segunda-feira, 4 de março de 2013

«Partilha de fantasmas», por Gustavo Rubim



«Rosa Maria Martelo continua a percorrer o território da poesia portuguesa e a sua acidentada história de forma corajosa.

Não é preciso insistir na importância dos estudos de Rosa Maria Martelo para quem se interessa sobretudo por poesia: é uma evidência e já não é de agora. Mas vale a pena notar que esses trabalhos são dos mais corajosos na abertura e na instalação de linhas de pesquisa incomuns no discurso crítico português sobre poesia. Este novo livro é uma prova disso.
Compõe-se de três partes: Deambulações na Poesia, De Imagem em Imagem e por fim a homónima do livro, O Cinema da Poesia. Nesta última estão talvez os textos mais inspirados de todo o volume, um conjunto de quatro ensaios cujas figuras tutelares são Herberto Helder e Manuel Gusmão, ambos intensamente lidos em função das conexões diretas que estabelecem entre poema e cinema.
[...] Há, porém, antes das três partes mencionadas, um duplo preâmbulo que de modo nenhum cai fora do livro. Se o primeiro texto (Poesia: imagem, cinema) constitui uma espécie de leitura antecipada de todo o livro e de roteiro histórico-teórico para o problema que o estrutura, o segundo, Pensar e sentir por imagens (Fernando Pessoa, 1912), situa o próprio livro e a escolha deste problema numa genealogia que reconduz aos ensaios que Pessoa publicou na revista  Águia e com os quais inaugurou a linha de reflexão crítica sobre a poesia moderna de que Rosa Maria Martelo não quer afastar-se.
[...] Não só Pessoa está aqui decididamente em causa, como toda a possibilidade de estudar a linha de articulação entre cinema e poesia depende de figuras como Marcel Duchamp, Fernand Légier, Man Ray, Jean Epstein, Apollinaire, Eisenstein, Ezra Pound ou a bem pouco conhecida produção teórica dos Formalistas Russos sobre a poética do cinema. [...] De Cesário Verde a Ruy Belo, antes de Herberto, Gusmão, Al Berto e Luís Miguel Nava, com passagens importantes por Fiama Hasse Pais Brandão e Sphia de Mello Breyner Andresen, é esse território e a sua acidentada história que Rosa Martelo continua a percorrer e que o leitor mais informado conhece bem de um volume ainda recente: A Forma Informe, editado em 2010.
[...]
O ponto crítico do jogo entre o poético e o cinematográfico situa-se talvez na modificação da ideia retórica de "imagem" pela ideia tecnológica da imagem que a fotografia e o cinema teriam trazido à consciência dos modernos. E o ponto polémico desse jogo, que fez Herbero Helder falar algures dos "poetas futuros com máquinas de filmar nas mãos", é sem dúvida o da oposição entre o que seria "uma ontologia da imagem" e o que, por outro lado, não ultrapassaria um "plano formal ou técnico" (como escreve a autora na página 28) em que se identificariam pontuais afinidades ou influências entre poesia e cinema (por exemplo, a montagem, que o modernismo absorveu intensamente).
[...]
Estamos agora, com Rosa Maria Martelo, a começar a ler a frase de Pessoa que ela mesma nos convida a pensar: "As coisas passam na medida em que não são."»

Gustavo Rubim, «Partilha de fantasmas», in «Ípsilon» / Público, 1-III-2013, onde pode ser lido na íntegra.





Sem comentários:

Enviar um comentário