O QUE TORNA MUITAS VEZES INESQUECÍVEL O VERÃO É A FORMA COMO
ASSOCIA CONVERSAS E CAMINHOS
Nesta estação sabe bem uma conversa com vagar, sem propósito
imediato e que se alongue como uma viagem por dentro do tempo. São assim as
conversas que os atalhos do verão permitem ou as que, por exemplo através da
leitura, podemos escutar a outros. Li recentemente a esplêndida conversa que
Maria Filomena Molder manteve com Cristina Robalo e que a Editora Documenta
publicou com o título “Palavras Aladas”. A expressão “palavras aladas” é uma
daquelas fórmulas a que Homero recorre com frequência na sua poesia, quase
sempre para introduzir o discurso direto, típico das conversas. E palavras
aladas porquê? Porque numa conversa as palavras têm asas, saem da boca e voam
com a fantasia dos pássaros, com a veemência veloz das flechas, expandem-se e
fluem no aberto como auriflamas ou pairam mesmo se pobremente, intercalam-se,
interrogam-se, esclarecem-se, revelam no enxame do som novas possibilidades.
Como diz Filomena Molder, são aladas porque “vão pelo ar até aquele que está ao
pé de mim” e porque são mais preciosas do que a subestima que frequentemente
lhes dedicámos. É belo o modo perentório que a filósofa assume: “Nunca serei
das pessoas que acham que as palavras valem menos do que quer que seja. Não,
não!
Nunca serei dessas pessoas.” Uma conversa é também uma
oportunidade para reborar ou redescobrir o valor das palavras, sem o qual a
vida é menos. Precisamos, porventura até mais do que estamos dispostos a
reconhecer, de acostar as nossas palavras às dos outros, de dar tempo à
hospitalidade mútua que é a audição, de enraizar essa forma de companhia.
Recordo especialmente as palavras que Maria Filomena Molder
dedica à sua arte, a filosofia (“a filosofia implica um comércio profundo com a
vida... é um esforço de ver mais claro... é um gesto contemplativo...”),
evocando mestres importantes no seu percurso, como Giorgio Colli ou Fernando
Gil. Aquelas com que descreve as imagens construídas por algum motivo na
infância e que depois nos habitam a vida inteira (“As imagens da infância
jorram, são inevitáveis, são o nosso alimento... Provavelmente, das mais
profundas não temos notícia, alimentam a nossa vida e nós ainda não chegámos a
elas”). Ou as que utiliza para explicar o grande, escondido e inescusável
confronto que mantemos com a morte (“Olhe, Cristina, acho que não há nada
criativo, em nenhum povo, que não seja uma forma de enfrentar a morte, de lutar
contra ela, de a banir”). Mas as palavras que me fizeram, terminada a leitura
da sua conversa, entabular outras ainda são as que lhe servem para falar dos
pés. Os gregos antigos sabiam que a mesma condição alada podia unir palavras e
pés (pense-se na figura de Hermes). E o que torna muitas vezes inesquecível o
verão é a forma como associa conversas e caminhos.
Molder cita o que leu no livro de Osip Mandelstam “Conversas
sobre Dante”. Para Mandelstam, em Dante Alighieri poesia e filosofia estão
sempre a caminho, palmilham tudo a pé.
PRECISAMOS, PORVENTURA ATÉ MAIS DO QUE ESTAMOS DISPOSTOS A
RECONHECER, DE ACOSTAR AS NOSSAS PALAVRAS ÀS DOS OUTROS, DE DAR TEMPO À
HOSPITALIDADE MÚTUA QUE É A AUDIÇÃO, DE ENRAIZAR ESSA FORMA DE COMPANHIA
Por isso, “o Inferno e ainda mais o Purgatório celebram a
caminhada humana, a medida e o ritmo dos passos, o pé e a sua forma”. Uma das
obras mais curiosas publicadas no âmbito do VII centenário da morte de Dante
(celebrado em 2021) é a assinada por Giulio Ferroni, mais de mil páginas para
nomear os lugares e as errâncias que compõem a geografia da “Divina Comédia”.
Não admira que Filomena Molder parta daqui para defender que “o pé é uma medida
da vida” e que “nesse aspeto vivemos numa época de perda imensa, nós que já não
sabemos quase nada dos nossos pés”. Em cada verão, porém, estamos como que a tempo
de remediar esta perda.
[José Tolentino Mendonça]
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