sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

«Dizia que não gostava de entrevistas, mas estas revelam os traços do seu génio»



«Uma Última Pergunta, Entrevistas com Mário Cesariny
 (1952-2006), organização, introdução e notas de Laura Mateus Fonseca, prefácio de Bernardo Pinto de Almeida, posfácio de Perfecto E. Cuadrado, Sistema Solar, 2020, é uma bela oportunidade para se conhecer o pensamento de um dos mais significativos poetas portugueses do século XX. O leitor verificará que em quase todas estas entrevistas ele será perguntado acerca do movimento surrealista em Portugal e no mundo, e não causará grande surpresa a natureza das respostas, quase sempre fluídas e divagantes, de entrevista para entrevista ao longo destas décadas. E há o conhecimento do homem, como observa o prefaciador: “O lugar raro de onde Cesariny nos fala, nestas entrevistas, apesar do ruído, permite ainda assim reencontrar a limpidez do olhar, a clareza da voz e a graça da atitude descomprometida, sempre para com o que seria o bom gosto, ou o bom tom expectável de um Poeta, preferindo-lhe, quase sempre, e durante anos, a provocação anarquista, que professou como forma de escapar, pelo humor e a irrisão, a uma seriedade hipócrita quanto a tais assuntos”. Era paradoxal, espaventoso na linguagem, desbocava-se quanto às convenções. Um exemplo: “Sou contra a leitura de livros nas livrarias. Dá mau aspeto. E desde que vi Allen Ginsberg lançando poemas a uma multidão frenética de muitos milhares de jovens fiquei cético quanto às alegrias proporcionadas pelo lançamento de um livro entre nós. O cerimonial usado, com leitura de versos feita pelo poeta levado à presença solene de uma pseudocrítica de olho de goraz e passo de mula, faz mal a qualquer estado de saúde”. É insistente nas suas guerras, desanca em permanência em José-Augusto França, atribui-lhe a tolice de ter criado o modernismo (o que era manifesta grosseria, o modernismo vingou antes dos trabalhos de Sociologia de Arte de José-Augusto França), considerava que a partir do século XVI o país perdera a especificidade, inventou ídolos como António Maria Lisboa ou Teixeira de Pascoais, enfurecia-se com a notoriedade mundial dada a Fernando Pessoa, tudo aqui transparece na coletânea de entrevistas, com uma vantagem epistemológica para o leitor, como adverte a organizadora: “A arquitetura deste livro seguiu duas linhas: a do texto e a das imagens. São reproduzidas as entrevistas segundo uma ordem cronológica e reproduzidos os correspondentes recortes de jornais.  

Abrimos o volume com um Cesariny no papel de entrevistador e fechamos com uma conversa sobre Cesariny (feita a Cruzeiro Seixas, no ano da morte de Cesariny). O entrevistado é sempre o mesmo, Cesariny, poeta e pintor, surrealista, que se exprime quando lhe apetece”. Todos lhe perguntam o que é o surrealismo, e há sempre uma essência nas diferentes respostas, a liberdade livre, nunca escondendo as suas discórdias com o pontífice André Breton, simpatizando muito mais com Antonin Artaud. Dentro das respostas esfíngicas vai dando aos entrevistadores, fixei a que dá a Francisco Belard se ainda havia surrealismo: “Depois dos 50 anos de idade já ninguém é surrealista, nem mesmo o movimento surrealista. Para que a semente germine, volte a ser futuro, terá de separar-se, baixar à terra. Será sem dúvida um trabalho de séculos – moroso, lento – ou de terrivelmente rápido, fulgurante”. E concluirá dizendo que em Portugal não houve movimento surrealista algum, “a não ser no escritório de alguns mais ocupados em tratar da jorna que do nível de informação que servem. Não houve movimento surrealista em 1947-1951 e seguintes como o não há em 1977. Antes, foi a liberdade coletiva roubada, agora é a nudez aflitiva que à direita e à esquerda quer aparecer vestida”. No vasto conjunto destes elucidativos documentos, sobressai pela força do dueto a entrevista que dá a Francisco Vale, aqui têm-se uma boa oportunidade de conhecer o poeta-pintor. Logo à primeira pergunta Acha que a pintura não exige tanta convicção como a poesia?, Cesariny é estrito e lacónico: “No fundo, escreve-se sempre o mesmo verso. Escrever poesia é uma espécie de invocação. Mas não se pode estar toda a vida a invocar o mesmo santo, sobretudo se ele não aparece. Assim sendo, não rezo mais”. O entrevistador insiste E a pintura, dispensa os santos? E Cesariny revela-se desperto: “A pintura parece não bulir tanto connosco. É a imagem à mesma, mas parece exterior. É um trabalho de mediação em que parece não se estar implicado. Na poesia, na escrita, estão todas as nossas vísceras. Desiste-se depois de ver toda a anatomia e de se constatar que talvez não fosse bem aquilo que se desejava que aparecesse”. Era inevitável que se falasse de Breton e de Artaud, e Cesariny esclarece: “O Breton é o fim de qualquer coisa. O Artaud é um começo. O Breton levou as coisas até um limite que parece final. O Artaud vai além disso, foi buscar outras civilizações, uma anti linguagem. Gosto mais do Artaud, que decidiu viver o seu drama como tragédia cósmica”. Francisco Vale continua decidido e não o deixa em paz, quer que o poeta dê a sua definição de surrealismo, Cesariny não se furta, mas a resposta soa a uma generalidade de albergue espanhol: O surrealismo foi um convite à poesia, ao amor, à liberdade, à imaginação pessoal. O surrealismo reuniu o romantismo, o simbolismo, o futurismo, as tradições libertárias e outras correntes, e deu-lhes um sentido. Esse sentido não vai desaparecer, ficou explícito”.
Conversando com Perfecto Cuadrado (conversa ficcionada por este), sempre ruminando que como poeta se esgotara, que de surrealismo já nada restava a não ser os mandamentos sagrados que dão pelo nome de Liberdade, Amor, Conhecimento, justifica a sua poesia: “Uma pessoa que está convencida da inutilidade do seu grito, não grita. A poesia que escrevi é uma coisa que me foi dada, que me foi e ainda é útil. Se o é para os outros, não sei. A questão da inutilidade não se põe”.

O leitor toma consciência de que esta importantíssima recolha das entrevistas de um dos maiores poetas portugueses de todos os tempos está focada, de acordo com as perguntas dos múltiplos intervenientes, no processo lírico e como emanou o movimento surrealista em Portugal e quais os seus próceres. É também necessário ler no que não se diz: António Dacosta é o grande ausente, percebe-se a necessidade de Cesariny matar o fundador da ideia surrealista, António Pedro, e procurara amesquinhar os seus companheiros, estando sempre a estraçalhar José-Augusto França. Acima de tudo, Cesariny é muito tático a exprimir a natureza do que faz nas Belas-Artes, é seguramente a reserva de alguém que cedo ganhou consciência que era um poeta-maior e que enquanto artista plástico não tinha a mesma categoria. Daí a camuflagem de dar entrevistas no seu ateliê e de pouco ou nada se falar do que está nas paredes. Cruzeiro Seixas, nunca desvalorizando o trabalho plástico de Cesariny, traça-lhe uma génese de grande originalidade, depois não prosseguida: “Os primeiros trabalhos de pintura eram interessantíssimos: ele pintava e depois mergulhava tudo na banheira e o papel absorvia uma parte da tinta. Inesquecíveis esses quadros”. E despede-se com grande fervor de memória: “Tenho mais a ver com a vida de Cesariny do que com o Cesariny morto. De resto, de certa forma, morri igualmente. O Mário para mim é o vivo, uma companhia inesquecível, extraordinária, exaltante”.
De leitura obrigatória. Está aqui um dos diamantes da cultura portuguesa.»
[Mário Beja Santos]

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