segunda-feira, 10 de maio de 2021

«A Viúva do Enforcado», por Mário Beja Santos


Com a concordância do jornal, criou-se uma secção com a seguinte especificidade: leituras do passado que não passam de moda, que ultrapassam por direito próprio a cultura do efémero, que roçam as dimensões do cânone da arquitetura, da estética e do estilo, tidas por obras-primas, mas gentilmente remetidas para as estantes, das bibliotecas públicas ou privadas. Livros ensinadores, tantas vezes, e injustamente, tratados como literatura de entretenimento.

Filho de uma diplomada do Magistério Primário, com uma avó entrevada, tive a dita de assistir e participar em despretensiosos serões literários, a minha mãe lia em voz alta obras que eram do agrado da minha avó e que tinham igualmente o condão de me manter atento até à hora da deita. E foi assim que ouvi falar em George Eliot e acompanhei o seu romance O Moinho à Beira do Rio, como era prática usual haver serões com trechos de Eça de Queirós ou Camilo Castelo Branco, havia recitais de poesia, dos ultrarromânticos, lembro os sonetos de Antero de Quental e foi bem empolgante acompanhar do princípio ao fim o belo do romance de Vitorino Nemésio Mau Tempo no Canal. E não esqueço a predileção da minha avó Ângela pelo Amor de Perdição, as Novelas do Minho, A Doida de Candal, A Brasileira de Prazins, Carlota Ângela, Memórias do Cárcere

É completamente ocioso embarcar na discussão sobre quais as páginas de ouro da literatura camiliana. Enquanto alguns especialistas invocam a riqueza singular da sua epistolografia, o público em geral, geração após geração, mantém uma forte atração por Amor de Perdição, Novelas do Minho, A Queda de Um Anjo e A Brasileira de Prazins, gostos não se discutem. É imprescindível continuar a ler Camilo, e por diferentes razões: a riqueza vocabular, que nos remete para um mundo urbano-rural que ele retratou com pluma de mestre; encarnou a corrente mais densa da literatura romântica, foi messias, profeta, comandante em chefe, e suficientemente visionário para abrir as portas ao naturalismo, que lhe sucedeu; não foi um imperador da língua portuguesa, mas ganhou assento, por mérito próprio, no pódio dos nomes aproximados, ninguém lhe pode subtrair o cetro de multimilionário de riqueza vocabular, trata praticamente por tu o nosso castiço vocabulário. E vale sempre a pena ler Camilo para nos confrontarmos com uma escrita exímia em manifestações tão diversas como o romance, a novela, o conto, o prefácio, a carta, a catilinária, a polémica, a página de jornal.

E como os gostos não se discutem, ponho à vossa consideração um dos seus diamantes literários que assiduamente revisito: A Viúva do Enforcado, por Camilo Castelo Branco, Sistema Solar, 2016.

Logo o trecho inicial, à memória do Senhor Rei D. Afonso Henriques: «Procurei nas ruas e praças de Guimarães a estátua do fundador da monarquia. A cidade opulenta, que tem ouro em barda, e abriu dois bancos como os pletóricos que se dão duas sangrias, não teve até hoje um pedaço de granito que pusesse com feitio de reis ou de bom pedestal! Se eu fosse rico, ou sequer pedreiro, quem fazia o monumento de Afonso era eu. Assim, como o último dos escritores e o primeiro em patriotismo, apenas posso aqui levantar um perpétuo padrão ao vencedor de Ourique».

Esta novela, que faz parte de Novelas do Minho inicia-se em Guimarães, aqui florescem os amores escaldantes entre o ourives Guilherme Nogueira e Teresa de Jesus, a filha do surrador Joaquim Pereira. Uma das notabilidades de Camilo é apresentar os seus atores antes de os pôr em ação. Por exemplo, Teresa de Jesus: «Filha única, bonita, muito recolhida, e confessada de um franciscano tão bem-intencionado que prometida fazer dela uma santa com ajuda de Deus». O pai pensa casá-la com o seu irmão viúvo, o tio Manuel, que vive no Porto. Temos aqui outra apresentação: «Tinha oficina de curtidor na rua dos Pelames, no Porto, e era muito rico, e viúvo sem filhos, com 50 anos, sujos sim, mas bem conservados. Tinha passado a festa do Natal de 1822 em Guimarães e levara à sobrinha um grilhão de ouro da sua viúva dentro de uma rosca de pão de ló». O pai de Teresa quer é que a filha não vá para um convento, quer marido com dinheiro, qualquer pelintra está fora de questão. Chega a vez de apresentar Guilherme Nogueira, tinha um aspeto simpaticamente doentio. «Formara-se no ar impuro da oficina. O hábito de trabalhar cerceava-lhe o deleite das horas de repouso. Passeava só e pesado de tédio porque se acostumara à soledade do seu quarto». A mãe de Teresa, acompanhada da filha, visita o ourives, dá com o retrato da filha, tal fora a intensidade do encontro entre os jovens amorosos que o ourives a plasmou em pintura. O surrador fica incomodado com a pintura do ourives e barafusta: «Se cá o vejo em casa com o retrato, dou-lhe com ele nas ventas. Não quero retratos; não dou um pataco por ele. Pedaço d’asno! O troca-tintas, pelos modos, não tem que fazer. Por isso o pai anda sempre com a sela na barriga!».  Começara a guerra, os arrulhados correspondem-se secretamente, houve um padre que tentou a conciliação, segue-se uma cena de gritaria, o padre sai às arrecuas e desabafa com Guilherme: «A besta fez lá o diabo. Não te dá a filha, e diz que te bate, se lá passares. Parecia um energúmeno». O padre aconselha os pombinhos à perseverança. Seguem-se intrigas. Finda a primeira parte. O surrador muda de estratégia faz tagatés à filha, a correspondência amorosa não para. E dá-se a fuga, Guilherme e Teresa vão para o Porto, depois de muita peripécia. Daqui os noivos seguem para Zarza, na raia espanhola, entram novos atores em cena, caso de D. Rojo de Valderas e a filha, Inês, que se faz amiga da Teresa. A apresentação de Rojo de Valderas é filigrana literária, deixo-a em encomenda ao leitor.

Nas cabriolices e volteios a que nos habitua mestre Camilo, vamos agora até Coimbra para conhecer António Maria das Neves Carneiro que se mete em desacatos com gravidade e marcha para Zarza, fugindo à justiça. A saúde de Guilherme Nogueira vai-se abalando, dá alma ao criador. Teresa fica pouco abalada, e já se sabe porquê. António das Neves metera-se de amores com Inês, acabou por se apaixonar por Teresa de Jesus. A vingança de D. Rojo de Valderas é cruel.

Chegados a este ponto, por mão de mestre Camilo avaliamos que uma grande paixão pode acabar num cemitério e renascer num desses encontros espúrios em que uma viúva é catrapiscada fora das convenções. Teresa pede ajuda a um tio cónego e temos aqui uma outra retumbante apresentação: «O padre tinha cinquenta e oito anos: andava bem alimentado: as suas mãos eram grandes, escarlates, e sobre o dorso de cada dedo tinha um espinhaço de cabelos rijos como as cerdas de um javali. Tinha sido um pródigo de pancadaria, quando se ordenava». Há choros e revoltas. O pai de António das Neves pede clemência a D. Rojo, em vão. Mas a roda do destino segue o seu percurso: «Teresa de Jesus Pereira e António Maria das Neves Carneiro casaram, em Badajoz, em dezembro de 1829. O arcediago de Xerez de los Caballeros, bom católico e entranhado partidário de Fernando VII, escrupulizava em proteger um escapadiço da forca». A tragédia está em marcha, António das Neves acaba na forca, teremos uma nova viúva e como tudo vai acabar não se diz aqui porque as obras-primas da literatura servem para regalar pelo próprio, não se faça deste promotor de leituras inextinguíveis um desfazedor de sonhos.

Mário Beja Santos

[«Leituras inextinguíveis (25)», Mais Ribatejo, 26 de Abril de 2021»]

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