terça-feira, 27 de junho de 2017

«Tomás Maia – "O Olho divino - Beckett e o cinema"», por João Seguro



Artista, ensaísta, professor. Tomás Maia é uma voz ímpar em qualquer panorama artístico. O seu pensamento, estruturado a partir da tradição filosófica francesa, embora com recurso a metodologias, ideias e referências muito próprias, apresenta-se pela sua escrita com uma cadência que revela a complexidade com que o autor perfila noções e encadeamentos teóricos que têm origens tanto nas idades mitológicas, na Grécia pré-socrática ou no Médio Egito até à Provença do século XIX.
Publicado pela Documenta, editora que tem lançado o trabalho escrito de Tomás Maia, este livro, O Olho Divino – Beckett e o cinema, último livro do autor, continua a sua jornada por temas do visual, da visualidade, e da representação, já várias vezes visitados por si.
Este livro tem como ponto de partida uma análise da noção de visualidade, tendo como dínamo dessa análise o polémico filme Filme (1965) de Samuel Beckett e Alan Schneider. Tomás Maia aventura-se no desafio de discorrer acerca de “O”, o mítico personagem interpretado por Buster Keaton, e de, ao tentar examinar esta criatura e a sua insólita foronomia, analisando também “E” (o olho omnipresente da câmara de filmar), formular uma teoria da visualidade enquanto atributo predador, em simultâneo animal e humano. É pois, partindo de uma demarcação entre humano e animal, entre caçador e caçado, que Maia refaz um trajeto prático do humano como simultaneamente animal e homem, através da sua dupla e eterna (e interna) condição de caçador e caçado.
Se este Filme tem como mote Esse est percipi, que Beckett referencia no guião (traduzido por Tomás Maia e André Maranha na secção final do livro) e que de resto é o mote, plasticamente glosado durante toda a obra, ao ponto de muitas vezes podermos rebater acerca da sua contradição, inconsequência ou desadequação, a realidade é que, neste ensaio, Tomás Maia aponta-nos uma direção especulativa que refaz toda a noção de visualidade ocidental e da propriedade de uma “arte visual”. Quando nos faz notar que “Beckett suspende a acção no confronto final – sem que ninguém desfira o golpe mortal: Filme termina quando o baloiçar da cadeira se extingue. Com esta suspensão, Beckett mostra-nos o homem abandonado a si mesmo, convidando-o a renunciar à sua imemorial vontade predadora. Beckett mostra-nos que o destino moderno alterou definitivamente a posição do homem face ao sentido (ou à ausência de sentido) da sua própria vida, obrigando-o a abandonar a sua condição de «caçador de Deus» para assumir a de «presa» (de si mesmo).”Maia está precisamente a caracterizar uma potencial configuração da “arte visual”enquanto uma prática de capitulação perante as impossibilidades de representação, que fazem do homem um caçador rendido, capaz de “Deixar de ser servil sem ter a ilusão de se assenhorear da morte, ou ser o Senhor da morte avassalando o comum dos mortais?”
Pelo alcance da curta obra de Beckett em cinema, e pelo que esta tem proposto ao mundo das artes visuais, este é um texto essencial, que nos obriga a reconsiderar a relação dos modelos de visualidade do ocidente com as funções originais da prática artística enquanto trabalho primordialmente animal.

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João Seguro, "Guarda-livros", Contemporânea, Junho / Julho 2017

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