Nesta tarefa de alto risco mergulha Rita Basílio, ao abordar a obra poética de Manuel António Pina, oferecendo aos seus leitores um livro que resulta da edição da sua tese de doutoramento, prefaciado pelo filósofo Sousa Dias. Guiada pela proposta de «ler uma pedagogia do literário em Todas as Palavras, de Manuel António Pina, procura aceder aos temas nucleares que, de acordo com a autora, se apresentam na sua poesia, como os da morte, da infância, da língua e da memória. No entanto, a ensaísta revela um conhecimento aprofundado de toda a sua obra, procurando iluminar a sua tese a partir de contaminações de outros textos, em particular o ensaio de MAP, «Ler e Escrever» [1], texto que é tomado como «testemunha da sua própria reflexão sobre o processo de criação» (p. 25), e donde a autora retira essencialmente as premissas para a sua tese da «pedagogia do literário». Do que é que se fala afinal quando se fala de literatura, é justamente a questão que conduz Rita Basílio — e nos conduz pela sua mão segura — nesta travessia pelo universo poético de MAP.
Ciente de que ao poeta não interessam as grandes correntes literárias, nem os seus conceitos e técnicas maiores, a autora tenta, a partir dos dispositivos e instrumentos analíticos de que dispõe, sulcar outros caminhos, sobretudo a partir do conceito deleuziano de «literatura menor», aludindo aqui, em particular, a uma poética que se faz de forma «extravagante» (p. 15), no sentido em que se demarcou (à época do seu surgimento) e se demarca daquilo a que Deleuze se referiu como uma «axiomática dominante» (a poesia dos anos 70), isto é, «face a alguns lugares literários — excessivamente territorializados pela crítica nacional» (p. 15). Serve-lhe então o conceito deleuziano para estabelecer desde logo uma leitura crítica que procura desembaraçar a poética do autor das suas equívocas leituras. É no primeiro capítulo, intitulado «Uma Entrada pelo Lado de Fora», que aborda as reacções e leituras críticas sobre a sua poesia, em particular no período entre 1974 e 1989. Justifica essa passagem do seu ensaio pela necessidade de compreender a «extravagância» de MAP e o modo como poucos foram os críticos que se revelaram capazes de sair da sua visão familiar e acolher «a inesperada perspectiva de forasteiro que MAP dava desde logo a conhecer.» (p. 15). A sua proposta de releitura parte também da refutação de algumas leituras, como, por exemplo, a de Inês Fonseca Santos, autora do primeiro estudo sistemático sobre o autor, intitulado A Poesia de Manuel António Pina. O Encontro do Escritor com o seu Silêncio, ou ainda de críticos que estiveram ligados à recepção da sua poesia. A integração da obra de MAP no quadro da pós-modernidade, como o fazem alguns, é insuficiente para categorizar a produção poética de MAP, revelando-se, neste sentido, redutora, naquilo que a própria categorização arrasta consigo.
Se a escrita poética era, para MAP, uma experiência que se revia numa «espécie de desejo de falar», de que ele próprio falava, em «Ler e Escrever» (p.39), corroborando uma injunção de T.S.Eliot (p. 268), Rita Basílio quer dar conta do que é esse «falar» que, na óptica do poeta, resulta numa leitura activa ou gesto poiético que é «solicitado a dar resposta» ao que não é, ou que não se deixa formular, esse «monstruoso vazio» que o assombra, em busca da sua expressão ou de uma qualquer forma na língua. Se aludimos aqui a uma procura, a uma tentativa de se transformar, pelo poema, numa presentificação do indizível, então essa é também a experiência do «Testemunho», que a autora reconhece na sua obra Todas as Palavras. Todavia, essa é também a experiência de uma «aprendizagem do incerto», para parafrasear a expressão de Silvina Rodrigues Lopes, referindo-se Rita Basílio a uma aprendizagem da passagem, que encontra na alegoria um modo de expressão privilegiado, como o justifica de forma extensa no capítulo IV, que dedica à alegoria, convocando para este encontro a distinção benjaminiana entre símbolo e alegoria.
Não é apenas a experiência da fragmentação que se encontra aqui presente, mas essencialmente aquilo que a autora caracteriza como o «drama da escrita de MAP» (p. 99), que «começa precisamente por ser o drama de um excesso que exibe uma falta: o excesso de fala, o excesso de significação (pela recorrência constante à citação), o excesso de memória, de anterioridade e, sobretudo, o excesso de consciência da impossibilidade de esquecer tudo isto» (Idem). Duplo e simultâneo, dilacerado acto de memória e de esquecimento, a poesia de MAP conforma essa experiência da falta, a do próprio rasto. É justamente nessa poética que se inscreve o gesto, chamemos-lhe assim, da pedagogia do literário, como leitura activa, leitura por escrito de tudo o que é, foi e será lido no e pelo poema.
Mais do que gesto, a recorrência constante à citação, em MAP, é um acto de leitura. Não é apenas o reconhecimento das marcas que Borges deixou na sua poética que se faz visível, como no extraordinário poema «Emet» (, em que MAP nos diz que a Literatura «é uma arte/escura de ladrões que roubam a ladrões», mas é também esse enigmático processo alegórico que aqui se apresenta, como recomposição/reconfiguração do poema a partir de citações, tal como o colecionador de Walter Benjamin dispõe os seus objectos avulsos, «roubados» ou extraídos, numa nova ordem de significado. Por outro lado, o espaço do poema é também o «insondável lugar que os fantasmas habitam» (p. 275). E do que falará a literatura senão desse espaço fantasmático, a que o poeta, atento às vozes dos mortos, se obriga à escuta? E doravante, certamente, não será possível ler e compreender a obra de Manuel António Pina sem este estudo referencial, atento e rigoroso que lança novas pistas de investigação, que ampliam muito o que até então havia sido feito.
[1] In Revista Portuguesa de Psicanálise, nº 18, Março de 1999.
Texto publicado no JL, com pequenas alterações/correcções.
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