João Pedro Cachopo publicou um livro sobre os tempos que vivemos e
que passámos a viver desde Março de 2020. Isto é, é um livro que resulta da
pandemia, mas não é exactamente sobre a pandemia. Diferencia-se dos vários
textos de filósofos e pensadores contemporâneos que foram publicados entre
Março e Junho/Julho, e também dos livros que mais recentemente têm saído, na
medida em que procura observar de um ângulo diferente o efeito da pandemia na
nossa experiência do mundo. Tira partido da distância temporal face a esses
primeiros textos, que foram necessariamente escritos a quente, com as
fragilidades que advêm de pensar um acontecimento durante o acontecimento. É um
facto que ele ainda dura, mas o seu prolongamento no tempo não deixou de tornar
algumas perspectivas iniciais longínquas e não mais válidas, por isso pensá-lo
hoje será necessariamente diferente de o ter pensado em Março ou Abril.
Este é um livro pequeno, escrito com enorme clareza, que se lê com
prazer. Mas a dimensão e a clareza enganam: as questões são abordadas com
complexidade, o diálogo com autores contemporâneos e não contemporâneos é
pertinente e elaborado e a sua leitura suscita várias perguntas e reflexões.
Também o título é enganador. Como é explicado logo no prólogo, nem os sentidos
torcidos são os cinco sentidos sensoriais, nem a remediação digital é remédio,
isto é, não serve para colmatar uma falta, não é um mal menor ou um fraco
consolo, e não é, seguramente, cura ou compensação face à pandemia.
Os «sentidos» aqui em causa são sentidos que dependem, diz João
Pedro Cachopo (JPC), da proximidade e da distância, não físicas, mas
imaginadas; são de certa forma, sentidos da vida, ou, como escreve mais adiante
no livro, «sentidos que nos ligam ao mundo» (p. 40). A «remediação digital»
assenta na designação dos estudos de media, a qual lê o prefixo re- no sentido
de replicar, repetir: re-mediação, re-medium. Será, assim, a apresentação de
um medium por via de outro medium, a mediação da mediação ou
dupla mediação. No caso da remediação digital, é mais ainda: é a
confluência de vários media num medium, o digital.
Por outro lado, o significado de «remediar», no sentido de
«substituir» ou «reparar» ou «consolar», não é inteiramente abandonado, uma vez
que permite a JPC precisar que uma posição de repúdio do digital e uma posição
de exaltação do digital, aparentemente antagónicas, partem do mesmo princípio
que o digital serve para substituir uma experiência original, ela sim,
autêntica.
Assim compreendemos de outra forma quando afirma provocadoramente
que o acontecimento não é a pandemia, mas a torção dos sentidos que nos
ligam ao mundo, uma torção feita por via da remediação digital. Estes sentidos
(que não deixam de implicar os cinco sentidos sensoriais) são, neste livro,
também cinco (o autor ressalva que poderiam ser outros, ou muitos mais):
o amor, a viagem, o estudo, a comunidade a arte.
Todos eles nos implicam em formas de aproximação e distanciamento que se
configuram numa experiência diferente para cada um de nós. E essa experiência
não deixou de acontecer por causa da pandemia.
Nas páginas dedicadas a esses sentidos, no capítulo que tem
precisamente o título «A torção dos sentidos», JPC tem um momento de libertação
da escrita e de verdadeiro prazer do texto, seu, que o escreveu, e nosso, que o
lemos. São páginas escritas com, arrisco a palavra, a alegria de reimaginar
esses sentidos em novas experiências remediadas digitalmente. Creio que apenas
no sentido da viagem Cachopo tem dificuldade em deixar de ir, deixar
de partir fisicamente (p. 75). Se Xavier de Maistre relatou logo em 1794 como
era possível viajar sem sair do lugar, fazendo a viagem à volta do seu quarto
sem deixar de experienciar aventuras por via da imaginação, para JPC não basta
o quarto, nem o écran, a viagem implica sair de si. É irremediável, diz,
continuando o jogo entre os possíveis significados da palavra, o da não
sujeição à mediação e o do não haver nada a fazer ou não haver remédio, porque
não viajar deixa-nos inconsoláveis.
Destaco as páginas que JPC dedica ao sentido do estudo (p.
79), por nelas abordar o texto de Giorgio Agamben que me pareceu mais
discutível dos que escreveu sobre a pandemia (vários traduzidos e publicados
na Punkto), no qual o filósofo italiano vaticinou o fim do «estudantado
como forma de vida» e não teve pejo em comparar os professores que aceitavam
dar aulas online com os colaboracionistas do fascismo nos anos 1930,
profetizando ainda que os poucos que se recusassem seriam reconhecidos como os
heróis deste tempo (não se confunda este com outro texto do autor bem
diferente, «Estudantes» de 2017, em que defendia o estudo na sua
condição de não utilidade e consequente possibilidade de experiência e erro, em
oposição à investigação, orientada pela lei do mercado e produtividade).
Como analisa JPC, é um juízo moral que identifica a tecnologia como mal
absoluto (que curiosamente faz equivaler a barbárie) que leva Agamben a fazer
uma equivalência inaceitável.
Acrescento que isso coloca o filósofo numa
posição muito discutível de juiz e vigilante moral. Como contraponto, JPC fala
do trabalho de Fred Moten e Stefano Harney, que, sem deixarem de criticar o
sistema de ensino universitário e seus mecanismos de «profissionalização do
pensamento», ressalvam a subversão e a divergência que o estudo na universidade
(uma noção alargada de estudo que inclui o intelectual e o não intelectual e
que igualiza radicalmente os temas a estudar) pode trazer. Estes autores não
dramatizaram o ensino à distância: estão tão cientes dos seus perigos como do
abalo na autoridade que pode representar e dispostos a fruir desse abalo. Este
exemplo que JPC dá no seu livro a propósito do estudo é, nada mais
nada menos, do que a sua própria abordagem da remediação digital e seus efeitos
precipitados pela pandemia.
Tal como noutros autores que pensaram a pandemia, seja quais
tenham sido os termos em que a abordaram, as transformações que ela precipitou
(ou que ameaçou precipitar, porque muitas verificamos que não ocorreram e
talvez não venham a ocorrer) já estavam e continuam em curso. A remediação
digital é, sem dúvida, uma delas, e foi de resto alvo de abundantes reflexões
antes da pandemia. É a torção dos sentidos que, essa sim, diz o autor, é
precipitada pela pandemia — é esse, afinal, o acontecimento.
Ao contrário de vários autores pré- e pós-pandemia, JPC evita ou
recusa mesmo a atitude fatalista face ao digital (sem tão-pouco embarcar na
euforia pelo digital), considerando ao mesmo tempo os seus perigos e efeitos
nefastos, como o controlo e a extracção de informação a que estamos sujeitos ao
frequentar redes sociais, pesquisar na internet, fazer compras online.
Ou seja, e esta é a tomada de posição fundamental deste livro: não
só, como escreve o autor, estamos sujeitos ao acontecimento, como somos
sujeitos do acontecimento. JPC recusa fazer o mero diagnóstico de que somos
dominados, controlados, esvaziados, explorados pelo digital. Afirma antes a
possibilidade de agenciamento dos sujeitos por via da imaginação no contexto
digital. A tarefa a que se propõe este livro é a tarefa que entende ser a da
filosofia: pensar o presente intempestivamente (ou nietzschianamente), ou
«revolver o real», assentando na convicção de que interpretação e transformação
do mundo estão interligados.
Respondendo à pergunta «o que pode a filosofia?», JPC diz que esta
se distancia e faz perguntas que procuram o melhor ângulo. Dificilmente se terá
notado o encontro do melhor ângulo ou mesmo a vontade de fazer perguntas
de alguns dos filósofos que JPC refere, como Giorgio Agamben, Slavoj Žižek, Byung
Chul-Han. Muitas vezes vimos os filósofos precipitarem-se nas respostas e a desempenhar
um papel de oráculos ou videntes, mais do que seria desejável. Porém, o mundo e
os filósofos movem-se e supõe-se que os ângulos se vão alterando e ajustando, e
a distância para os tomar se vai conquistando. Naqueles primeiros meses era
difícil e arriscado tomar posição e os erros eram mais prováveis. Mesmo hoje o
são, e o mérito da pergunta de JPC, «o que pode a filosofia?», é o de
reservar-lhe um lugar tão modesto quanto imprescindível, e de cercear a
tentação oracular.
A partir do seu ângulo, que procura resposta para a pergunta «o
que há de revelador e transformador na pandemia?», JPC trava um diálogo com
pensadores que marcaram os primeiros meses da propagação da doença pelo mundo e
foram amplamente partilhados nas redes sociais e outros canais digitais, como
Alain Badiou, Bruno Latour, Judith Butler, David Harvey, além de Byung Chul
Han, Žižek, Agamben,
Jean-Luc Nancy — vários antologiados no conjunto que ficou conhecido por Sopa
de Wuhan, outros que surgiram no blog da Critical Inquiry, reunidos com o
título «Posts from the pandemic», vários traduzidos e publicados em português
em plataformas digitais. Neste livro surgem também Naomi Klein, Jacques
Rancière, Roberto Esposito, José Gil ou André Barata. Essa conversa com
pensadores da actualidade que JPC enceta tem o propósito de esboçar um
diagnóstico do pensamento que se formou sobre o meio digital na era da pandemia
para ele próprio propor outro ângulo de análise. É um diálogo por vezes
assumidamente breve ou que, com alguns dos nomes, vai ressurgindo ao longo do
livro. Não me debruçarei sobre esse diálogo em si, mas sim sobre o caminho a
que ele leva.
Há três momentos do livro em que JPC «actualiza» ou faz analogias
entre estudos famosos já clássicos e o momento de remediação digital actual. Falarei
desses momentos sem seguir a ordem pela qual aparecem no livro.
Apocalípticos remediados
O primeiro é no capítulo 4, «Apocalípticos e remediados» glosa do
título de Umberto Eco de 1964 Apocalípticos e Integrados, que já na altura
designava desta forma, e simplificando, os pessimistas face à tecnologia e os
optimistas em relação à evolução tecnológica. JPC acompanha Eco na conclusão de
que todos teremos um pouco de uns e de outros, tanto em 1964, como hoje face à
digitalização do mundo. Constata, no entanto, que hoje tanto os apocalípticos
como os remediados partem do mesmo pressuposto de que o digital é um substituto
de uma experiência autêntica, é um simulacro de uma experiência original. Ora,
para JPC, o digital traz outro tipo de experiência tão ou tão pouco autêntica
quanto qualquer experiência analógica. Porque a experiência depende sempre,
digital ou analógica, da imaginação. Refira-se desde já que esta é, a meu ver,
a palavra-chave deste livro, a palavra que o torna não um livro optimista, isso
seria outra coisa, mas um livro que quer olhar as possibilidades da alegria na
era digital, na era pandémica, na era de emergência dos fascismos e do colapso
ambiental, e que faz essa alegria depender da imaginação.
[…]
Ler o texto completo em:
[Mariana
Pinto dos Santos]
Punkto, 9 de Fevereiro de 2021
[«Nota de edição: Este texto é
uma versão desenvolvida da apresentação do livro A torção dos sentidos –
pandemia e remediação digital, que teve lugar na livraria Snob em Lisboa, no
dia 15 de Dezembro de 2020.»]
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