Abrimos o volume
com um Cesariny no papel de entrevistador e fechamos com uma conversa sobre
Cesariny (feita a Cruzeiro Seixas, no ano da morte de Cesariny). O entrevistado
é sempre o mesmo, Cesariny, poeta e pintor, surrealista, que se exprime quando
lhe apetece”. Todos lhe perguntam o que é o surrealismo, e há sempre uma
essência nas diferentes respostas, a liberdade livre, nunca escondendo as suas
discórdias com o pontífice André Breton, simpatizando muito mais com Antonin
Artaud. Dentro das respostas esfíngicas vai dando aos entrevistadores, fixei a
que dá a Francisco Belard se ainda havia surrealismo: “Depois dos 50 anos de
idade já ninguém é surrealista, nem mesmo o movimento surrealista. Para que a
semente germine, volte a ser futuro, terá de separar-se, baixar à terra. Será
sem dúvida um trabalho de séculos – moroso, lento – ou de terrivelmente rápido,
fulgurante”. E concluirá dizendo que em Portugal não houve movimento surrealista
algum, “a não ser no escritório de alguns mais ocupados em tratar da jorna que
do nível de informação que servem. Não houve movimento surrealista em 1947-1951
e seguintes como o não há em 1977. Antes, foi a liberdade coletiva roubada,
agora é a nudez aflitiva que à direita e à esquerda quer aparecer vestida”. No
vasto conjunto destes elucidativos documentos, sobressai pela força do dueto a
entrevista que dá a Francisco Vale, aqui têm-se uma boa oportunidade de
conhecer o poeta-pintor. Logo à primeira pergunta Acha que a pintura
não exige tanta convicção como a poesia?, Cesariny é estrito e lacónico:
“No fundo, escreve-se sempre o mesmo verso. Escrever poesia é uma espécie de
invocação. Mas não se pode estar toda a vida a invocar o mesmo santo, sobretudo
se ele não aparece. Assim sendo, não rezo mais”. O entrevistador insiste E
a pintura, dispensa os santos? E Cesariny revela-se desperto: “A
pintura parece não bulir tanto connosco. É a imagem à mesma, mas parece
exterior. É um trabalho de mediação em que parece não se estar implicado. Na
poesia, na escrita, estão todas as nossas vísceras. Desiste-se depois de ver
toda a anatomia e de se constatar que talvez não fosse bem aquilo que se
desejava que aparecesse”. Era inevitável que se falasse de Breton e de Artaud,
e Cesariny esclarece: “O Breton é o fim de qualquer coisa. O Artaud é um
começo. O Breton levou as coisas até um limite que parece final. O Artaud vai
além disso, foi buscar outras civilizações, uma anti linguagem. Gosto mais do
Artaud, que decidiu viver o seu drama como tragédia cósmica”. Francisco Vale
continua decidido e não o deixa em paz, quer que o poeta dê a sua definição de
surrealismo, Cesariny não se furta, mas a resposta soa a uma generalidade de
albergue espanhol: O surrealismo foi um convite à poesia, ao amor, à liberdade,
à imaginação pessoal. O surrealismo reuniu o romantismo, o simbolismo, o
futurismo, as tradições libertárias e outras correntes, e deu-lhes um sentido.
Esse sentido não vai desaparecer, ficou explícito”.
Conversando com Perfecto
Cuadrado (conversa ficcionada por este), sempre ruminando que como poeta se
esgotara, que de surrealismo já nada restava a não ser os mandamentos sagrados
que dão pelo nome de Liberdade, Amor, Conhecimento, justifica a sua poesia:
“Uma pessoa que está convencida da inutilidade do seu grito, não grita. A
poesia que escrevi é uma coisa que me foi dada, que me foi e ainda é útil. Se o
é para os outros, não sei. A questão da inutilidade não se põe”.
O leitor toma
consciência de que esta importantíssima recolha das entrevistas de um dos
maiores poetas portugueses de todos os tempos está focada, de acordo com as
perguntas dos múltiplos intervenientes, no processo lírico e como emanou o
movimento surrealista em Portugal e quais os seus próceres. É também necessário
ler no que não se diz: António Dacosta é o grande ausente, percebe-se a
necessidade de Cesariny matar o fundador da ideia surrealista, António Pedro, e
procurara amesquinhar os seus companheiros, estando sempre a estraçalhar
José-Augusto França. Acima de tudo, Cesariny é muito tático a exprimir a
natureza do que faz nas Belas-Artes, é seguramente a reserva de alguém que cedo
ganhou consciência que era um poeta-maior e que enquanto artista plástico não
tinha a mesma categoria. Daí a camuflagem de dar entrevistas no seu ateliê e de
pouco ou nada se falar do que está nas paredes. Cruzeiro Seixas, nunca
desvalorizando o trabalho plástico de Cesariny, traça-lhe uma génese de grande
originalidade, depois não prosseguida: “Os primeiros trabalhos de pintura eram
interessantíssimos: ele pintava e depois mergulhava tudo na banheira e o papel
absorvia uma parte da tinta. Inesquecíveis esses quadros”. E despede-se com
grande fervor de memória: “Tenho mais a ver com a vida de Cesariny do que com o
Cesariny morto. De resto, de certa forma, morri igualmente. O Mário para mim é
o vivo, uma companhia inesquecível, extraordinária, exaltante”.
De leitura
obrigatória. Está aqui um dos diamantes da cultura portuguesa.»
[Mário Beja Santos]
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