O Nevoeiro de 26 de Outubro — E Outras Lições
de Abismo
Maurice Renard
Entre as espessas trevas do desconhecido e o bloco luminoso do nosso saber, há uma zona muitíssimo cativante que é o domínio da hipótese. Agitam-se ali as personagens do romance e a arrebatadora ilusão de compreender o não explicado.
Numa grande maioria das imaginações de Maurice Renard, o leitor é convidado a um final de história que o abisma, que o deixa a braços com a perplexidade de uma hipótese pressentida mas nunca cientificamente explicada. Sente-se longe das explicações para-científicas à Jules Verne, das tentativas de redução a laboratório que encontramos no Stevenson de Jekyll e Hyde, no homem invisível e nas explorações do tempo de H.G. Wells.
Os cinco textos desta edição exemplificam sob duas formas diferentes o seu «abismo». Se «A Glória do Comacchio» e «A Sublime Cantora» são de um fantástico mais tradicional, mostrando-nos o escultor renascentista Cesare Bordone abismado por visões de glória e horror provocadas por uma actuação com efeitos maléficos a que ele próprio parece atribuir uma duvidosa eficácia, ou a «humanização» de figuras mitológicas, os restantes textos são exemplos claros da «fórmula» renardiana — sugestões do «maravilhoso-científico» que ela gosta de fazer-nos aceitar como verdades inacessíveis aos actuais conhecimentos do homem.
«O Nevoeiro de 26 de Outubro» é a estupefacção de dois cientistas que se deparam com um inexplicável distúrbio na progressão do tempo — do tempo com um capricho retrospectivo. Vêem-se a viver uma aventura à Wells, mas sem a complicarem com explicações mecânico-científicas. A desgraçada queda de Ícaro terá sido a tentativa frustrada de recuperar a liberdade aérea do «homem alado de Cormonville»? O maravilhoso-científico de Renard voa tão alto como o seu antepassado pterodáctilo.
Ele… ele só voou na vida até ao 18 de Novembro de 1939; o dia em que foi vítima das consequências de uma operação cirúrgica menos eficaz do que a outra, a do pianista que ele celebrizou em As Mãos de Orlac. Ficou no cemitério da ilha de Oléron — um ventoso sul de França que em dias passados oferecia ostras aos seus prazeres da mesa, e ao seu sono noites batidas pelo som do mar; o mar que ali parece exprimir-se com uma insondável revolta — e não dá descanso às suas costas selvagens.
[Aníbal Fernandes]
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