«Ruas insalubres, bairros feéricos, lojas enigmáticas, casas sombrias, divisões abandonadas, quartos de arrumos cheios de fancaria, armários atulhados, abutres empalhados, estampas obscenas, palmeiras incongruentes, ornamentos, utensílios, escombros, telescópios. É o mundo de Bruno Schulz, visita guiada a "configurações irreais", que incluem ainda entidades biológicas primitivas, matagais, musgos, ervas daninhas, faunas insidiosas, insectos, animais fantásticos, erupções, fermentações, cores de âmbar, bafios e podridões, cardos, crustáceos, escamas, ectoplasmas.
Esta "imaginação aberrante e encantada" é o alfa e ómega de As Lojas de Canela (1934), a primeira das duas colectâneas de contos publicadas por Bruno Schulz (1892-1942). Judeu da Galícia, filho de um mercador de têxteis, estudante de arquitectura, professor do liceu, desenhador compulsivo, escritor escasso, morreu cedo, vítima da Gestapo. [...]
Porém, ao contrário de Kafka, Schulz é excessivo, exuberante, acumula metáforas insólitas, imagens nunca vistas, vocábulos raros, substantivos e adjectivos aos magotes (a tradução de Aníbal Fernandes é extraordinária): "Havia por lá banais germinações, caules finos encimados com o penacho emplumado das suas espigas; salsas e cenouras selvagens com filigranas delicadas; os rudes folíolos amarrotados da hera e das urtigas cegas que cheiravam a mentol; as tanchagens filandrosas e luzidias manchadas de ferrugem, que jorravam com poupas de grandes grãos vermelhos."
O escritor queixava-se de que a língua não possui palavras que penetrem em certos graus da realidade, e por isso inventou uma linguagem nova, adequada a uma "realidade mutante". [...] Jakub e o filho são demiurgos em segunda mão, a matéria assusta-os, apaixona-os. E como nada se perde e tudo se transforma, eles recriam tudo aquilo em que tocam, num génesis heterodoxo, distorcido.
Os inquietantes desenhos de Schulz, incluídos nesta edição, ilustram bem essa causa genesíaca, a que ele chama, sem hesitações, "a causa da poesia".»
Pedro Mexia, «Génesis bizarro», «Actual»/Expresso, 9 de Março de 2013, onde pode ser lido na íntegra.
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