O Cinema da Poesia de Rosa Maria Martelo
colige uma série de ensaios (alguns inéditos e outros anteriormente
publicados mas que aqui surgem sob forma reformulada ou revista*) sobre o
tema que o título da obra sugere. O título, no entanto, pode ser um
pouco enganador, se nos levar a pensar que o livro se trata meramente de
um exercício de mapeamento da relação ecfrástica que alguns poemas
pudessem estabelecer com o cinema.
Embora este aspecto esteja contemplado (veja-se especialmente o capítulo “Imagens de Imagens na poesia de Manuel Gusmão”, pp. 225-248, em que se reflecte sobre o diálogo entre certos poemas de Migrações do Fogo e In the Mood for Love de Wong Kar-Wai), o tema é mais abrangente e a leitura que Rosa Maria Martelo vai fazendo ao longo do livro, apoiando-se no pensamento crítico de realizadores, teóricos do cinema e da cultura e dos próprios poetas mencionados, é muito mais profunda do que isso e estabelece precedentes que configuram um modelo útil para continuar a estudar o diálogo entre cinema e poesia na poesia portuguesa contemporânea (e talvez a relação, aqui compreensivelmente menos explorada, da influência da poesia no cinema).
O núcleo do tema que Rosa Maria Martelo estuda ao longo destes ensaios – que talvez se possa resumir como a afinidade entre o cinema e poesia (sobretudo de tradição moderna portuguesa) a partir do fundo comum da relação entre cinema, poesia e imagem – estará definido nas pp. 181-182 (embora esta seja uma tese evocada em páginas anteriores), nos seus traços essenciais, quando se afirma:
O livro de Rosa Maria Martelo está dividido em quatro capítulos que depois se subdividem: “Preâmbulo”; “Deambulações na Poesia”; “De Imagem em Imagem” e “O Cinema da Poesia”. Há uma certa ordem cronológica por que se aborda a relação do cinema sobretudo com a poesia de tradição moderna portuguesa, mas esta não é rígida. Veja-se, por exemplo, o capítulo dedicado a Al Berto, enquadrado em “Deambulações na Poesia”, depois de um ensaio sobre Cesário e antes de Sophia, o que reflectirá a noção de que a organização deste livro é estruturada mais pelos termos em que nos textos se estabelece o diálogo entre poesia e cinema do que propriamente por factores de ordem cronológica.
No capítulo “Preâmbulo” (literalmente «o que está antes de se começar a andar», o que estabelece uma relação com “Deambulações…”), a autora estabelece eficazmente a presença pertinente nos textos que aqui são trazidos à colação daquilo que se define na última linha do trecho acima citado como «verdadeiramente cinematográfico».
Uma das possibilidades mais interessantes que este livro coloca em evidência será talvez o facto de haver uma espécie de qualidade cinematográfica inata em alguns dos poemas aqui revisitados (“Qualquer poema é um filme?”, é a pergunta que dá título a uma das últimas secções, mas de que este livro se ocupa amplamente no seu conjunto), que está já patente em poemas que são anteriores ou muito contemporâneos dos primórdios do cinema. Isto permite a Rosa Maria Martelo expor com bastante eficácia que há uma base comum, uma prática poética comum, que une cinema e poesia (ainda que, como se nota na p. 234, o cinema tenha de facto permitido à poesia «o desenvolvimento de novas técnicas de olhar»).
Deste ponto de vista, destacaria particularmente a leitura da poesia de Cesário (e particularmente de “O Sentimento dum Ocidental”) e a leitura de alguns dos poemas de Sophia. Pessoa e Herberto Helder, mas sobretudo Herberto, em certo sentido enquadram a discussão da geografia desta relação (a palavra não é influência) entre poesia de tradição moderna portuguesa e cinema, não só porque se trata de dois poetas maiores do século XX português mas também porque no que escreveram há uma relação muito evidente com técnicas e recursos próprios do cinema e, talvez de forma mais concretizada no caso de Herberto (também porque de Pessoa a Herberto o cinema evoluiu), uma teorização sobre a relação entre cinema e poesia que aponta para um favorecimento e um sublinhar da necessidade de poesia enquanto forma contagiada pelo cinema (veja-se a secção “Na sala escura”, pp. 167 e seguintes).
Em certo sentido, O Cinema da Poesia estabelece uma relação de continuidade com a antologia Poemas com Cinema, editada por Rosa Maria Martelo, Luís Miguel Queirós e Joana Matos Frias em 2010, e ambas se incluem na tarefa mais vasta de mapear a relação entre poesia portuguesa e cinema. Outra discussão que esta abre e que esperamos poder ver concretizada, a par talvez com o mapear do processo inverso (a poesia do cinema), é a da transformação que esta relação poderá eventualmente estar a impor ao nosso entendimento da poesia enquanto género (não propriamente ou não só do âmbito do) literário.
* Para uma lista dos textos dispersamente publicados e onde v. “Nota”, p. 257.
Tatiana Faia, Orgia Literária, 19-III-2013.
Embora este aspecto esteja contemplado (veja-se especialmente o capítulo “Imagens de Imagens na poesia de Manuel Gusmão”, pp. 225-248, em que se reflecte sobre o diálogo entre certos poemas de Migrações do Fogo e In the Mood for Love de Wong Kar-Wai), o tema é mais abrangente e a leitura que Rosa Maria Martelo vai fazendo ao longo do livro, apoiando-se no pensamento crítico de realizadores, teóricos do cinema e da cultura e dos próprios poetas mencionados, é muito mais profunda do que isso e estabelece precedentes que configuram um modelo útil para continuar a estudar o diálogo entre cinema e poesia na poesia portuguesa contemporânea (e talvez a relação, aqui compreensivelmente menos explorada, da influência da poesia no cinema).
O núcleo do tema que Rosa Maria Martelo estuda ao longo destes ensaios – que talvez se possa resumir como a afinidade entre o cinema e poesia (sobretudo de tradição moderna portuguesa) a partir do fundo comum da relação entre cinema, poesia e imagem – estará definido nas pp. 181-182 (embora esta seja uma tese evocada em páginas anteriores), nos seus traços essenciais, quando se afirma:
"Quando a poesia fala da experiência do espectador de cinema, essa experiência facilmente se confunde com a do poeta enquanto escreve. Talvez os textos que procurei cotejar abram alguns dos sentidos desta aproximação, pois a vibração da imagem e o choque entre as imagens produzem um sentido de presentificação tanto na poesia como no cinema. Há uma tradição de poetas que vêem a poesia como arte da imagem e da montagem. Creio que quando esses poetas falam da sala escura do cinema e do que é ser espectador de cinema é também do seu processo de criação que estão a falar, e daquilo que entendem ser a poesia. Apesar de tudo quanto separa uma arte da palavra de uma arte essencialmente visual, não deixa de ser determinante, para esta complexidade entre as duas artes aquilo que Artaud considera ´verdadeiramente cinematográfico': o facto de as imagens cinematográficas participarem 'da própria vibração e do nascimento inconsciente, profundo, do pensamento'..."
O livro de Rosa Maria Martelo está dividido em quatro capítulos que depois se subdividem: “Preâmbulo”; “Deambulações na Poesia”; “De Imagem em Imagem” e “O Cinema da Poesia”. Há uma certa ordem cronológica por que se aborda a relação do cinema sobretudo com a poesia de tradição moderna portuguesa, mas esta não é rígida. Veja-se, por exemplo, o capítulo dedicado a Al Berto, enquadrado em “Deambulações na Poesia”, depois de um ensaio sobre Cesário e antes de Sophia, o que reflectirá a noção de que a organização deste livro é estruturada mais pelos termos em que nos textos se estabelece o diálogo entre poesia e cinema do que propriamente por factores de ordem cronológica.
No capítulo “Preâmbulo” (literalmente «o que está antes de se começar a andar», o que estabelece uma relação com “Deambulações…”), a autora estabelece eficazmente a presença pertinente nos textos que aqui são trazidos à colação daquilo que se define na última linha do trecho acima citado como «verdadeiramente cinematográfico».
Uma das possibilidades mais interessantes que este livro coloca em evidência será talvez o facto de haver uma espécie de qualidade cinematográfica inata em alguns dos poemas aqui revisitados (“Qualquer poema é um filme?”, é a pergunta que dá título a uma das últimas secções, mas de que este livro se ocupa amplamente no seu conjunto), que está já patente em poemas que são anteriores ou muito contemporâneos dos primórdios do cinema. Isto permite a Rosa Maria Martelo expor com bastante eficácia que há uma base comum, uma prática poética comum, que une cinema e poesia (ainda que, como se nota na p. 234, o cinema tenha de facto permitido à poesia «o desenvolvimento de novas técnicas de olhar»).
Deste ponto de vista, destacaria particularmente a leitura da poesia de Cesário (e particularmente de “O Sentimento dum Ocidental”) e a leitura de alguns dos poemas de Sophia. Pessoa e Herberto Helder, mas sobretudo Herberto, em certo sentido enquadram a discussão da geografia desta relação (a palavra não é influência) entre poesia de tradição moderna portuguesa e cinema, não só porque se trata de dois poetas maiores do século XX português mas também porque no que escreveram há uma relação muito evidente com técnicas e recursos próprios do cinema e, talvez de forma mais concretizada no caso de Herberto (também porque de Pessoa a Herberto o cinema evoluiu), uma teorização sobre a relação entre cinema e poesia que aponta para um favorecimento e um sublinhar da necessidade de poesia enquanto forma contagiada pelo cinema (veja-se a secção “Na sala escura”, pp. 167 e seguintes).
Em certo sentido, O Cinema da Poesia estabelece uma relação de continuidade com a antologia Poemas com Cinema, editada por Rosa Maria Martelo, Luís Miguel Queirós e Joana Matos Frias em 2010, e ambas se incluem na tarefa mais vasta de mapear a relação entre poesia portuguesa e cinema. Outra discussão que esta abre e que esperamos poder ver concretizada, a par talvez com o mapear do processo inverso (a poesia do cinema), é a da transformação que esta relação poderá eventualmente estar a impor ao nosso entendimento da poesia enquanto género (não propriamente ou não só do âmbito do) literário.
* Para uma lista dos textos dispersamente publicados e onde v. “Nota”, p. 257.
Tatiana Faia, Orgia Literária, 19-III-2013.
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