sexta-feira, 29 de julho de 2022

Sobre «Palavras Aladas», por José Tolentino Mendonça


O QUE TORNA MUITAS VEZES INESQUECÍVEL O VERÃO É A FORMA COMO ASSOCIA CONVERSAS E CAMINHOS
 
Nesta estação sabe bem uma conversa com vagar, sem propósito imediato e que se alongue como uma viagem por dentro do tempo. São assim as conversas que os atalhos do verão permitem ou as que, por exemplo através da leitura, podemos escutar a outros. Li recentemente a esplêndida conversa que Maria Filomena Molder manteve com Cristina Robalo e que a Editora Documenta publicou com o título “Palavras Aladas”. A expressão “palavras aladas” é uma daquelas fórmulas a que Homero recorre com frequência na sua poesia, quase sempre para introduzir o discurso direto, típico das conversas. E palavras aladas porquê? Porque numa conversa as palavras têm asas, saem da boca e voam com a fantasia dos pássaros, com a veemência veloz das flechas, expandem-se e fluem no aberto como auriflamas ou pairam mesmo se pobremente, intercalam-se, interrogam-se, esclarecem-se, revelam no enxame do som novas possibilidades. Como diz Filomena Molder, são aladas porque “vão pelo ar até aquele que está ao pé de mim” e porque são mais preciosas do que a subestima que frequentemente lhes dedicámos. É belo o modo perentório que a filósofa assume: “Nunca serei das pessoas que acham que as palavras valem menos do que quer que seja. Não, não!
 
Nunca serei dessas pessoas.” Uma conversa é também uma oportunidade para reborar ou redescobrir o valor das palavras, sem o qual a vida é menos. Precisamos, porventura até mais do que estamos dispostos a reconhecer, de acostar as nossas palavras às dos outros, de dar tempo à hospitalidade mútua que é a audição, de enraizar essa forma de companhia.
 
Recordo especialmente as palavras que Maria Filomena Molder dedica à sua arte, a filosofia (“a filosofia implica um comércio profundo com a vida... é um esforço de ver mais claro... é um gesto contemplativo...”), evocando mestres importantes no seu percurso, como Giorgio Colli ou Fernando Gil. Aquelas com que descreve as imagens construídas por algum motivo na infância e que depois nos habitam a vida inteira (“As imagens da infância jorram, são inevitáveis, são o nosso alimento... Provavelmente, das mais profundas não temos notícia, alimentam a nossa vida e nós ainda não chegámos a elas”). Ou as que utiliza para explicar o grande, escondido e inescusável confronto que mantemos com a morte (“Olhe, Cristina, acho que não há nada criativo, em nenhum povo, que não seja uma forma de enfrentar a morte, de lutar contra ela, de a banir”). Mas as palavras que me fizeram, terminada a leitura da sua conversa, entabular outras ainda são as que lhe servem para falar dos pés. Os gregos antigos sabiam que a mesma condição alada podia unir palavras e pés (pense-se na figura de Hermes). E o que torna muitas vezes inesquecível o verão é a forma como associa conversas e caminhos.
 
Molder cita o que leu no livro de Osip Mandelstam “Conversas sobre Dante”. Para Mandelstam, em Dante Alighieri poesia e filosofia estão sempre a caminho, palmilham tudo a pé.
 
PRECISAMOS, PORVENTURA ATÉ MAIS DO QUE ESTAMOS DISPOSTOS A RECONHECER, DE ACOSTAR AS NOSSAS PALAVRAS ÀS DOS OUTROS, DE DAR TEMPO À HOSPITALIDADE MÚTUA QUE É A AUDIÇÃO, DE ENRAIZAR ESSA FORMA DE COMPANHIA 
 
Por isso, “o Inferno e ainda mais o Purgatório celebram a caminhada humana, a medida e o ritmo dos passos, o pé e a sua forma”. Uma das obras mais curiosas publicadas no âmbito do VII centenário da morte de Dante (celebrado em 2021) é a assinada por Giulio Ferroni, mais de mil páginas para nomear os lugares e as errâncias que compõem a geografia da “Divina Comédia”. Não admira que Filomena Molder parta daqui para defender que “o pé é uma medida da vida” e que “nesse aspeto vivemos numa época de perda imensa, nós que já não sabemos quase nada dos nossos pés”. Em cada verão, porém, estamos como que a tempo de remediar esta perda.


 [José Tolentino Mendonça]

Sem comentários:

Enviar um comentário