quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Irracionalidades do amor e do sexo | Gonçalo Mira


                                                                                  Foto de Rui Soares | Arquivo Público


Um diálogo sobre a sexualidade, uma interrogação do jogo de poderes homem-mulher

Desde o início da carreira de Peter Handke (n. 1942) que existe uma ideia gravada na sua consciência e, consequente-mente, na sua obra: a de que a literatura não representa – não pode representar – nada mais do que a própria linguagem. Toda a tentativa de representar o mundo real esbarrará nos limites incontornáveis da linguagem. Daí que não exista, em boa parte da obra de Handke, uma preocupação com a questão da verosimilhança.

A sua mais recente obra é uma peça de teatro, originalmente escrita em francês, Os Belos Dias de Aranjuez – um diálogo de Verão, que é agora publicada pela Documenta, aproveitando a sua encenação por Tiago Rodrigues, no âmbito do Lisbon & Estoril Film Festival, onde o autor fez parte do júri da competição de curtas-metragens.

O subtítulo da peça dá-nos praticamente toda a contextualização que teremos: um diálogo entre duas personagens, durante o Verão. Começa com um parágrafo introdutório que é mais prólogo do que indicação cénica. Nesse parágrafo diz-se que há “Uma mulher e um homem, debaixo das árvores invisíveis, apenas audíveis” e “Uma mesa de jardim muito grande, vazia, entre a mulher e o homem”. Diz-se também que quer a mulher, quer o homem estão fora “de todo e qualquer enquadramento histórico e social – o que não significa que estejam fora da realidade – quem sabe se não será ao contrário?”

Esta questão é já um enigma. Ao contrário de quê? É a realidade que está fora das personagens? O texto permite assumir que sim, duas personagens que não estão fora da realidade, mas para quem a realidade é algo externo, algo que não lhes está no âmago. No seu âmago há apenas aquele diálogo, algures num “belo dia de Verão. Um jardim. Um terraço.”

A primeira frase deste parágrafo inicial diz: “E, de novo, um Verão.” Aquela subtil expressão temporal – “de novo” – alude à repetição, permite adivinhar um passado, outros Verões, uma história comum a estas personagens. É verdade que, por um lado, todo o teor da conversa permite adivinhar que estas duas personagens não são estranhas entre si mas, por outro lado, nunca é explicitada qual a relação entre os dois, em que pontos e em que circunstâncias as suas vidas se tocaram.

É, aliás, esse teor da conversa que em grande parte contribui para a noção de inverosimilhança, de existência para lá de qualquer noção de realidade. Se não estão fora do real, como Handke parece querer convencer-nos, o real está fora deles – este diálogo de Verão parece ocorrer numa espécie de realidade paralela.

Não é fácil justificar esta afirmação. O escritor norueguês Karl Ove Knausgaard, num ensaio recente, escrito a propósito do International Ibsen Award com que Handke foi galardoado, escreveu que os livros do austríaco “resistem à interpretação. [...] Os livros de Handke interpretam-se a si mesmos.” Mas podemos justificar esta sensação de realidade paralela, ou pelo menos de distanciamento de uma imagem reconhecível de realidade, com uma certa ideia meta-ficcional que existe na obra.

Depois daquele parágrafo introdutório a que já aludimos, a primeira fala é do Homem: “Quem é que começa?”. A Mulher responde: “Tu. Como estava previsto.” Não são muitas as indicações desta ordem, que permitem, mesmo que nunca explicitamente, falar de meta-ficção, mas há uma outra, mais adiante, em que a Mulher diz: “Felizmente, não estamos num drama, nós dois. Apenas num diálogo de Verão.” É vago, mas o facto de remeter para o subtítulo e de falar, antes, no drama (género teatral na sua origem), aliado às indicações anteriores como o início do diálogo, dão azo a que se possa especular sobre a possível consciência ficcional destas personagens.

Tudo isto é apenas uma contextualização do que rodeia o diálogo em si, que é o que realmente importa. Mas o estranhamento que esse diálogo nos provoca parece pedir que se fale de tudo o que o envolve, de tudo o que o possa justificar. É apenas um impulso, que eventualmente não agradará a Handke, que nos desvia do diálogo. Contudo, não nos desvia ao ponto de não podermos desfrutar deste, apreciá-lo.

Àquelas duas primeiras falas já citadas, segue-se uma pergunta do Homem: “A tua primeira vez, com um homem, foi como?” O leitor que se estivesse a perguntar de que tipo de estranhamento falávamos tem, com esta primeira pergunta, uma pequena noção do que o espera. E se não for suficiente, a resposta da Mulher é a seguinte: “Olha ali um bútio, por entre as árvores, como uma flecha. Ou será um milhafre?” Antes desta resposta há uma indicação cénica que diz: “A Mulher com uma voz adequada à cena, tal como o homem, mas não demasiado”. Esta indicação é, toda ela, um enigma. O que é uma voz adequada à cena? Mas não demasiado?

Segue-se a resposta do Homem, ainda sobre as aves, para culminar insistindo na pergunta que tinha feito e à qual a Mulher não tinha respondido. A partir daqui, com outras interrupções semelhantes, o diálogo centra-se em questões de sexualidade, numa interrogação do jogo de poderes homem-mulher.

A descoberta da sexualidade pela Mulher, num baloiço, aos dez anos foi como “a origem do mundo” e ao mesmo tempo privou-a não apenas da infância, mas também “de toda a legitimidade de uma habitante do mundo habitual”. A Mulher descreve assim a sensação: “Pavor doce – doçura de um além – novo pavor sem a doçura – memória da doçura – etecetera, etecetera, etecetera, até hoje.”

À medida que se desenrola a conversa, e desta primeira experiência sozinha a Mulher passa para a primeira experiência com um homem, instala-se a desconfiança de que esse primeiro homem terá sido o Homem, o seu interlocutor. Quando, após a descrição desse primeiro encontro sexual, o Homem lhe pergunta se permaneceram divinos, a Mulher responde: “Durante algum tempo. [...] Pelo menos, para além desse longínquo dia de Verão.” Este longínquo dia de Verão pode ligar-se à primeira frase do parágrafo introdutório. Se agora, no momento da acção, é “de novo, um Verão”, aquela ideia de repetição não estará a aludir a esse primeiro e longínquo encontro entre os dois?

O Homem pergunta: “E depois?”. A Mulher responde: “Casámo-nos e continuámos felizes e cada vez menos divinos, até ao fim dos nossos dias” e intensifica a desconfiança de que o Homem com quem fala tem um passado em comum consigo – quem sabe até um presente. Contudo, o relato de experiências sexuais da Mulher não se esgota nesse primeiro homem. Houve outros, ainda que tenham funcionado quase sempre como vingança. Não vingança contra um homem, ou contra os homens em geral, mas uma vingança íntima dirigida “contra um outro espírito, um espírito hostil, inimigo, que reinava, e que parece reinar ainda, sobre este mundo.”

É uma investigação sobre esta vingança, sobre as motivações e irracionalidades do amor e do sexo, que encontramos em todo o texto. Num diálogo que tem tanto de estranho e inverosímil como de poético, Handke guia o leitor (e o público, sendo um texto escrito para teatro) a um questionamento não tanto psicológico quanto sensorial.

Com todo o risco que há em fazer este tipo de afirmações sem ter visto a peça encenada, Os Belos Dias de Aranjuez parece ser um texto que não pode viver só no palco, que exige a leitura – mais do que uma, até, tal a amplitude de interpretações que permite. Em todo este jogo de personagens fora da realidade ou realidade fora das personagens, há neste diálogo estranho matéria que reconhecemos, que ecoa dentro de nós e que nos é transmitida com toda a beleza que exige.

Gonçalo Mira, Ípsilon | Público, 28 de Novembro de 2011

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