«Vou-vos dizer, vou-vos explicar tudo. Tinha, portanto, dez, doze anos e morava nessa velha casa que dava para o porto, um pouco napolitana, completamente a cair, com lençóis a secar a todas as janelas do pátio, gatos semi-selvagens que lutavam nos telhados e, claro, os bandos de pombos. Nesse tempo não sabia o que era um escritor, não fazia a menor ideia, nem suspeitava que tinha havido um escritor chamado Jean Lorrain que habitara a mesma casa, outrora. Recordo esta casa sobretudo na época do calor, no Verão e no começo da Primavera, porque deixávamos as janelas abertas e escutávamos o barulho dos gaivões e os arrulhos dos pombos. Mas havia especialmente um barulho que mexia comigo. Não posso verdadeiramente dizer porque é que me inquietava, mas ainda hoje quando penso nisso me arrepio e entro numa espécie de estado de melancolia e impaciência que precede o momento em que sei que terei de me sentar em qualquer lado, ali mesmo onde estou, agarrar num caderno e numa lapiseira e começar a escrever. Este barulho, eram as vozes dos jovens que chamavam uns pelos outros no pátio, que gritavam os seus nomes. Havia os rapazes que assobiavam, e os outros que metiam a cabeça à janela, e diziam: "Estás abonado?" E os de cima: "Onde é que vão?" Eles iam já não sei onde, à praia ou à feira, ou simplesmente conversar à esquina da rua, ou esperar as raparigas que saíam da escola Ségurance, isso já não tem nenhuma importância. Mas quando ouvia aqueles assobios, e os nomes que ecoavam no pátio, imaginava uma vida diferente da minha, imaginava as correrias pelo infinito das ruas, imaginava os banhos na água fria do mar, o sol, o cheiro dos cabelos das raparigas, a música dos dancings, a aventura, a noite. Nunca ouvi chamar o meu nome no pátio, nunca ouvi assobiar por mim. Eu vivia na mesma casa, mas era outro mundo. Aqui está, é por isto que eu escrevo.»
J.M.G. Le Clézio, in Libération, Março de 1985. Tradução de Ana Cristina Leonardo. AQUI, AQUI e AQUI.
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