Em cada canto destas lojas espreita essa espécie de inquietante estranheza que transforma o familiar em desconhecido, tipificada por Sigmund Freud no seu trabalho sobre o conceito de “Unheimlich”, publicado em 1919. Não se pode saber de ciência segura se Bruno Schulz estaria familiarizado com o conceito, ou sequer com o trabalho de Freud, seu contemporâneo e órfão do mesmo império, mas é difícil negar que é esse mesmo princípio que aqui podemos observar em acção, como uma forma de princípio básico e unificador que sujeita toda a matéria do real à possibilidade da metamorfose. Não por acaso, abundam neste peculiar texto autobiográfico as referências a máscaras e ao teatro. Há uma realidade por trás da realidade e apenas a imaginação – auxiliada nesse exercício, de forma determinante, pela linguagem poética – pode levantar o véu que a cobre (como indica o próprio Freud, a dado passo do seu ensaio, não são só os medos que podem acarretar essa transformação do real mas também os desejos ou as crenças). É à precisão da linguagem empregue pelo autor, ao descrever os aspectos dessa outra realidade, que se deve o prodígio de que possamos tomá-la também como verdadeira. Obtém-se essa precisão com o recurso ao estabelecimento de relações pouco habituais, mas extremamente precisas, entre o objecto observado e a forma que se escolhe para caracterizá-lo (por exemplo, «Maryska-a-Louca estava deitada na palha de um caixote de madeira, branca como uma hóstia e silenciosa como uma luva de onde a mão tinha saído.», p. 49).
No entanto a mesma precisão não se estende à descrição das personagens: o narrador permanece por nomear e da sua família mais imediata – mãe, pai e irmão mais velho – apenas o pai tem direito a que o seu nome seja conhecido. E se há um herói nestas histórias não pode ser outro que não o pai. A esse pai heróico opõe-se a criada Alena, figura de pesada sensualidade e pose pragmática. Os dois, a par do narrador, são os verdadeiros motores da narração. Por seu lado, a mãe e o irmão mais velho – tal como toda uma hoste de personagens secundários, alguns dos quais merecem ser nomeados; tal é o caso das raparigas, Polda e Paulina, a quem o pai se dirige no triplo episódio dos manequins – permanecem por nomear e possuem apenas uma vaguíssima consistência, agindo como sombras que espreitam a acção principal sem que nunca dela cheguem a participar. Assim, a narração concentra-se em torno desses três eixos: em primeiro lugar o narrador, através de cujos olhos vemos aquilo que o rodeia, olhar esse para o qual tudo é digno da mesma minuciosa atenção e toda a matéria se oferece ao jogo de transfiguração e desvelamento que permite descascar as camadas do familiar e atingir, enfim, a outra realidade possível que existe por trás dele; em segundo lugar o pai Jakub, que concentra em si toda a força do fantástico e do maravilhoso, força que interrompe o entediante desfile dos dias pardacentos e demonstra as férteis possibilidades que se oferecem a quem souber olhar o mundo de uma forma nova («Só hoje entendo o seu heroísmo: solitário, fez guerra ao tédio infinito que entorpecia a cidade. Sem nenhum apoio nem compreensão da nossa parte, este homem extraordinário defendia sem esperança a causa da poesia. Nas rodas deste moinho mágico afundavam-se as horas vazias, para de lá saírem com perfume e cor.», p. 69); e por fim, em terceiro lugar, a criada Alena, a quem cabe a tarefa de voltar a pôr nos eixos o mundo que a intervenção do pai deles desviara. («Sempre espetado, o sapato de Alena tremia um pouco e brilhava como uma língua de serpente. O meu pai manteve o olhar baixo e começou a levantar-se com lentidão, com passos de autómato, e caiu de joelhos.», p. 81.)
Nesta oposição entre fantasia e pragmatismo o texto – de recorte autobiográfico, como antes se referiu – apresenta-se fragmentado, não cronológico, em capítulos que se sucedem sem aparente ligação entre si, por vezes organizados em blocos, (veja-se os capítulos “As lojas de canela” e o seguinte, “A Rua dos Crocodilos”, nos quais se apresentam as duas partes da cidade – a velha e a nova, o conforto e a confusão – e os respectivos simbolismos, ou o “Tratado dos manequins”, apresentado em três partes e já em tempos publicado em Portugal como texto autónomo, pela &etc., no qual o autor, pela boca de Jakub, expõe aquilo que pode considerar-se como um programa estético e até filosófico) como se fosse intenção do autor dar-nos a ver a memória em funcionamento, sem sequência cronológica mas antes em estado de anárquica desordem, alinhados de acordo com as impressões que os convocam e sem preocupações de linearidade. E a cada passo lá se pode encontrar a mesma fúria metamorfoseante, essa operação levada a cabo sobre o real pela poesia, num mundo onde toda a coisa é outra coisa, à espera de ser desvendada num vislumbre fantástico mas que não pode fixar-se nessa nova forma, como se o tecido da realidade não pudesse suportar essa fixação. («Temos a franqueza de reconhecê-lo: não acentuamos a tónica da duração nem da solidez do trabalho, e as nossas criaturas serão como que provisórias, feitas para servir uma só vez.», p. 79).
O método de Schulz consiste então em iniciar a narração num mundo que, para todos os efeitos, é ainda o mundo familiar, habitual, e só no decorrer da narração revelar os contornos da máscara que o reveste até fazê-la por fim tombar, desse modo deixando a descoberto as feições desse outro mundo que se esconde por trás do mundo. Este método, ao contrário do que é por vezes anunciado, não o aproxima de Franz Kafka (embora não possamos esquecer-nos das estranhas transformações que o pai sofre, tornado pássaro ou até barata) mas antes o afasta. Em Kafka a realidade não se apresenta em modificação mas, pelo contrário, já modificada e ao lê-lo o leitor entra num mundo que em pontos se aparenta ao mundo familiar mas que, desde o início, se apresenta como fundamentalmente diferente desse. Assim o processo de transformação não é visível. Afasta-os também o uso que fazem da linguagem, a qual em Kafka é sempre mais seca, menos poética do que em Schulz. Na realidade, se devesse procurar um escritor que se assemelhasse a Bruno Schulz apontaria, por insólito que possa parecer, o nome de Nikolai Gógol, exímio praticante do adjectivo pouco ortodoxo e alguém que, como Schulz, se perdia com frequência nos muitos pontos de fuga que lhe proporcionavam as suas narrativas, alguém que contempla todo o mundo como passível de interesse e objecto de detalhada descrição. Diferiam nos propósitos e nos métodos mas animava-os a mesma voracidade descritiva, a mesma vontade de percorrer todos os caminhos que o material lhes propusesse.
Rodrigo Martins, in Orgia Literária.
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