segunda-feira, 11 de março de 2013

«Judeu da Galícia, filho de um mercador de têxteis, estudante de arquitectura, professor do liceu, desenhador compulsivo, escritor escasso, morreu cedo, vítima da Gestapo.»


«Ruas insalubres, bairros feéricos, lojas enigmáticas, casas sombrias, divisões abandonadas, quartos de arrumos cheios de fancaria, armários atulhados, abutres empalhados, estampas obscenas, palmeiras incongruentes, ornamentos, utensílios, escombros, telescópios. É o mundo de Bruno Schulz, visita guiada a "configurações irreais", que incluem ainda entidades biológicas primitivas, matagais, musgos, ervas daninhas, faunas insidiosas, insectos, animais fantásticos, erupções, fermentações, cores de âmbar, bafios e podridões, cardos, crustáceos, escamas, ectoplasmas.
Esta "imaginação aberrante e encantada" é o alfa e ómega de As Lojas de Canela (1934), a primeira das duas colectâneas de contos publicadas por Bruno Schulz (1892-1942). Judeu da Galícia, filho de um mercador de têxteis, estudante de arquitectura, professor do liceu, desenhador compulsivo, escritor escasso, morreu cedo, vítima da Gestapo. [...]
Porém, ao contrário de Kafka, Schulz é excessivo, exuberante, acumula metáforas insólitas, imagens nunca vistas, vocábulos raros, substantivos e adjectivos aos magotes (a tradução de Aníbal Fernandes é extraordinária): "Havia por lá banais germinações, caules finos encimados com o penacho emplumado das suas espigas; salsas e cenouras selvagens com filigranas delicadas; os rudes folíolos amarrotados da hera e das urtigas cegas que cheiravam a mentol; as tanchagens filandrosas e luzidias manchadas de ferrugem, que jorravam com poupas de grandes grãos vermelhos."
O escritor queixava-se de que a língua não possui palavras que penetrem em certos graus da realidade, e por isso inventou uma linguagem nova, adequada a uma "realidade mutante". [...] Jakub e o filho são demiurgos em segunda mão, a matéria assusta-os, apaixona-os. E como nada se perde e tudo se transforma, eles recriam tudo aquilo em que tocam, num génesis heterodoxo, distorcido.
Os inquietantes desenhos de Schulz, incluídos nesta edição, ilustram bem essa causa genesíaca, a que ele chama, sem hesitações, "a causa da poesia".»

Pedro Mexia, «Génesis bizarro», «Actual»/Expresso, 9 de Março de 2013, onde pode ser lido na íntegra.

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