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A passagem do século XX ao século XXI foi a passagem de uma premissa de crescimento económico garantido a uma premissa de subsistência económica incerta.
Simplesmente, esta não tem sido uma passagem inteiramente transparente. É assumida de forma demasiado abrupta e, no essencial, para introduzir no regime da subtracção mais uma: a do tempo presente. O que fora o desígnio de outrora de uma sustentabilidade futura deu subitamente lugar a uma consciência extremada da insustentabilidade passada. Neste jogo de responsabilidades adiadas no passado e agora assacadas ao passado, com a ameaça futura a tornar-se passada sem que tivesse passado pelo nosso presente, perpetra-se um enorme salto sobre o tempo da contingência e das escolhas que seria esse presente elidido, num exercício bem sucedido de transferência de responsabilidades.
A Gestalt passou a ser outra e os sinais das coisas passaram a ser lidos por um novo princípio: o da subtracção. Forma-se assim o novo Zeitgeist.
Mas um sistema de escolhas que não arranque do presente é um sistema de escolhas distorcido. A escassez apresentada como facto consumado sobrecarrega as consciências cidadãs com exigências de culpas apuradas e penalizações à medida. Quem decide politicamente faz escolhas olhando sobretudo à responsabilidade passada, dispensando-se com isso de assumir a abertura do presente e de nele assumir plenamente a responsabilidade das escolhas feitas.
A distorção não podia ser mais clara: fazem-se ainda escolhas, mas como se não o fossem, como se fossem inevitabilidades determinadas por estilos de vida passados, esses sim escolhas, na verdade más escolhas, a penalizar. E, previsivelmente, elegem-se bodes expiatórios: governantes passados são diabolizados; mas também a comunidade toda, posta no patíbulo da reprovação por ter «vivido acima das possibilidades». No fundo da questão, o que se instala no regime societário da subtracção é a adversidade à própria vontade de escolher.
Simplesmente, esta não tem sido uma passagem inteiramente transparente. É assumida de forma demasiado abrupta e, no essencial, para introduzir no regime da subtracção mais uma: a do tempo presente. O que fora o desígnio de outrora de uma sustentabilidade futura deu subitamente lugar a uma consciência extremada da insustentabilidade passada. Neste jogo de responsabilidades adiadas no passado e agora assacadas ao passado, com a ameaça futura a tornar-se passada sem que tivesse passado pelo nosso presente, perpetra-se um enorme salto sobre o tempo da contingência e das escolhas que seria esse presente elidido, num exercício bem sucedido de transferência de responsabilidades.
A Gestalt passou a ser outra e os sinais das coisas passaram a ser lidos por um novo princípio: o da subtracção. Forma-se assim o novo Zeitgeist.
Mas um sistema de escolhas que não arranque do presente é um sistema de escolhas distorcido. A escassez apresentada como facto consumado sobrecarrega as consciências cidadãs com exigências de culpas apuradas e penalizações à medida. Quem decide politicamente faz escolhas olhando sobretudo à responsabilidade passada, dispensando-se com isso de assumir a abertura do presente e de nele assumir plenamente a responsabilidade das escolhas feitas.
A distorção não podia ser mais clara: fazem-se ainda escolhas, mas como se não o fossem, como se fossem inevitabilidades determinadas por estilos de vida passados, esses sim escolhas, na verdade más escolhas, a penalizar. E, previsivelmente, elegem-se bodes expiatórios: governantes passados são diabolizados; mas também a comunidade toda, posta no patíbulo da reprovação por ter «vivido acima das possibilidades». No fundo da questão, o que se instala no regime societário da subtracção é a adversidade à própria vontade de escolher.
O exercício da escolha, que os ciclos democráticos pressuporiam, é posto sob a suspeita da leviandade, sobretudo se forem dadas a escolher novas escolhas. Pelo contrário, o que deve ser esperado da democracia é que deva desdemocratizar-se enquanto irrupção da novidade, e procedimentalizar-se enquanto consagração de uma eficiência decisória. Os democratas, que muito escolhem e pouco decidem, são destronados na tecnodemocracia pelos tecnocratas, que muito decidem e pouco escolhem. Naturalmente, a eurocracia é só uma instância da tecnodemocracia.
A democracia vê deslocar-se, então, o eixo da sua preocupação dos fins e dos princípios para os meios, como se os fins e os princípios tivessem sido definitivamente escolhidos e nada os pudesse disputar a não ser a título de irracionalidade, ruído ou leviandade. A escolha e a vontade democrática vão deslizando para uma técnica da decisão com o intuito de assim conseguir conter os perigos do ímpeto democratista, da vontade popular, da consequência das suas escolhas. Contudo, mais do que dar forma à inorganicidade da vontade, está em causa, neste movimento das democracias, neutralizá-la, anestesiá-la e fazer-lhe um diagnóstico de loucura. Os democratas e a sua mania do retorno da soberania ao povo constituem-se como o foco da desordem do sistema. A sua loucura, portanto. Decide-se contra o escolher.
A democracia vê deslocar-se, então, o eixo da sua preocupação dos fins e dos princípios para os meios, como se os fins e os princípios tivessem sido definitivamente escolhidos e nada os pudesse disputar a não ser a título de irracionalidade, ruído ou leviandade. A escolha e a vontade democrática vão deslizando para uma técnica da decisão com o intuito de assim conseguir conter os perigos do ímpeto democratista, da vontade popular, da consequência das suas escolhas. Contudo, mais do que dar forma à inorganicidade da vontade, está em causa, neste movimento das democracias, neutralizá-la, anestesiá-la e fazer-lhe um diagnóstico de loucura. Os democratas e a sua mania do retorno da soberania ao povo constituem-se como o foco da desordem do sistema. A sua loucura, portanto. Decide-se contra o escolher.
Se os democratas são os loucos da tecnodemocracia contemporânea, se, por isso, a escolha democrática fica sob suspeita, não surpreende que se naturalizem formas de condicionamento da democracia, que não lhe dão forma nem feição, mas lhe movem oposição. Exemplo concreto deste condicionamento democrático naturalizado está em que a sequência de uma escolha democrática possa ser os mercados financeiros, na manhã seguinte ao escrutínio eleitoral, castigarem o voto que não os beneficiou, precipitando uma queda dos índices bolsistas, e pressionando o eleitorado a avaliar menos o sentido do voto do que o acto da sua votação.
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André Barata, in «Prefácio - Como queremos continuar a História?», Primeiras Vontades - Da liberdade política para tempos árduos, Documenta, 2012.
O lançamento deste novo livro de André Barata é já no próximo domingo à tarde.
A apresentação estará a cargo do historiador e eurodeputado Rui Tavares.
Aqui fica, de novo, o convite. Até domingo!
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