Este diário que decorre entre os primeiros dias de Maio e o dia da sua morte a
dezasseis de Setembro é um diário no limbo, no limbo do desejo e da renegação,
do ódio à vida e do receio da sua perda, da repulsa à ordem e da necessidade de
um porto de abrigo. É um diário no limbo entre o absurdo e uma espécie de
esboço teatral do aceitável, entre a obsessão e a fuga do real. É esta
ininterrupta e avassaladora insatisfação que move cada passo do narrador, cada
sua dúvida e hesitação. Mas esta insatisfação tirana e anémica é de tal maneira
intrínseca e natural a este homem, que não há nada que possa adquirir por si só
alguma importância. Não há nada a perder, da mesma maneira que não há a ganhar
neste mundo fantasma, neste mundo humilhante e dissimulado (p.60) onde se
«fabricava sem tréguas a felicidade ou a desgraça.» A felicidade ou a desgraça
isso mesmo, e qual é a diferença para este homem? Nenhuma, e este diário é o
registo exímio disso mesmo, da disfuncionalidade deste mundo, da indiferença,
da estranheza de uma sociedade hipócrita, verruguenta, tão mais insegura que o
comum dos Duméries. Não é Duméry que é um marginal, mas sim a sociedade
raquítica, espurca, embostelada. A sociedade que se baba por uma lágrima de
arrependimento. O que acontece é que Duméry não verte essa lágrima ougada por
todos. Aliás, Duméry não verte lágrima nenhuma e é aí que entra a ironia como
macronutriente predominante desta história. (p.142) «Mesmo que a
Sociedade tenha instrumentos para todas as tarefas, só Deus e os assassinos
sabem fazer-nos morrer.» ou ainda (p.145) «Há no céu mais lugar para um pecador
que se arrepende do que para um justo que nunca falhou.»
O que acontece é que Duméry não é um pecador que se arrependeu, nem um justo
que nunca falhou, mas nem por isso ele passa a ser um homem turvo, dúbio,
controverso. De maneira nenhuma, a sociedade sim é que é controversa, dúbia,
turva, mas na altura em que decide voltar atrás depois de o ter condenado, ao
vê-lo desfalecer e cair terrivelmente doente numa cama, já será tarde demais e
ele acabará por se suicidar.
Tristan Bernard desde logo nas primeiras páginas, não nos dá nenhuma hipótese
para julgamentos, e por essa razão nos pomos imediatamente ao lado do narrador
atravessando com ele impunes a sua retina incomplacente e inexorável. É então,
desse modo, que o leitor por se ver por dentro da pele do narrador diarista se
deixa ficar desde o primeiro momento, de pedra e cal firme a seu lado, zelando
e temendo por ele. Mas no fundo, o leitor não zela e teme apenas por Duméry,
ele zela e teme por si próprio a cada relato do diário, porque em alguma parte
do seu sacrário interior, o leitor sabe que indubitavelmente vai encontrar algo
de monstruoso que também o perseguirá sem tréguas. Essa perseguição a que
o leitor se sujeita é o preço base de toda a leitura. Na verdade, é certo que
toda a leitura tem a sua sentença, e a leitura deste diário é áspera, severa e
desassossegada.
Duméry que é um cidadão cumpridor, eloquente, culto, genuinamente bem formado,
nunca se imaginou a assassinar alguém, e, no entanto, assassinou. A sangue frio
ele matou porque se viu obrigado a matar. A sangue frio ele confessa o seu
crime sem nenhum remorso ou arrependimento, porque não se vê obrigado a não
confessar. A confissão e culpa não têm que ser aplaudidas ou vertidas em
soluços de absolvição só porque assim é esperado, até porque a sua ausência de
culpa, ou melhor, a ausência de uma encenação é o que mais tonifica a sua
personalidade e o cerne deste romance. Aliás, é precisamente através
desta ausência de culpa de Duméry, que Aníbal Fernandes no seu prefácio
estabelece uma comunhão entre Tristan Bernard, Dostoievsky e Camus e dos três
romances em questão (Entre a Espada e a Parede (1933) / Crime e Castigo (1886)
/ O Estrangeiro (1942)).
O tradutor desenha-nos no seu esclarecedor prefácio um triângulo entre os três
personagens por ele comparados no seu texto, ou seja, o Duméry de Bernard, o
Raskolnikov do Crime e Castigo de Dostoievsky e o Mersault de O Estrangeiro de
Camus. (p.9) «No que toca a Dostoiévski, depois de alguma semelhança entre os
crimes frios do seu Raskolnikov e o deste Duméry, tudo é diferente porque o
assassino russo se prolonga numa implacável peregrinação expiatória, enquanto o
assassino de Aux abois vive numa ausência de sensação de culpa, numa entrega
passiva e com qualquer coisa de entediada aos prazeres que a sua desenvolta
situação financeira lhe proporciona.» Por sua vez, a comparação que é
feita com a personagem do Mersault de Camus prende-se com o fato de que
Mersault tal como Paul Duméry também não sentir remorsos nenhuns, apenas medo
do que lhe acontecerá em seguida. (p.10) «Em Bernard e Camus, para além do
percurso de uma escrita que em ambos combate a morte determinada por decisão
judicial, notam-se outros paralelismos entre pontos essenciais das duas obras:
pormenores do crime; a forma como ambas as personagens são presas; o anúncio da
pena capital e até a possibilidade da entrevista com o capelão. E pode a tudo
isto acrescentar-se que a leitura dos Carnets de Camus nos informa a sua
hesitação, durante a escrita de L’Étranger em fazer Mersault suicidar-se (como
acontece à personagem de Bernard).»
Esta aproximação estabelecida entre personagens aponta para o espelho cruzado
entre as três obras, o seu ossobuco gélido, o halo de indiferença, a
impassibilidade insuflada, o farrapo das emoções, e por fim, mas não pela mesma
ordem, o seu naufrágio.
Se nos focarmos em O Estrangeiro de Camus, também podemos além destas
semelhanças, acusar talvez aquela que seja a que mais aproxima os dois
personagens principais além da ausência de remorsos, as mulheres. É que em
ambos, tal como acontece com a culpa, com o amor também não há a necessidade de
uma encenação oleada. Tanto em Duméry como em Mersault, há a ideia de que «a
mulher é uma loba para a mulher» (Bernard, T., A Vontade do Homem)
isto é, também elas se bastam a si próprias. São mulheres disponíveis, fáceis,
desenvoltas. Neste romance por exemplo, o que verdadeiramente distrai e dá
prazer a Jeanne é o casino, o jogo, o vaivém da incerteza, não são os encontros
e as noites com Duméry. Também da sua parte não vemos nenhuma lágrima ou
angústia quando Duméry a abandona e parte para Paris. Também com Marie estamos
perante uma mulher disponível. Vejamos quando ela do nada se reencontra com
Mersault numa praia passados tantos anos sem se verem, e ela se deixa levar
solta pelo momento. Marie mostra-se o suficiente à vontade para o deixar
aproximar-se de si sem o menor pudor. A imagem de Mersault a subir para a boia
onde ela estava deitada a apanhar sol embalada pelo ligeiro ondular do oceano é
de uma sensualidade soberba nunca alcançada no presente livro por Tristan
Bernard, que mais não passa de tratar o corpo ou o sexo como um regresso
“à boa carne quente” (p.76) ou como “um refúgio sagrado” (p.74) capaz de lhe
conceder o perdão e a “abolição do passado”.
Este diário que é escrito no tempo presente mas sobre um tempo passado, carrega
por isso implicitamente a noção de “passagem”. Esta passagem é encarada ora
como uma nuvem coleante a ensombrar ora como um folego agitando todo o registo
literário. A cada parágrafo do diário, vamo-nos apercebendo que tudo nos é
apresentado como sendo vago, volátil, impreciso, intangível. (p.73) «Para amar
a vida é realmente preciso combatermos as dificuldades e sairmos delas, mesmo
que o façamos de passagem» ou «Bonito mês de Maio, quando te vais embora?»
Lermos estas frases é como lermos um desespero sonâmbulo que aparece e
desaparece indolentemente. É como que se o diarista se quisesse convencer que
ele próprio escreve para lutar contra essa mesma noção de “passagem”, de
abandono, de descontrole, de indolência. Ele quer-nos provar que pela escrita
se poderá munir de mais força e tranquilidade para não temer o mal que se
avizinha, senão vejamos (p.74) «Estou neste momento tranquilo e com a impressão
de que nunca serei preso. Digo a mim mesmo que faço mal em pensar isto, em
escrevê-lo, em desafiar o destino.» ou «O que me desencoraja é perder a
confiança que tinha nesta confissão escrita, para me acalmar. Deixei de ter
domínio sobre mim.» São muitas as vezes em que nos apercebemos a dualidade
que o poder da escrita exerce sobre si. O leitor testemunha esse dilema que é
para Duméry pressentir que se ao escrever ele pode ter o poder de se libertar e
controlar as suas emoções (mesmo que nem sempre aquilo que escreve seja
transparente), mas também que ao escrever, sem ter noção, pode inesperadamente
invocar a maior das fatalidades e desafiar o que o espera.
Foi em 1933 que Tristan Bernard escreveu este livro, mas se recuarmos a esse
ano facilmente chegamos a obras de outros escritores franceses como Malraux com
A Condição Humana, Les Boutique de cannelle de Bruno Schultz, ou Les Inconnus
Dans La Cave de Jean Cassou. De notar também curiosamente, que foi neste
preciso ano que em várias cidades alemãs, meses depois da ascensão de Hitler ao
poder, viriam a ser queimados milhares de livros de escritores germânicos
opositores ao regime nazi. Romancista, colaborador de revistas como a Revue
Blanche onde viu serem publicados os seus primeiros textos, foi no teatro e na
comédia que alcançou os maiores sucessos com mais de trinta peças. Ele que
escreveu que «o teatro é regido por leis, mas essas leis, ninguém as conhece”,
no seu círculo de amigos faziam parte Jules Renard, fundador da revista
literária Mercure de France, o humorista Alphonse Allais, os escritores
Georges Bernanos, Breton, Georges Courteline, Lucien e o cineasta russo
Sacha Guitry.
Este livro é muito mais do que um diário de um assassino, é um diário poético
de um homem acostumado a viver com o seu próprio abandono, com os seus livros,
as suas poucas mulheres, os deus desvarios, a sua solidão aguçada e coerente.
Duméry, o diarista desta história, terá que ser sempre lido como um homem acima
de tudo coerente, e acima de tudo coerente para com o leitor. Um homem que não
se deixou marionetar pelo “traje de máscaras” da sociedade burguesa parisiense
da sua época. «Foi Deus que criou o mundo, mas parece ser o diabo quem o
mantém», esta sua frase ilustra magistralmente este romance. Acima de tudo
Duméry a cada nova leitura será um homem que já não está cá. Faltam homens que
como ele já não estejam cá. Por outro lado, se virmos o seu diário num outro
prisma, podemos também entender a sua escrita como outra forma de encenação.
Afinal escrever também é encenar, ordenar, catalogar o absurdo, o obscuro, o
estranho, o indecifrável, toda a maldição entre a espada e a parede.»