O Estranho Animal de Vaccarès, dificilmente se descola das vicissitudes biográficas do seu autor. Tal como o protagonista de Vaccarès, Joseph D’Arbaud rodeou-se das mais variadas espécies de gado, viveu rudemente “abrigado em duas palhotas com telhados de junco” e “construiu durante oito anos a estranha imagem de vaqueiro culto.
Como um desses tesouros milenares que apanham desprevenidos os Indiana Jones deste mundo, levantando alçapões duvidosos ou abrindo baús no fundo do sótão, e desse modo alterando a escala com que se mede o pulso ao real, O Estranho Animal de Vaccarès, publicado em 1926, e da autoria de Joseph d’Arbaud (1874-1950), serve de corolário às digressões mais patuscas e coloridas sobre a arte de contar histórias fabulosas – e, em particular, a arte cada vez mais difícil de dar à imaginação rédea solta para espargir pela vida, sem escrúpulos ou cauções racionais, a imensa poalha da infância, com o seu festim inesgotável de monstros e prodígios. E nada como ter o Natal à porta, independentemente da moldura consumista em que o engatilhamos, para reencenar lareiras acesas e o mimo dos avós, ao colo dos quais a absurdez desossada do dia a dia pode ser embalada ao ritmo de histórias intemporais.
“A leitura é uma paixão, como os touros. Eu cá tenho em Arles um livro que talvez o faça dar voltas à cabeça para o decifrar. Um dia ainda lho trago.” O livro em questão é o miolo de O Estranho Animal de Vaccarès, a história de um encontro inquietante que, segundo nos adverte o narrador nas primeiras páginas, terá tido lugar em meados do século XV, na zona entre os Alpilles e as Cévennes, na região da Camarga, no sul de França. É ainda o narrador que se apresenta como o responsável pela renhida transcrição do manuscrito que, em 1912, lhe chegara às mãos: um maço de folhas velhas onde a longa digestão do tempo deixara as marcas da sua passagem, amarelecendo-lhe “o tom primitivo e o boleio da frase” e, nesse rasto, adensando ainda mais o seu enigma.
O protagonista, Jacques Roubaud, perpetua as tradições familiares, dedicando-se com vigor à guarda de touros. A sua rotina era salutarmente vulgar – amestrando cavalos selvagens, montando armadilhas para coelhos, sentindo o prazer de “um pequeno saco de figos” –, até ao dia em que um insólito rastro de pegadas o leva à descoberta de “uma espécie de animal castanho, acoitado no mais espesso local dos juncos”. Tinha face de homem, dois chifres e um par de cascos fendidos, um aspeto em tudo semelhante ao “desse bode nocturno em honra do qual são celebradas, segundo se diz, as missas imundas no sabá”. Nada menos que um fauno oriundo do real pagão de eras extintas e refugiado nas zonas recônditas da Camarga: “Esta é a última terra onde encontrei um pouco de paz e a solidão sagrada que outrora me fazia divertir quando exercia uma jovem força, quando reinava senhor do silêncio e da hora, senhor do canto de inúmeros insectos da planície que sobe até às estrelas e se transforma e espalha nos abismos da imensidão. […] Terei a minha paz e a minha triste felicidade terminadas porque um homem esta noite me contempla face a face?”
Os deuses também morrem
Como assinala Aníbal Fernandes nesta edição da Sistema Solar – e, nunca é demais dizê-lo, os seus prefácios são inimitáveis prodígios que nos redobram o entusiasmo de ler o que traduz –, a descrição física da criatura em tudo condiz com a idealização de Pã, mesmo que o narrador nunca o identifique como tal. Segundo a mitologia grega, Pã era filho de Hermes, uma das várias divindades terrestres, residente habitual das florestas e montanhas, por onde andava a entreter ninfas e animais ao som da sua flauta rústica. Nutria paixões efusivas por qualquer beleza feminina que de si se abeirasse; mas a sua fealdade barbuda logo o deixava de novo sozinho, a compor melodias ora mais doces, ora mais crispadas – e daí lhe serem atribuídos os sons desconhecidos que, no silêncio da noite, inquietavam qualquer caminhante solitário. O chamado pânico.
Fauno, semideus, criatura lascivamente sensorial nascida no coração da matéria mais rasteira, ser interdito ao olhar humano como figuração arrancada ao terror inominável do sagrado, ou sintoma de uma era pagã expirando o derradeiro suspiro na Idade Média tardia – não há nada de extraordinariamente novo aqui. Mas neste encontro entre um pastor e a sua divindade protetora, o que começou por ser uma visão terrível – e, a páginas tantas, o pobre pastor fica estarrecido de medo, como se do fauno “ouvisse as trombetas do Juízo Final” – conduz lentamente este ansioso protagonista à derradeira confissão: “trago a sua amizade no sangue como uma doença”.
E é sob o arco das histórias que possuem a mesma idade do mundo, que a rude simplicidade da narrativa se abre ao maravilhamento de uma fábula moral, enquanto pura festa das imagens e dos sentidos: “Talvez saibas ou venhas a ignorar para sempre o que eu sou. Reconheci o Deus eterno. Cantei-o com todas as vozes do mundo. Com a minha dança segui a dança das constelações. E agora aqui me tens a sentir a minha antiga carne a ressequir-se sob a pele, como a madeira de uma velha árvore que já não tem seiva a alimentá-la debaixo da casca. Acabaram-se os tempos, sem dúvida, e o meu reino terminou. Mas vou conservar até ao fim o meu poder, dominar os animais da planície e os bichos das moitas.”
A era da cultura pânica
Segundo Aníbal Fernandes, esta “elegia pânica” – pois é na morte de um semideus que se concentra – dificilmente se descola das vicissitudes biográficas do seu autor. Joseph d’Arbaud provinha de abastadas famílias, teve uma instrução escolar robusta, num colégio jesuíta, e herda da mãe o zelo conservador relativamente à língua d’oc provençal. Essa reivindicação orgulhosa do dialeto occitano roça as obsessões identitárias pela preservação de uma certa “pureza” ameaçada pela corrupção dos tempos e, em particular, pelo que entendia ser a degenerescência grosseira da língua nacional. Seria esse, aliás, o principal fator que levaria o poeta a abandonar a família e as origens, e a mudar-se para a ilha da Camarga, “local que lhe parecia indicado para uma tomada de consciência isenta das perigosas influências uniformizadoras do mundo moderno, ‘para viver em pleno o que existe de mais estritamente provençal’ nas terras de França”, explica o tradutor.
Aí, aos 24 anos, tal como o protagonista de Vaccarès, D’Arbaud rodeou-se das mais variadas espécies de gado, viveu rudemente “abrigado em duas palhotas com telhados de junco” e “construiu durante oito anos a estranha imagem de vaqueiro culto, de «rapaz de princípios» ora a lidar com a ferocidade indominável dos seus touros, ora a entregar-se a desvios elitistas que o mergulhavam em poesias, em prosas”.
Atente-se que a decisão foi tomada em 1898. Quase fim de século, portanto – e é tentador imaginar os íntimos sobressaltos porfiados pela aproximação dessa viragem, reagindo à angústia de um déjà-vu apocalíptico e da aniquilação total: a hipótese de o passado não mais existir para ser lembrado, de os lugares conhecidos se extinguirem para sempre. Neste aspeto, como bem demonstra Peter Sloterdijk, a figura de Pã não surge por acaso, nem constitui uma mera frivolidade para eruditos: “O Pan grego era, por um dos seus atributos, o deus da hora do meio-dia, quando as sombras são mais curtas e o mundo, esmagado no chão pela luz, retém a respiração na sua presença. O conceito moderno de pânico esquece essa conexão entre presença, revelação e temor […]. Já não sabe, sobretudo, o mais importante – que uma vida humana suportável é sempre uma ilha no meio do que não é suportável e que a existência dos ilhéus apenas é garantida pela discrição do oceano presente em segundo plano. O mundo, que é seguro para nós, está sempre colocado, por isso, sobre um fundo, ou apocalíptico (em termos judeo-cristãos), ou pânico (em termos pagãos)” (in A Mobilização Infinita, trad. Miguel Serras Pereira, Relógio D’Água, 2002).
A ilha de D’Arbaud nas regiões húmidas da Camarga tomaria a forma de uma “autodidáctica diabólica” (Sloterdijk), compenetrada em sobreviver no fim dos tempos. Assim, e ao contrário dos destrambelhados histerismos que se poderia prever na iminência do fim dos fins, há em alternativa um método vigoroso neste processo de retração do mundo para nele erigir uma sobrevida, com os seus hábitos e repetições, como os sábios eremitas e ascetas de outros tempos. (Embora o idílio camarguês não tenha excedido um período de oito anos: uma doença levaria o autor de volta a Aix-en-Provence, onde viveria até à hora da morte, aos 66 anos, em 1950.)
Aplicando os termos do filósofo à experiência do poeta, O Estranho Animal de Vaccarès empresta-se, assim, a uma leitura do pânico enquanto “versão pós-cristã, neopagã da apocalíptica”, consolando as ansiedades irresolvidas pelas “interpretações judeo-cristãs das coisas derradeiras”. E Sloterdijk conclui: “Desde que para o messianismo histórico o tempo se esgotou, soa outra vez a hora da experiência pânica do mundo.” O sátiro moribundo de D’Arbaud assumiria, então, o papel alegórico de uma Modernidade em crise: a mesma Modernidade que, não podendo mais apontar o dedo ao ciúme dos deuses como origem dos seus males, se tornou consciente de ser ela própria a responsável por engendrar os seus monstros e quimeras. Daí em diante, os progressos técnicos e industriais tornar-se-iam as declinações excessivamente humanas do que antes eram os monstros provenientes dos abismos da Terra e do Céu. No fundo, é isto: deixámos de conviver com faunos porque passamos a ter Auschwitz, Chernobyl e a emergência climática. E, tal como d’Arbaud exilado nos pântanos da Camarga, não nos faltam paraísos artificiais – chamemos-lhes antidepressivos, programas de mindfulness, ou o aplauso ao mais descarado oportunista político. Note-se que foi ainda no verão deste ano que o cineasta norte-americano Ari Aster captou o terror às claras no folclore de Midsommar – um filme sem faunos literais, mas envenenado de loucos muito bem disciplinados, dispostos aos mais macabros sacrifícios para impedir que se esvaneça o sentido dos seus deuses. E, como o Pã desta história, também a seita nórdica desse filme justificava a sua cegueira alegando-se contra “a barbárie e a malícia dos homens nestes tempos”.
Diogo Martins, jornal i, 23 de Dezembro de 2019.
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