados pela destruição que existe em si. Durante o dia, Hugues mantém-se isolado, em casa, sem vontade de procurar qualquer solução para o mal de que padece. Chegada a noite, ele sai e caminha por canais solitários, bairros de ruas vazias e gente recolhida em casa. Bruges, a morta, é a cidade que espelha o interior de Hugues. A caracterização do local e das pessoas sofre o fenómeno de projecção do estado de espírito do personagem. Ali ele sente que o lugar está em comunhão consigo, pois para ele “Bruges era a sua morta. E a sua morte era Bruges” (pág. 24).
Mais tarde, virá a deslocar a sua obsessão para uma pessoa em substituição da cidade. A necessidade de se manter naquele sentimento de melancolia, como ponto de contacto com a sua falecida esposa, transforma-se numa paixão por um “espelho vivo” da sua alma. Talvez o mais indicado seja dizer que se mantém apaixonado pela falecida, mas no corpo de outra mulher, pois “Quando olhava para Jane, Hugues pensava na morta, nos beijos, nos abraços de outrora. Acreditava que possuía de novo a outra, possuindo esta. O que parecia acabado para sempre, ia recomeçar. E nem sequer enganava a esposa, porque ela voltava a ser amada nesta efígie e beijada nesta boca igual à sua” (pág. 39).
A cidade começou a rejeitá-lo. Hugues, até ali visto como um exemplo de sobriedade, começa a ser alvo de escárnio. A honesta castidade dera lugar a uma dor de plástico.
A aproximação a uma figura feminina implica um afastamento do personagem da cidade de Bruges, que fora o motivo da sua mudança. Quando ele se afasta de Jane, volta a projectar as suas condições emocionais na cidade. São variáveis do mesmo assunto: a obsessiva projecção de uma necessidade.
A peregrinação de Hugues anuncia um fim trágico. O leitor contempla a inevitabilidade da desgraça.
O escritor simbolista faz de Bruges, cidade outrora importante como entreposto comercial, muito mais do que um contexto para determinado enredo. O minimalismo da história permite ao autor desenvolver a relação metafórica entre local e personagens. O ambiente citadino é essencial no jogo de símbolos, na criação de contraste entre ambientes abertos e fechados, emoções e objectos, real e irreal, explícito e implícito, silêncio e som.
“Bruges-a-morta” (tradução e apresentação de Aníbal Fernandes) é um exemplo do que o simbolismo pode ser, quando entregue a esta qualidade: sugestivo, cativante e sedutor.»
Mário Rufino, «"Bruges-a-morta": a dor como religião», Diário Digital, 14 de Outubro de 2013.
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