Edição: Outubro de 2020
Preço: 36,79 euros | PVP: 39 euros
Formato: 22 × 28 cm (encadernado)
Número de páginas: 224 (a cores)
Com a Fundação EDP – MAAT
Edição bilingue: português-inglês
É por isso que agora aproximei do nariz as sombras de Lourdes
Castro que possuem uma presença viva e misteriosa capaz de fazer
crescer mágicos pensamentos a quem as olha.
[Tonino Guerra]
Começava a nevarem Pennabilli e eu detinha o olhar na neve que caía sobre as amendoeiras, em redor da casa, quando
me chegou o Grand herbier d’ombres. É um livro com as sombras de muitas ervas do campo, da pintora Lourdes Castro,
grande artista portuguesa que reproduz sombras de pessoas ou de outras formas de vida. Olhava eu, assim, os bordados da neve e logo depois as páginas do livro.
Num determinado momento, no branco do vale, vi manchas escuras que subiam da minha memória. Eram as sombras
que passavam pelo tecto do meu quarto no dia do regresso da prisão, na Alemanha, e eu, naqueles reflexos, procurava
reconhecer os meus conterrâneos. Depois vi o vale, além da janela, atravessado pela grande sombra do obelisco da Praça
de S. Pedro, num dia de Agosto, quando Roma me apareceu deserta. E no entanto, os turistas estavam à fresca, na sombra
daquele obelisco se apinhavam.
De repente, pensei nos belos dias de Agosto com Andrei Tarkovski quando trabalhávamos no filme Nostalgia, em
Bagno Vignoni. A pequena aldeia toscana tem, na praça, um lago de água
quente criando nuvens de vapor que enevoam, qual mundo medieval. É nestas águas que Catarina de Siena banhava seu corpo e as palavras desua oração.
Uma manhã entrámos na pequena igreja, na margem da rua que contorna o
grande lago. Sentámo-nos sobre um banco de madeira para gozar aquele silêncio abandonado. Descobrimos que o feixe de luz matutina proveniente de
uma janela alta estampava sobre a parede interior, junto de nós, uma pequena
planta selvática crescida sobre o terriço trazido pelo vento, sob o pequeno vitral. Uma sarça de sombras incertas que se tornava decoração naquele reboco
gessoso e humilde. Eu e Andrei permanecemos por algum tempo contemplando estas imagens trémulas que nos traziam reflexões profundas. A um certo ponto pareceu-nos sentir no ar um perfume de menta. Levantámo-nos de
imediato para descobrir aquela imagem sobre o muro e perceber se a fragrância vinha daquela sombra. Assim era.
É por isso que agora aproximei do nariz as sombras de Lourdes Castro
que possuem uma presença viva e misteriosa capaz de fazer crescer mágicos
pensamentos a quem as olha.
[Tonino Guerra – tradução de Mário Rui de Oliveira]
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